Chiquinho – Terceira parte
Cultura

Chiquinho – Terceira parte

XIII CENA

BIBIA, NHÔ JOÃO JOANA E OS OUTROS

Dois homens seguram Bibia. Um segura-lhe os braços e outro, as pernas. Duas mulheres procuram impedir que ela feche os dedos. Ela grita e dá algumas gargalhadas.

BIBIA – Não me matem, não me matem! (Dá gargalhadas e luta) Não me matem, não me matem! (Entra Nhô João Joana acompanhado de Chiquinho, Nha Rosa Calita, Tói Mulato, Pitra e Nhô Roberto) O que é que vocês vêm cá fazer? Para trás, vão todos para fora, saiam! Vocês vêm matar-me! Não quero que me matem! (Com olhar desvairante, suplica com uma voz enfraquecida) Não me matem, não me matem!

NHÔ JOÃO JOANA (avança para ele e grita-lhe, imperativo) - Da parte de Deus, quem sóis? (Ela solta uma longa gargalhada) Em nome de Deus Nossenhor Jesus Cristo, que veio à Terra para nos remir e salvar, ordeno-te que me digas quem és!

BIBIA – Quer saber quem sou? Pois você há-de ficar com esta graça…

NHÔ JOÃO JOANA – Concentrem-se e rezem duas Ave Marias e dois Padre Nossos pelo descanso das almas penadas. (Silêncio) Credo e "Glória Patri" pelas almas que penam no Purgatório! (Coloca-se de pé, no meio do quarto, derruba a cabeça e ora. Bibia começa a ficar serena. De repente fica a resfolegar) Tu estás muito cansado… parece que andaste muito.

BIBIA – Venho de muito longe… estou cansado e quero ir-me deitar…

NHÔ JOÃO JOANA – Aonde?

BIBIA – Não sei… há muito tempo que não tenho cama. Tenho feito é andar errante pelo mundo, como filho sem pai…

NHÔ JOÃO JOANA – Pela misericórdia do Senhor da Vida e da Morte, irás descansar na glória do Paraíso…

BIBIA – Meu lugar é no Inferno! (Grita) Quero ir-me embora! Quero ir-me embora!

NHÔ JOÃO JOANA – Vai! Quem te impede de ir?

BIBIA – Vou, mas tenho que levar Bibia!

NHÔ JOÃO JOANA – Ah, isso é que não levas…

BIBIA – Quero levar Bibia!

NHÔ JOÃO JOANA – Em nome de Deus, não levas. Bibia é desta vida, e tu és do outro mundo… (Pega no dedo mindinho da Bibia e torce até quase estortegar. Põe-lhe um binde na cabeça. Sentam-na num pilão. Rezam) Da parte de Deus, quem sóis? Que queres dos viventes?

BIBIA (menos rebelde) – Sou António Carrinho. Saí de S. Nicolau num navio de baleia. Depois de seis meses de pescaria, tocamos em Dominica. Acamaradei-me com uns naturais, com quem estive a beber. Depois, por uma questão de mulheres, um deles deu-me dois lanhos no pescoço. Morri, mas deixei sem cumprir uma promessa que havia feito, quando estive doente de febres ruins, de rodear a igreja da vila de joelhos, com uma vela na mão. Rezem orações para descanso da minha alma e desconto da promessa que não cumpri. (Aflige-se) Não me matem, não me matem!

Estende os braços para diante, como que a impedir que alguma coisa avance. Nha Rosa Calita sai e Chiquinho sai a correr atrás dela.

XIV CENA

MAMÃE (triste) – Chiquinho, Nha Tudinha mandou-te chamar para tu ires ler-lhe a carta que veio de América.

MAMÃE VELHA – Que cara é essa, Maria?

MAMÃE – É para Chiquinho ir ler Nha Tudinha uma carta que veio de América.

MAMÃE VELHA – Mas não é razão para teres essa cara…

MAMÃE – Ela ficou a chorar… a carta é de luto e ela disse que seu coração deu-lhe sentido numa desgraça.

MAMÃE VELHA – Oh, meu Deus Nossenhor. Espero que não seja nada de ruim.

Chiquinho sai.

XV CENA

Em casa de Nha Tudinha, numa tristeza profunda, assistem a leitura da carta.

