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A propósito do livro "As Ilhas Crioulas de Cabo Verde - da Cidade-Porto ao Porto-Cidade" de Manuel Brito-Semedo, e da Desafricanização Geográfica, Geo-Política, Geo-Estratégica e Político-Cultural de Cabo Verde propugnada pelo seu Autor (III parte)
Cultura

A propósito do livro "As Ilhas Crioulas de Cabo Verde - da Cidade-Porto ao Porto-Cidade" de Manuel Brito-Semedo, e da Desafricanização Geográfica, Geo-Política, Geo-Estratégica e Político-Cultural de Cabo Verde propugnada pelo seu Autor (III parte)

«Como se sabe, o barlaventismo sociológico, cultural e literário acima referido, representado e tornado visível especialmente nos dois ensaios de João Lopes e nos textos ensaísticos de Baltasar Lopes da Silva “Uma Aventura Românica nos Trópicos”, “Notas sobre a Linguagem das Ilhas”, todos publicados na revista Claridade, e no opúsculo Cabo Verde Visto por Gilberto Freyre, do mesmo Baltasar Lopes da Silva, bem como nas obras literárias de alguns neo-claridosos, com destaque para Pedro de Sousa Lobo e Nuno de Miranda, vindos a público na mesma revista Claridade e em outras publicações, como o Boletim Cabo Verde, viria a sofrer contundentes e demolidores ataques no “livrinho maldito”, na assertiva expressão de Gabriel Mariano para qualificar a obra Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, editada em 1963 pela CEI- Casa dos Estudantes do Império e atribuída a Onésima Silveira, mas finalmente desvendada como sendo da autoria do jurista, ensaísta novo-largadista, nacionalista e pan-africanista Manuel Duarte, autor do festejado ensaio “Cabo-Verdianidade e Africanidade”, publicado em 1954 na revista coimbrã Vértice, e do ensaio-panfleto político pan-africanista e afro-crioulista “Cabo Verde e a Revolução Africana”, atribuído ao seu pseudónimo clandestino A. Punói.»

  

TERCEIRA PARTE

                 4

 DO BARLAVENTISMO SOCIOLÓGICO, CULTURAL E LITERÁRIO DOS TEMPOS COLONIAIS E DA SUA NOVA CONFIGURAÇÃO NOS TEMPOS PÓS-COLONIAIS  

4.1. Tornou-se ainda patente, no período colonial caboverdiano, o cultivo por parte de alguns letrados claridosos, de contemporâneos da geração claridosa e dos seus continuadores e émulos neo-claridosos de um certo barlaventismo sociológico, cultural e literário no entendimento da caboverdianidade. Esse entendimento foi essencialmente fundado no modo minifundiário de povoamento das ilhas de Barlavento e de apropriação e gestão da terra, que, assim, teria alegadamente propiciado  uma  maior miscigenação biológica e supostamente uma correlativa maior mestiçagem cultural das suas populações. Essas maiores interpenetrações sociais porque significativas de mais extensiva miscigenação biológica e de mais intensiva mestiçagem cultural constituiriam por si sós uma importante mais-valia cultural, de que o interior de Santiago se não teria beneficiado, sendo por isso considerada uma ilha sociológica, ademais a mais atrasada, no conjunto do arquipélago crioulo caboverdiano, por alegadamente não ter logrado atingir a derradeira fase do processo de aculturação que seria a fase da aceitação da cultura colonial portuguesa dominante, depois da superação da fase da reacção, isto é, da resistência das culturas negro-africanas dominadas trazidas pelos negros africanos escravizados contra a cultura europeia dominante trazida pelos colonizadores brancos portugueses  bem assim por brancos europeus de outras paragens, e da fase da adaptação, que consiste na desigual interpenetração entre as duas culturas em contacto, diga-se, que intrinsecamente desequilibrado, com concomitante nascimento de uma nova cultura, de feições, natureza e teor  híbridos, nos termos do esquema apresentado pelo sociólogo brasileiro Artur Ramos no seu livro O Negro Brasileiro e adoptado entusiástica e acriticamente pelos claridosos-fundadores, com destaque para João Lopes e Baltasar Lopes da Silva. A razão porque o interior rural da grande ilha de Santiago e “talvez a ilha do Fogo” não teriam atingido a derradeira fase, a da aceitação, como as demais ilhas do arquipélago caboverdiano, quedando-se somente pela segunda fase,  a da adaptação, do processo de aculturacão resultante do contacto assimétrico entre as culturas negro-africanas dominadas e as culturas euro-ocidentais dominantes, residiria, segundo esses mesmos claridosos-fundadores, designadamente João Lopes e Baltasar Lopes da Silva,  na  predominância latifundiária nos processos de povoamento e de apropriação da terra verificados nessas duas ilhas do sotavento caboverdiano. Nesse sentido, as ilhas de predominância minifundiária e onde, por isso, teria ocorrido uma maior miscigenação biológica e uma  maior mestiçagem cultural das populações no sentido da  sua maior conformação com a cultura colonial portuguesa dominante seriam por isso  exemplares do caso antropológico, sociológico e identitário-cultural caboverdiano porque, ademais, teriam beneficiado da democracia social, económica, cultural  e racial e da aristocratização intelectual que teriam propiciado a ascensão económica e social do preto e do mulato caboverdianos e transmutado os termos negro, branco e mulato de expressões de categorização racial em expressões de categorização social, como muito bem evidenciado no uso generalizado da expressão gentes brancas oriunda da expressão crioula guentis branco-gentis branku para denominar gentes ricas ou abastadas. Resquício e sintoma dessa ressemantizacão para efeitos de branqueamento social é a expressão do crioulo de Santiago, muito popularizada numa canção do conjunto musical Bulimundo,  : “Dja n branco dja! -Dja N branku dja!”

