Os equívocos do ministro Abraão Vicente**
Ponto de Vista

Os equívocos do ministro Abraão Vicente**

Como não sou político, ao contrário do Sr. Abraão Vicente, esta será a minha última reacção, enquanto presidente da AJOC, em relação à torrente de ofensas e acusações gratuitas com que teima em brindar-me. Serei breve, uma vez que a direcção do Sindicato dos Jornalistas irá, a seu tempo, posicionar-se perante essa tentativa do ministro de condicionar o exercício da liberdade sindical, uma garantia com respaldo constitucional, regulamentada no Código Laboral, e que consta também da Convenção 87 da OIT ratificada por Cabo Verde.

Sobre os “motivos óbvios” que, segundo o ministro, me movem neste momento: “não ter sido indigitado nem pelos colegas da RTC nem pelo estado para integrar o conselho independente, por outro lado, não ser sido escolhido pelo conselho independente para o novo conselho de administração da RTC. Move-lhe o poder e o acesso ao poder na administração da RTC e não o interesse ou a defesa da classe que diz representar.” Direi apenas o seguinte:

1. Como o Sr. Ministro dá mostras de desconhecer o processo que desembocou na escolha do representante dos trabalhadores da RTC no Conselho Independente, explico-lho de forma sintética. Durante um encontro de trabalho entre a AJOC e o SITHUR foi delineado o cronograma das ações a empreender até à eleição (não foi uma indigitação) desse representante.

Convocou-se para o efeito uma assembleia-geral dos trabalhadores, como estipulam os novos estatutos da RTC; elaborou-se um regulamento eleitoral que foi aprovado nesse conclave; concedeu-se um período para a manifestação de vontade/disponibilidade de eventuais candidatos; criou-se uma comissão eleitoral; houve um período de campanha eleitoral interna; e marcou-se a data das eleições. Nenhum jornalista da RTC se candidatou para o CI, o que quer dizer que a eleição fez-se com um candidato único, tendo sido eleito o informático, Humberto Conceição.

O Sr. Ministro poderia ter contactado a comissão eleitoral ad hoc que foi criada ou lido a acta desse pleito que, aliás, foi remetida ao seu gabinete.

2. Como é bom de ver, estando empenhada em ajudar os jornalistas e, de uma forma geral, os trabalhadores da RTC a eleger um representante para o Conselho Independente, a AJOC (o presidente e os restantes membros Direção), por uma questão ética, não podia apresentar às eleições nenhum candidato.

Aliás, e isto é público (basta ouvir a gravação do programa “Opinião Pública” da RCV conduzido pelo jornalista Orlando Lima sobre a proposta dos novos Estatutos da RTC, depois de o Decreto-Lei ter sido publicado no B.O.), desde a primeira hora, o presidente da AJOC anunciou que não seria candidato a nada e nem poderia ser, uma vez que o art.º 16º desse diploma (incompatibilidades) diz na sua alínea d) que não podem ser membros do CI, “personalidades que exercem funções que estejam em conflito de interesses com o exercício de funções no Conselho Independente…”. Se o Sr. Abraão Vicente tivesse lido com atenção os Estatutos da RTC aprovados pelo Governo não teria lançado, de forma gratuita, essa suspeição sobre o presidente da AJOC.

3. Quanto à segunda acusação de que o que me move é o “acesso ao poder na administração da RTC e não o interesse ou a defesa da classe que diz representar”... Sr. Ministro, quando, em Julho de 2018, fui eleito presidente da AJOC reafirmei perante os jornalistas presentes na Assembleia Geral o compromisso que lhes havia feito durante a longa e desgastante campanha eleitoral: o meu mandato é para levar até ao fim.

O Sr. Abraão Vicente acha mesmo que alguém com pretensões ou, como deixa entender, tentações de “acesso ao poder na administração da RTC”, ou de uma qualquer empresa neste país, ia abraçar a atividade sindical? Com certeza que não, só se fosse estulto.

Mas, já que fala nisto, aproveito o ensejo para lhe fazer uma confissão. Fui convidado por um membro do Conselho Independente para integrar uma short list de nomes para o CA da RTC. Agradeci o amável convite, mas declinei-o não sem antes explicar-lhe, de forma muito polida, que o meu compromisso, pelo menos, até meados do próximo ano, altura em que termina o mandato, é com a Associação Sindical dos Jornalistas de Cabo Verde.

Mais: disse-lhe que neste momento considero-me capaz de contribuir de forma bastante qualificada para a defesa dos direitos e interesses socioprofissionais dos jornalistas e equiparados, pelo que não estou, de momento, minimamente interessado em abraçar quaisquer outros desafios profissionais ou de outra natureza. Na opinião desse membro do CI era absolutamente normal que eu, querendo, passasse a presidência da AJOC a um dos dois vice-presidentes e me disponibilizasse para essa corrida ao CA da RTC, reforçando que eu reunia todas as condições para ser o escolhido. Como me mantive irredutível na minha decisão, entendeu as minhas razões e pediu-me, na qualidade de jornalista, que lhe indicasse alguns nomes para a tal short list que queria partilhar numa reunião próxima com os colegas do CI. Com muito gosto avancei-lhe, nessa mesma tarde, 7 ou 8 nomes de jornalistas que, pela sua experiência e competência técnico-profissional, estariam em condições de dar um excelente contributo na gestão da RTC. Espero não estar a cometer nenhuma inconfidência e nem a trair a confiança da pessoa que me contactou, até porque considero que esse processo não deveria ter decorrido no profundo secretismo em que decorreu.