CHUQUINHO (lendo a carta) -

"Minha querida irmã do meu coração

Gertrudes Ana Duarte,

  1. Nicolau, Caleijão.

Eu peguei nesta pena para fazer estas duas regras e eu desejo que estas encontrarão você numa boa saúde na companhia dos meninos, igualmente meu desejo e eu graças a Deus estou bom. Tudinha você ponha consolança no seu coração e eu desejo você uma consolança e resignação na vontade de Deus. Tudinha triste novidade que eu tenho para você é teu filho Manuel que faleceu no dia três de Novembro, derivado de uma máquina que pegou ele e matou na fábrica…"

Nhô Chic’Ana e Nhô João Joana, sentados a um canto, abanam reprovativamente a cabeça.

NHÔ CHIC’ANA – Não valia a pena ter ido tão longe para ser morto pelas máquinas.

NHÔ JOÃO JOANA - Antes o falecido tivesse ficado em S. Nicolau. Talvez chegasse a velho.

NHÔ CHIC’ANA – No meio da pobreza dos outros, mas a cama de finca-pé e o chão de barro batido não o matariam, como a máquina.

CHIQUINHO – (continua)

"… Nós tudo ficou muito triste, coitado de Manuel era um bom moço e nós tudo tinha com ele uma boa vivência. Tudinha, o teu filho teve um fanoral bonito e todos amigos de Betfete acompanhou ele até no cemitério. Tudinha eu não mando você agora a mala do falecido porque "Conse" disse que papel dele não está ainda tudo claro. Faleceu também outrum rapaz de S. Nicolau e ele não era da nossa ribeira. Tudinha eu não mando você uma lembrança porque agorinha assim não está no jeito. Tudinha eu tenho vontade de ir para Cabo Verde mas não estou na altura porque serviço está muito mariado. Abença que eu manda meus sobrinhos. Recomendação para todos aqueles que perguntar por mim. António Bia já está perto de ir para S. Nicolau. Uma boa consolança que eu deseja você no seu coração. Nada mais deste teu irmão.

António João Duarte"

Os dois velhos saem à rua e continuam a conversar sentados em cima de uma pedra.

NHÔ JOÃO JOANA – Estou a pensar, velho, que vida é uma coisa muito triste.

NHÔ CHIC’ANA – Não sei para que Deus fez a pobreza.

NHÔ JOÃO JOANA – Os antigos não conheciam as terras longe, por isso não chegavam estas notícias tão tristes.

NHÔ CHIC’ANA – É destino de cada um, velho.

NHÔ JOÃO JOANA – Destino não é só cair de rocha. Pode ser que nesta pedra em que estou sentado Nossenhor tenha fechado o meu destino.

NHÔ CHIC’ANA – Quando eu tinha fantasia no corpo, parecia-me que eu mesmo era capaz de ordenar a minha vida.

NHÔ JOÃO JOANA – Você não era capaz, velho. Vida é um caminho que a criatura vai andando. Vê o que fica para trás, mas para diante não enxerga nada.

NHÔ CHIC’ANA – Totone Menga Menga é que disse.

NHÔ JOÃO JOANA – Eu tive quatro filhos e duas filhas fêmeas. Carrinho está na América e vivo debaixo dele. Os outros não podem levantar a cabeça da enxada, carregados de filhos como estão. Porque serão tão diferentes? O retrato mostra carrinho um rapaz estilado, bem vestido; os outros nem gaze têm no corpo.

NHÔ CHIC’ANA – Vieram assim da barriga da mãe. Sempre destino, compadre. Foi destino que fez Mané Tudinha correr para América, para donde a máquina que o matou. Calê, criatura! Estamos a ocupar o nosso bocado de chão, velho, até sermos semeados.

NHÔ JOÃO JOANA – É a única verdadeira serventia que de facto a terra continua a ter. Para "as-água" já não serve. Olha, até ainda não choveu uma pinga.

NHÔ CHIC’ANA – O mês de Setembro, passados os borrifos certos por Nossa Senhora da Lapa, esteve sem um pingo de água. Com o mês de Outubro nem contar, que ele não chove.

NHÔ JOÃO JOANA – A coisa está feia.

NHÔ CHIC’ANA – Deus há de-olhar para os seus filhos.

NHÔ JOÃO JOANA – Estou-me a lembrar de que o tempo está muito parecido com a seca de mil oitocentos e oitenta e seis.