A contrário, a ilha de Santiago e o seu interior rural e “talvez a ilha do Fogo” seriam pouco ou nada exemplares desse mesmo especialíssimo caso antropológico, sociológico e cultural-identitário caboverdiano porque supostamente encontrando-se ainda inacabado o seu processo de crioulização - no fundo, queria-se significar que, diferententemente das outras ilhas,  Santiago e “talvez o Fogo” ainda estariam em processo de crioulização- e, por isso, não podendo beneficiar-se da democracia social, económica, cultural e racial e da aristocratizacão intelectual patentes nas outras ilhas de Cabo Verde. É o que estava evidenciado no ensaio de Pedro de Sousa Lobo sobre a matéria, com especiais enfoque e incidência na ilha de Santiago e publicado no último número, de 1960, da revista Claridade,  ou nos dois ensaios de Henrique Teixeira de Sousa sobre a estrutura social da ilha do Fogo, também publicados na revista Claridade, em 1947 e em 1958,  e segundo os quais não teria ainda havido lugar à completa ressemantizacão acima referida e, por isso, os termos de categorização social continuavam a coincidir grosso modo com os termos de categorização social. Assim, branco continuava a significar rico ou abastado, mestiço e mulato continuava a significar remediado, negro continuava a significar pobre, podendo todavia abranger tanto pessoas de pele preta como pessoas de tez mulata, e preto-negro significava pobre, ainda por cima preto isto é, de tez negra ou pele preta.  