Posso inclusive dizer ao Sr. Ministro que o nome da jornalista que veio a ser escolhida para integrar o CA da RTC, a nossa colega Margarida Fontes, consta desse leque de sugestões que, de bom grado, fiz chegar a esse membro do CI. Portanto, com todo este arrazoado, quis apenas mostrar ao Sr. Ministro que, caso tivesse como único motivo ser administrador da RTC, no mínimo, disponibilizar-me-ia para o efeito. Se seria escolhido, isso já não lhe posso garantir.

4. Quanto aos aspectos de natureza política subjacentes ao seu post dou-os de barato pois, como tive oportunidade de, longamente, explicitar na minha anterior comunicação, a sua estratégia é de me arrastar a toda brida para o campo político, porque lhe dá mais jeito e é um jogo cujas regras conhece muito bem. Infelizmente, não lhe posso acompanhar nesse debate politico-ideológico. Estou temporariamente como sindicalista, mas sou e serei sempre, até ao fim dos meus dias, jornalista.

5. Sr. Ministro, a AJOC em Novembro deste ano completa 30 anos de existência, é se calhar um pouco mais nova do que o Sr. Se der ao trabalho de passar em revista o percurso histórico da nossa organização, irá de certeza, constatar que ao longo da sua vida sempre houve momentos conturbados e algum “confronto” de posições entre a Associação dos Jornalistas e os governos. Se compulsar a imprensa da década de 1990, por exemplo, notará que em alguns momentos a relação entre a AJOC e os governos foram até bastante tensos. Muitos desses episódios estão vertidos no livro da Dra. Isabel Lopes Ferreira intitulado “Mal-estar no Jornalismo Cabo-verdiano – Prestação de contas do Governo aos Cidadãos através dos Media , 1991-1998”.

Durante os três mandatos do Dr. José Maria Neves a relação entre a classe jornalística e os políticos não foi tão tensa como antes, mas uma analise fina de conteúdos dos média nesse período de 15 anos deixa antever alguns momentos em que o caldo entornou, sobretudo por altura do pacote legislativo para a comunicação social, que viria a ser aprovado em 2010, e mais recentemente com a criação da RTCI.

Portanto, basicamente, o clima de confronto que o Sr. Ministro pretende artificialmente criar entre a AJOC e o Governo, com acusações ocas, embora bombásticas, de “promiscuidade” e “alinhamentos políticos” que só existem na sua cabeça, não passa de uma reedição do “mal-estar” que existiu na década de 90 ( inicio do primeiro mandato e, curiosamente, no inicio do segundo mandato) entre a classe jornalística e o governos de então. Há apenas uma diferença: esse “confronto de posições” terá contribuído para reforçar os alicerces da jovem democracia e sedimentar a identidade profissional dos jornalistas, enquanto classe. Hoje há mais maturidade e capital simbólico dos dois campos, no jornalismo e na política. A própria consciência cidadã, parecendo que não, é hoje muito mais vincada. Portanto, mais uma vez, fica gorada essa tentativa do Sr. Ministro de isolar o presidente da AJOC da restante Direção do Sindicato, sempre na lógica do já gasto “dividir para reinar”.

6. A liberdade de expressão é um dos valores caros aos regimes democráticos. O contributo da Constituição da Republica de 1992 é, a todos os títulos, inegável na promoção de um catálogo de Direitos, Liberdades e Garantias dos cidadãos, de entre os quais o direito de qualquer cidadão de expressar pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio o seu pensamento sem correr o risco de vir a ser inquietado pelo disse. Os meios virtuais, com destaque para as redes sociais e as plataformas colaborativas, vieram, sem margens para dúvidas, colocar uma espécie de megafone à boca de qualquer cidadão. Felizmente em Cabo Verde ainda a censura não chegou à internet. Dito isto, é no minino risível tentar ver “alinhamentos” e "colagens" a partidos políticos, apenas pelo facto de a posição da AJOC ou do seu presidente, expressa no espaço publico, estar a ser partilhada por políticos ou por cidadãos anónimos.

Este tipo de métodos, absolutamente execráveis, que procura descredibilizar os media, os jornalistas e os seus representantes, conotando-os com a oposição; procurar esvaziar a cidadania e as associações da sociedade civil e o ONGs; que se expressa numa reacção virulenta às criticas, mesmo as construtivas; de fugir do debate e do dissenso… dizia, esses sinais são preocupantes por estarem, exactamente, nos antípodas da Democracia e da ossatura do Estado de Direito Democrático.

A AJOC e o seu presidente estão disponíveis para uma discussão séria em torno dos muitos problemas e desafios que o sector da CS enfrenta ainda em Cabo Verde. Há 30 anos que a Associação dos Jornalistas de Cabo Verde tem dado o seu modesto contributo para a melhoria das condições de trabalho dos jornalistas e equiparados, bem como para a defesa e promoção da liberdade de imprensa. Queremos continuar a colaborar, disponibilidade que, aliás, a direcção foi manifestar ao Sr. Primeiro-Ministro e ao Ministro que tutela a comunicação social em meados de 2018. Só não me peçam que, a troco desta relação institucional (que se quer saudável), me silencio ou permita que me amordacem, porque do meu direito de pensar e de expressar não abro mão.

Se alguma conquista a minha última comunicação logrou atingir foi a de ter levado o Sr. Ministro a alcandorar-me à sumidade de “rei”, ainda que aos olhos do Sr. Abraão Vicente eu vá nu pelado e sem coroa... que seja! Consegui igualmente a proeza de fazer baixar o tom dos insultos. De “desonestidade intelectual”, o nível baixou para “intelectualmente desleal”. Vá lá que já é algum avanço.

*Presidente da AJOC

**Artigo publicado pelo autor no facebook

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