NHÔ CHIC’ANA – Anteontem passei por Chã e lá estava Nhô António Benvinda aventurar-se a mondar o seu milhinho murcho. Disse que quando Nossenhor quer, dá milho de riba de pedra.

NHÔ ROBERTO – Deus quase já se esqueceu de nós.

NHÔ JOÃO JOANA – Cale a boca, homem sem fé! Fé em Deus é que salva a criatura.

NHÔ ROBERTO – E se fé em Deus não nos der chuva?

NHÔ JOÃO JOANA – Destino, homem.

CHICO ZEPA (revoltado) – Qual destino, velho. Destino é cair de rocha.

NHÔ JOÃO JOANA – Destino não é só cair de rocha. Trazemos o nosso destino desde que abrimos os olhos ao Sol.

CHICO ZEPA – Não acredito. Nós é que fazemos o nosso destino consoante o que pensarmos na nossa cabeça.

NHÔ JOÃO JOANA – Então, se é assim, por que é que tu, que pensas em embarcar outra vez, não embarcaste ainda? Queres, mas destino não deixa.

CHICO ZEPA – Deixará, velho… Não acabo por apodrecer aqui. Se for preciso, brigarei com o destino.

NHÔ JOÃO JOANA – Deus não deixou isto à criatura. Só uma pessoa venceu o destino: Totone Menga Menga.

CHICO ZEPA – Explique como Totone venceu o destino.

NHÔ JOÃO JOANA – Ninguém sabe, Chico.

JOSÉ CATRINA (aproxima-se gritando) – Esmola de sábado de Nossa Senhora!

CHIQUINHO – Mas hoje não é sábado, Nhô José.

JOSÉ CATRINA – Todos os dias são de Nossa Senhora, menino… estou em jejum natural.

CHIQUINHO – Deveras? Deveras?

JOSÉ CATRINA – Juro pela fé da minha madrinha Santa Rita! Ela me aparece todas as noites.

CHIQUINHO – Por que é que você não lhe pede uma varinha de condão? Você ficaria rico como o Rei Bandeira, no seu palácio de pedra de cantaria.

JOSÉ CATRINA – Só as sirenas, ou que não a Lua, é que dão varinhas de condão ao menino. E eu não sou menino. Já tenho uma chuva de anos no corpo, rapaz!

MAMÃE VELHA – José foi sempre malandro. Desde menino que não fazia nada. Trabalho não foi feito para as suas mãos…

JOSÉ CATRINA – Nha Júlia, Deus há-de perdoar você… é ferida ruim que tenho na perna; tem um ror de anos…

MAMÃE VELHA – Você não conte mentira, homem! Ao menos respeite a cara da gente!

JOSÉ CATRINA – Juro pela fé da minha madrinha Santa Rita! E então este ano, Nha Júlia, não me parece que eu seja capaz de botar Janeiro fora. Tempo está ruim, velha… como este ano não via há muito.

MAMÃE VELHA – É tudo o mesmo para você… você vive debaixo do trabalho dos outros…

JOSÉ CATRINA – Vivo debaixo do braço da Virgem Maria! (Para Chiquinho) A minha raçãozinha de erva, compadre…

CHIQUINHO – Você faça primeiro como carneiro…

JOSÉ CATRINA - "Robéeerto!"

CHIQUINHO – Como galo…

JOSÉ CATRINA – "Cristo já nasceu!"

CHIQUINHO – Agora como zabelinha…

JOSÉ CATRINO – "Zabelinha-diogo não tem aportamento".

Recebe prenda e fica contente.

CHIQUINHO – Agora vais imitar o pombo a namorar a fêmea.

JOSÉ CATRINA (faz umas habilidades, esquecendo-se que tinha dito que tinha uma ferida ruim numa perna) "Runcum-cume, runcum-cume, Runcum-cume até no cume… Dou-te tudo quanto quiseres, dou-te tudo quanto quiseres."

XVI CENA

No velório do filho de Nha Nené. Um caixão forrado de branco em cima de dois bancos, quatro velas acesas, duas de cada lado.