4.2. Apesar das suas longevas e duradouras repercussões nos estudos da caboverdianidade, os factos históricos e sociológicos vieram todavia desmentir a patente falácia ou, pelo menos, e em termos mais condescendentes, a relativa inexactidão das aparentemente verdadeiras e irrefutáveis asserções dos claridosos-fundadores João Lopes e Baltasar Lopes da Silva. Na verdade, tornou-se claro e é hoje amplamente consensual na historiografia, na sociologia da cultura e na antropologia cultural relativas à identidade caboverdiana que a crioulidade caboverdiana nasceu na sua fundamental fisionomia e na sua essencial ossatura, incluindo a linguística, na Cidade da Ribeira Grande de Santiago e na Vila de São Filipe do Fogo, tudo levando a crer que foi a partir deses dois focos primordiais que essa crioulidade caboverdiana se irradiou para as outras ilhas do arquipélago caboverdiano na sucessivas e diferenciadas etapas do seu povoamento, vindo a assumir fissionomias diferenciadas nessas ilhas e, mesmo no quadro interno da primordiais ilhas de Santiago e do Fogo.   Parece ser também consensual e estar historiograficamente comprovado que foi igualmente na Cidade da Ribeira Grande de Santiago, a actual Cidade Velha, que surgiram as primeiras elites mulatas e negras retintamente crioulas caboverdianas,  na altura denominadas, segundo a historiadora Iva Cabral, de pretos brancos ou brancos pretos, para caracterizar o branqueamento social e cultural a que se sujeitaram e foram voluntária e-ou involuntariamernte sujeitos e que alguns claridosos resolveram e preferiram designar de aristocratizacão intelectual e ascensão económica, social e cultural do negro e do mulato caboverdianos. Neste contexto, e como explicado por Henrique Teixeira de Sousa, a ilha do Fogo - e não a ilha de Santiago, como erradamente acreditou este autor neo-claridoso e neo-realista caboverdiano - permaneceu até, pelo menos, ao primeiro quartel do século XX, como o derradeiro baluarte da oligarquia branca crioula.

Esses factos históricos e sociológicos comprovam que i. não existe sinonímia nenhuma entre crioulizacão e democracia racial, económica, social e cultural, ii. como também não parece existir nenhum nexo de casualidade entre a exploração latifundiária e-ou minifundiária da terra e a extensão da miscigenação biológica e a intensidade da mestiçagem cultural, ademais se vistas e perspectivadas num  quadro estritamente colonial, como foi o caso multissecular de Cabo Verde. 

Na verdade, eram retintamente crioulos tanto os integrantes da oligarquia branca foguense que segregavam  com convicção, denodo e muita perseverança os negros e mulatos foguenses, igualmente retintamente crioulos, e que, em razão disso, buscaram na migração interna para as outras ilhas de Cabo Verde, em especial para os centros urbanos da ilha de Santiago, e, tal como anteriormente os bravenses, na emigração para os Estados Unidos da América  a possibilidade de fugir à segregação e à discriminacão raciais na sua ilha natal, sempre em busca de melhores condições de vida para si e para as suas respectivas famílias. São esses mesmos negros e mulatos, anteriormente associados ao funco e à loja, que promoverão ou contribuirão de forma decisiva para a decadência e a queda da oligarquia branca crioula foguense cujos integrantes, incapazes ou impossibilitados de se adaptarem àquilo que Henrique Teixeira de Sousa denominou de ordem pós-colonial caboverdiana - mesmo que ainda em plena vigência da dominacão colonial portuguesa-, aliás, tão bem retratada nos seus contos,  romances e ensaios, encetaram eles também o caminho da emigração, mas tendo como destino privilegiado a metrópole portuguesa e o seu vasto império colonial onde julgavam preservar o seu estatuto e os seus privilégios de brancos crioulos descendentes directos e alegadamente puros e impolutos dos brancos europeus que foram os primeiros colonizadores e povoadores de Cabo Verde.

Na nossa opinião, devidamente sustentada nos trabalhos de  várias gerações de ensaístas, historiadores, sociólogos, etnógrafos, antropólogos e outros estudiosos caboverdianos e estrangeiros, o que explica “a democracia racial, social, económica e cultural caboverdiana”, na terminologia claridosa e neo-claridosa, ou a inegável “fratenidade racial caboverdiana”, na terminologia de Manuel Duarte,  é a ausência na sociedade colonial caboverdiana pós-escravocrata de uma  classe colonial e de uma classe branca crioula dominantes poderosas do ponto de vista económico, salvo durante um relativamente curto período de tempo na Cidade da Ribeira Grande da escravocrata ilha de Santiago e na ilha do Fogo escravocrata e pós--escravocrata, que pudessem dominar, explorar e segregar as demais classes e categorias sociais crioulas e as conseguissem arredar de todos os mecanismos e alavancas do poder económico, social, cultural e político-administrativo. Colonialismo sem colonos ou com escassos colonos no período escravocrata posterior ao êxodo dos brancos europeus e caboverdianos na sequência da crise comercial do século XVII, bem como em todo o período colonial pós-escravocrata, a escassez de recursos e a concomitante pobreza reinante nas ilhas tornaram  Cabo Verde efectivamente um caso especialíssimo, na assertiva expressão de Gabriel Mariano, no contexto das sociedades crioulas engendradas nas ilhas africanas do Atlântico e do Índico, bem como nas Antilhas, nas Caraíbas e nas Américas e no quadro das sociedades coloniais e pós-coloniais africanas em geral. 

Por outro lado, foi na latifundiária ilha do Fogo que, a par da generalizada mestiçagem cultural e da completa e concluída crioulização cultural-identitária e linguística de todas as ilhas sem excepção,  houve, pelo menos desde o século XVIII, uma grande extensão da miscigenação biológica que, assim, a colocou nas “antípodas raciais” da também latifundiária ilha de Santiago. Com efeito e segundo a estatística publicada no livro Compreensão de Cabo Verde, de Nuno de Miranda, nos anos cinquenta do século XX Santiago era a única ilha caboverdiana com uma clara e inequívoca maioria negra da sua população, se bem que era também detentora de uma expressiva percentagem de mestiços-mulatos, quase igual em termos absolutos ao conjunto dos mestiços-mulatos de todas as outras ilhas juntas, o mesmo ocorrendo com o número de brancos radicados na mesma ilha, explicando-se esta última circunstância pelo facto de ser a capital político-administrativa da colónia-província ultramarina portuguesa meso-atlântica e africana.  Apesar do modo latifundiário da exploração da terra, a ilha do Fogo detinha a mesma ou similar proporção maioritária de mestiços-mulatos que a ilha minifundiária e agrícola de São Nicolau, a ilha minifundiária, agro-pastoril e salineira do Maio - aliás, a mais negra ilha caboverdiana depois da ilha de Santiago-, a ilha minifundiária e agro-pastoril da Boavista, a ilha minifundiária, latifundiária e agrícola de Santo Antão, a ilha aeroportuária e salineira do Sal e a ilha portuária e comercial de São Vicente. De todo o modo, quer por razões sociológicas, quer por  razões climatéricas, nunca puderam implantar-se em Cabo Verde as grandes plantações capitalistas que se ficaram conhecidas em São Tomé e Príncipe pelo nome de roças e que tiveram também sucesso no índico, nas Antilhas-Caraíbas e nas Américas como sucessoras dos latifúndios e plantações escravocratas que em Cabo Verde foram consabidamente substituídos pelos latifúndios semi-feudais dos morgados cujas terras eram trabalhadas por camponeses pobres em regime de arrendamento e de parceria, verificando-se todavia tentativas esporádicas da introdução dessas grandes plantacões capitalistas para a exploração para exportação da banana, como foram os casos dos bananais de Santa Cruz ou, em menor medida, da Ribeira de Sedeguma. 

Interessante é que foi baseado nas experiências da crioulização nas ilhas do Fogo e de Santiago que o geográfo santomense Francisco José Tenreiro fez o estudo comparativo entre os arquipélagos crioulos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, fazendo-o tempestivamente publicar no Boletim Cabo Verde. Nesse estudo o geógrafo santomense chegou às seguintes conclusões fundamentais:

I. Foi similar o processo de povoamento e de crioulizacão dos dois arquipélagos atlânticos, apesar de inseridos em espaços marítimos muito diferentes, o caboverdiano na zona tropical seca do Atlântico Médio periférico à costa ocidental africana e o santomense em pleno Equador no Golfo da Guiné, e também diferentes as populações negro-africanas escravizadas e trazidas para as ilhas, em Cabo Verde da África Ocidental conhecida por Senegâmbia ou Rios da Guiné do Cabo Verde, em São Tomé e Príncipe de países ribeirinhos do Golfo da Guiné.