MAMÃE – Por que não nos tinha dito que Quinquim estava doente? Tu não és franca connosco, Nené…

NENÉ – Sou, dinha, mas tenho medo de vos incomodar…

MAMÃE – Não incomodas nada. Sabes que tudo quanto estiver na nossa altura não te faltamos… Tu sabes que Quinquim ainda não tinha corpo rijo para aguentar fome. Eu até pensei que tu estavas com a irmã no Morro. Como já tinha um ror de dias sem nos aparecer lá em casa…

NENÉ – Com aquele dinheiro que a Dinha me deu da última vez, fiz pão, batanca e fonguinho e os meninos venderam. É por isso que não tenho lá ido ultimamente.

MAMÃE – Hás-de ser feliz com os teus meninos… estes que ficaram. Eles hão-de ser o amparo da tua velhice. Estás a ficar velha cada dia mais, Nené…

NENÉ – Cuidados do mundo, se soubesse, Dinha, a vida apertada que eu levo… o que me consola é que posso ter a cara levantada. Ninguém pode dizer tantinho assim de mim… não enjeito trabalho nenhum que me dê um auxílio para a criação desses anjinhos de Cristo.

MAMÃE – Deixa os meninos irem ficar lá em casa connosco até que tenhas consolança.

NENÉ – Não, Dinha. Deus que me levou Quinquim há-de me dar uma consolança. Embora, Dinha, já não tenho esperança em acabar de criar os meus meninos. Se Deus se lembrasse de mim…

MAMÃE – Não tentes Nossenhor, Nené. A gente só morre quando chegar a sua hora…

NENÉ – O que me prende são esses meninos que me ficam. Talvez fosse uma caridade de Nossenhor os levasse também…

MAMÃE – Estás a pecar, Nené…

NENÉ – Estou a pensar que Quinquim foi mais feliz. Que esperanças podem ter esses inocentes com este tempo que vamos passando? Eu sou mulher, sou fraca, e trabalho não está parecer. O que vale é que dinha não me tem abandonado. (Chora) Julona desgraçou-me. Fez-me filhos e foi correr o mundo. Nem mantenha nos manda…

MAMÃE – Deus é pai, Nené. Não vai deixar nada te faltar.

XVII CENA

Entra um velho, com ar de muito pobre, em casa do Chiquinho.

VELHO – Bom dia! Quero uma caneca de água, por favor.

CHIQUINHO (entrega-lhe uma caneca com água) - Donde é você, velho?

VELHO – Sou da Ribeira dos Calhaus, irmão.

CHIQUINHO – Por que você veio de tão longe?

VELHO – Falta é que está a obrigar…

CHIQUINHO – Você sente-se e descanse. Está com cara de cansado.

MAMÃE (traz-lhe uma xícara de café) – Toma um cafezinho e descanse.

VELHO (para Mamãe Velha) – Estou a pensar que conheço você…

MAMÃE VELHA – Donde, irmão?

VELHO – Você não é parente daquela gente de Nha Rosa Maria Antiga, da Ribeira dos Calhaus?

MAMÃE VELHA – Sou, sim…

VELHO – Está-se vendo. A cara não perde…

MAMÃE VELHA – Seu nome, velho?

VELHO – Sou Joaquim Naninho, da nação de Gaída Branca, você não conhece?

MAMÃE VELHA – Conheço, conheço, velho. Gente direita e com quê de seu… mas então?

VELHO (abre os braços desconsoladamente) – Aqui onde me vê, sempre estes braços é que foram o meu sustento. Ainda este ano, apesar de fraco, semeei as minhas hortinhas. Mas o que coletei outrano não me botou fora o mês de Maio, e neste ano nem é bom falar. Acabou toda a esperança. Agora estou nos braços da caridade. Parece que Deus se esqueceu de me vir buscar.

MAMÃE VELHA – Você é só?

VELHO – Tenho dois filhos, que embarcaram faz muito tempo, mas nunca mais deram notícia. Penso que morreram.

MAMÃE VELHA – Quem sabe, irmão? De um dia para outro são capazes de aparecer. (O velho olha para o céu cheio de esperanças) Maria…

MAMÃE (responde da cozinha) – Já vou, Mamãe Velha.

MAMÃE VELHA – Traga o buli de café com duas xícaras.

MARIA (entra com uma travessa com buli e duas xícaras. Cumprimenta o Velho, dá-lhe uma xícara e à Mamãe Velha a outra e serve-lhes o café e o açúcar. Enquanto Mamãe Velha mexe o café para dissolver o açúcar, diz para o Velho) – Toma um cafezinho e descanse.

Mamãe Velha e o Velho bebem o café silenciosamente.

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