ii. Os respectivos processos de crioulizacão começaram a divergir, e de forma assaz acentuada, a partir do século XIX com a introdução das culturas do café e do cacau, em substituição da anterior cultura da cana-de-açúcar, em sistema de grandes plantações capitalistas nas ilhas equatoriais e com a introdução dos sistemas de parceria e arrendamento nas ilhas meso-atlânticas e peri-africanas do Sahel. Relembra o geógrafo santomense que para a viabilização dessa culturas de rendimento na sua terra natal, procedeu-se a uma segunda colonização das ilhas com a chegada de uma nova leva de colonos portugueses bem como a uma nova vaga de escravização de negros africanos chamados gabões e, depois da extinção da escravatura, ao recrutamento, bastas vezes forçado,   nas outras colónias portuguesas, designadamente em Angola, Cabinda, Cabo Verde e Moçambique, de trabalhadores serviçais ditos contratados para o trabalho semi-escravo nas roças. Concomitantemente, os forros  santomenses e os seus equivalentes sociais principenses, os lunguiés - anteriormente chamados moncós-, foram espoliados das suas terras, tendo fracassado sempre as várias tentativas coloniais com vista a aliciá-los ou a obrigá-los para o trabalho serviçal nas roças, incluindo aquela que está na base do famigerado massacre de Batepá, de 1953.

Deste modo, segundo Francisco José Tenreiro, a sociedade santomense espartilhou-se em vários grupos étnicos estanques constituidos pelos forros crioulos também chamados nativos ou filhos da terra, os vários grupos de serviçais de origem africana e sujeitos ao trabalho nas roças, incluindo os caboverdianos, e os colonos e outros representantes da classe colonial portuguesa.

4.3. Como se sabe, o barlaventismo sociológico, cultural e literário acima referido, representado   e tornado visível especialmente nos dois ensaios de João Lopes, publicados nos dois primeiros números da revista Claridade,  e nos textos ensaísticos de Baltasar Lopes da Silva “Uma Aventura Românica nos Trópicos”, “Notas sobre a Linguagem das Ilhas”, também publicados na revista Claridade, na sua segunda série, e no opúsculo Cabo Verde Visto por Gilberto Freyre, do mesmo Baltasar Lopes da Silva, bem como nas obras literárias de alguns neo-claridosos, com destaque para Pedro de Sousa Lobo e Nuno de Miranda,  vindos a público na mesma revista Claridade e em outras publicações, como o Boletim Cabo Verde, viria a sofrer contundentes e demolidores ataques no “livrinho maldito”, na assertiva expressão de Gabriel Mariano para qualificar a obra Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, editada em 1963 pela CEI- Casa dos Estudantes do Império e atribuída a Onésima Silveira, mas finalmente desvendada como sendo da autoria do jurista, ensaísta novo-largadista, nacionalista e pan-africanista Manuel Duarte, autor do festejado ensaio “Cabo-Verdianidade e Africanidade”, publicado em 1954 na revista coimbrã Vértice, e do ensaio-panfleto  político pan-africanista e afro-crioulista “Cabo Verde e a Revolução Africana”, atribuído ao seu pseudónimo clandestino  A. Punói.

Mais tarde, Henrique Henrique Teixeira de Sousa publicaria o seu opúsculo Cabo Verde e as suas Gentes como separata a um número de 1954 do Boletim Cabo Verde, o qual introduz uma importante e decisiva nuance na interpretação neo-claridosa do esquema do processo de aculturação  introduzido e defendido por Artur Ramos, qual seja a culminação do processo de crioulização na fase da adaptação e a rejeição da fase de aceitação por ser sinónima da diluição da cultura crioula nascida da desequilibrada interpenetração das duas culturas em confronto no quadro da sociedade escravocrata na cultura europeia dominante, isto é, no caso específico de Cabo Verde da cultura crioula caboverdiana na cultura colonial portuguesa, dominante em todas as esferas oficiais da vida do Cabo Verde colonial. É a nuance introduzida por Henrique Teixeira de Sousa que doravante presidirá à compreensão da identidade caboverdiana, incluindo aquela que viria a  expressar-se nos textos de Gabriel Mariano sobre a criouilidade caboverdiana, no “Prefácio” de Baltasar Lopes da Silva ao livro A Aventura Crioula, de Manuel Ferreira, na sua primeira edição de 1967, no livro Compreensão de Cabo Verde, de Nuno de Miranda, entre outras obras de teor neo-claridoso, mas também,  e despido do viés europeizante, luso-tropicalista, luso-crioulista e neo-claridoso e inundado das dimensões afro-crioulista e africana da cultura caboverdiana, nos textos pós-coloniais de Dulce Almada Duarte, agora sistematizados na obra ensaística monumental e variegada intitulada Na Rota da Cabo-Verdianidade.

4. 4. O barlaventismo sociológico, cultural e literário viria a assumir no período pós-colonial novas feições neo-claridosas e luso-crioulistas, curiosa e primacialmente pela pena de Onésimo Silveira, a pessoa a quem fora atribuido, se bem que erroneamente, o maior ataque jamais desferido ao barlaventismo claridoso, isto é, a autoria do celebrizado Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, livro que, aliás, lhe trouxera importantes mais-valias em termos académicos e no plano da celebridade e do prestígio intelectuais, sobretudo a partir da sua tradução para o francês e da sua publicação pela renomada editora parisiense Présence Africaine. Assumindo-se doravante, em particular após o seu regresso em vestes académicas doutorais do seu exílio na Europa, onde também fora representante do PAIGC na Suécia e nos demais países escandinavos, vindo a fazer dissidência desse mesmo partido-movimento de libertação binacional  logo depois do assassinato de Amílcar Cabral por alegadamente discordar do seu projecto pós-colonial de união orgânica entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde, Onésimo Silveira é eleito Presidente da Câmara Municipal de São Vicente, ilha de que se considerava o mais lídimo e intransigente defensor e ao qual forneceu três relevantes organizações cívicas e políticas, quais sejam o Movimento para o Renascimento de São Vicente, que lhe proporcionou indefectível e incondicional apoio nas lides, lutas e pugnas autárquicas que o projectaram para o lugar de carismático Presidente da Câmara Municipal de São Vicente, o Espaço Democrático e, finalmente o PTS-Partido do Trabalho e da Solidariedade.

(Permita-se-me abrir aqui um parêntese para sublinhar que não deixa de ser irónico e assaz surpreendente o desfecho actual do partido fundado e sustentado por Onésimo Silveira. Com efeito,  o PTS caracterizou-se desde a sua fundação por um ideário político muito marcado por um exacerbado barlaventismo centrado na ilha de São Vicente e nas preocupações das suas populações alegadamente marginalizadas porque a mesma ilha nortenha teria, suposta ou realmente, sido ultrapassada no período pós-colonial pela cidade da Praia, capital da República de Cabo Verde,  como principal centro económico, social, cultural e urbano  de Cabo Verde. O mesmo partido, ou, pelo menos, a sua sigla, viria a ser politicamente apossado primeiramente por militantes políticos radicados na ilha de Santiago que elegem José Augusto Sanches como seu Presidente, cargo em que o mesmo santiaguense permanece de 2015 até 2021, vindo a falecer em 2022, e, depois por jovens activistas políticos e culturais de esquerda, muitos deles universitários liderados por Carlos Lopes, o nome oficial ou de igreja do conhecido músico Romeu di Lurdis,  oriundos predominantemente da ilha de Santiago, nomeadamente dos subúrbios da cidade da Praia e dos  concelhos do seu interior urbano e rural, designadamente do Tarrafal e que, mantendo a sigla do partido PTS e depois de um congresso electivo contestado e ganho judicialmente, mudam-lhe a denominação por extenso para Pessoas Trabalho e Solidariedade!).

Facto é que Onésimo Silveira dá à estampa o livro A Democracia Cabo-Verdiana, que, além de introduzir de forma inovadora  a questão da regionalização político-administrativa na agenda política contemporânea caboverdiana, depois de a mesma questão ter sido aventada ao de leve e indirectamente, conquanto de forma pioneira, no modelo de regionalização administrativa “por ilha ou por ilhas afins e próximas” no Programa Maior do PAIGC, renega em vários ensaios nele reunidos, como, por exemplo, “Uma Aventura Política nos Trópicos” ou “Subsídios para a Regionalização de Cabo Verde”, as principais teses constantes do livrinho maldito que foi e continua a ser Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana acima referenciado e do qual ele, aliás, se vinha distanciando  cada vez mais. Esse mesmo distanciamento de Onésimo Silveira relativamente ao livrinho maldito atinge o seu ápice no mesmo livro A Democracia em Cabo Verde, ao assumir de forma ostensiva as teses barlaventistas dantes virulentamente contestadas no mesmo livro cuja autoria lhe fora erroneamente atribuida. Relembre-se neste contexto e a título de curiosidade que o livro A Democracia em Cabo Verde foi sintomaticamente apresentado em Lisboa pelo Professor Adriano Moreira, o alvo principal do ensaio “Cabo Verde e a Revolução Africana”, de A. Punói, aliás, Manuel Duarte.

Ademais, Onésimo Silveira intenta fazer o aggiornamento do mesmo barlaventismo claridoso, i. fundamentando-o não só no modo minifundiário como se procedeu ao povoamento das ilhas do Barlavento e às correlativas apropriações da propriedade e posse da terra e que alegadamente teriam determinado a sua diferenciação sociológica em relação a um Sotavento precomente povoado e eminentemente latifundiário  no modo da apropriação da propriedade e da posse da terra e, por isso, supostamente repositório de mais fundas e extensivas reminiscências culturais negro-africanas, salvo talvez a ilha do Sotavento caboverdiano mais tardiamente povoada que é a ilha Brava; ii. mas também alicerçando-o igualmente na novidade absoluta que teria  constituído a irrupção da urbe do Mindelo na história caboverdiana. Nessa óptica e nesse contexto, essa mesma urbe do Mindelo é considerada não só como uma síntese mais complexa, rica e aberta ao mundo das diversas culturas insulares caboverdianas confluídas à volta do Porto Grande de São Vicente, mas também como um importante lugar de modernização da cultura caboverdiana, como atestariam os diversos movimentos culturais, musicais e literários com que ela efectivamente contribuiu para o desenvolvimento da cultura do povo do arquipélago caboverdiano.  Atente-se neste concreto contexto que tese similar sobre o papel da urbe do Mindelo na história caboverdiana fora igualmente defendida por Humberto Cardoso no ensaio “O Erro de António Carreira”, anteriormente mencionado, conectando todavia esse papel com o crescente protagonismo da cidade da Praia enquanto capital político-administrativa de Cabo Verde no novo país pós-colonial.

Deste modo, pode-se pois afirmar com alguma segurança que as teses agora expendidas e defendidas por Manuel Brito Semedo no livro As Ilhas Crioulas de Cabo Verde-Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade mais não são do que uma reciclagem, aliás, muito pouco subtil e nada disfarçada, se bem que com menos sofisticação teórica, das teses luso-tropicalistas e neo-claridosas das autorias,  primeiramente, de Humberto Cardoso  e,  depois, de Onésimo Silveira vazadas nalguns ensaios integrantes do seu livro A Democracia em Cabo Verde, e que no seu último testemunho constante do livro Onésimo Silveira-Um Mar de Histórias, de José Vicente Lopes, deixa finalmente mais ou menos clara e inequívoca a identidade do verdadeiro autor da obra Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana. Interessante e curioso é  que da primeira à mais recente edição do incontornável livro Os Bastidores da Independência, também de José Vicente Lopes, esse mesmo “livrinho maldito”,  de uma primeira e suposta autoria de Onésima Silveira e, na verdade, de quase completa e integral autoria de Manuel Duarte, passa de obra inspirada por Manuel Duarte a obra de autoria conjunta de Manuel Duarte e Onésimo Silveira - como igualmente se lê num livro de Manuel Brito Semedo sobre Manuel Duarte e exploratório desta desde há muito candente, controversa e debatida, mas nunca cabalmernte desvendada questão. Esclarece o interlocutor do jornalista José Vicente Lopes que para a sua escrita ou a sua redacção final Manuel Duarte teria aproveitado um original dactilografado  que lhe foi mostrado por ele, Onésimo Silveira, e que estaria destinado a ser lido num encontro de escritores no sul de Angola, colónia-província ultramarina portuguesa onde ambos residiam na altura.

Interessante igualmente neste contexto é o depoimento de Onésimo Silveira sobre Amílcar Cabral que da primeira à mais recente edição do livro Os Bastidores da Independência passsa de gigante com pés de barro a figura carismática e incontornável da luta pela independência da Guiné e de Cabo Verde.

4.5. Em síntese e concluindo, pode-se pois afirmar que, no contexto da sua subalterna inserção enquanto entidades dominadas pelas opressoras tenazes da colonial-escravocracia mercantilista e do colonialismo clássico, Cabo Verde e o povo caboverdiano mantiveram  ao longo dos tempos a sua congénita dupla natureza, qual seja: i. De país e de povo resultantes da expansão  marítima europeia, do tráfico negreiro e do comércio triangular e, por isso, emergentes como partes integrantes do Novo Mundo que, a partir do século XV, se ergueu no Atlântico, no Índico, nas Antilhas-nas Caraíbas e nas Américas; ii. De país e de povo que, não obstante as suas origens e as suas co-matrizes diaspóricas afro-latinas e euro-africanas, permaneceram  em África, na periferia meso-atlântica do grande continente negro, como ilhas africanas que se fizeram plataforma e laboratório de culturas transplantadas dos continentes africano e europeu para o antropologicamente virgem solo das ilhas, culturas essas depois recriadas pelos recém-chegados às  ilhas então desertas pelos nela nados e criados na sua identidade retinta e castiçamente crioula geralmente conhecida por caboverdianidade e que passou a expressar-se numa língua também ela castiça e retintamente crioula.  Foi pois a sua dupla natureza de ilhas meso-atlânticas e africanas, isto é, de ilhas atlânticas localizadas na periferia próxima da costa ocidental do continente africano que deu a Cabo Verde as vantagens e as desvantagens comparativas bem como as mais-valias e as menos-valias competitivas que têm marcado toda a sua história desde os tempos do trâfego-tráfico  negreiro e do comércio triangular através dos portos da Ribeira Grande de Santiago, de São Filipe do Fogo e da Praia-Maria de Santiago, do posterior  controlo britânico do trâfego-tráfico clandestino de escravos a partir do porto de Sal-Rei na ilha da Boavista, passando pela nova conexão transtlântica e intercontinental de Cabo Verde com o mundo através do Porto Grande do Mindelo e do Aeroporto Internacional do Sal até aos dias actuais pós-coloniais, pós-Guerra Fria e de indiciação de novos, complexos e contraditórios sinais da construção de um novo mundo multipolar tendo como essenciais protagonistas os Estados Unidos da América, a União Europeia, a China e a Rússia e os novos grandes países emergentes seus aliados, com destaque para a Índia, o Brasil, a África do Sul, bem como o chamado Sul Global, no qual Cabo Verde se insere na sua dupla natureza de país crioulo africano e pequeno país arquipelágico meso-atlântico de rendimento médio baixo. Munidos dessa dupla natureza e com ela municiados para o enfrentamento do lato e vasto mundo, os caboverdianos encetaram a sua aventura diaspórica e espalharam por países de vários continentes as sementes da sua identidade cultural injectando-a na sua descendência que nas suas várias pátrias natais de acolhimento têm intentado cultivar uma cultura híbrida que experimenta conjugar de forma equilibrada e harmoniosa a cultura herdada dos seus antepassados crioulos africanos com as culturas nativas  das suas pátrias natais de acolhimento.

É essa dupla natureza que também explica o nascimento, a expansão e a consolidação, a partir dos anos quarenta do século XX, de uma poesia caboverdiana de negritude crioula ou, mais exactamente, de afro-crioulitude, com António Nunes e Aguinaldo Fonseca, os quais se  propuseram resgatar a co-matriz afro-negra da cultura crioula caboverdiana e o avô escravo dos caboverdianos, criadores, criaturas e protagonistas dessa mesma cultura crioula. É essa mesma poesia caboverdiana de afro-crioulitude ou, mais impropriamente dito, de negritude crioula, que conhecerá um desenvolvimento fulgurante no livro Noti, de Kaoberdiano Dambará, pseudónimo de Felisberto Vieira Lopes, no poema “Eis-me Aqui, África”, de Mário Fonseca, e no imediato pós-25 de Abril de 1974, no poema “Kabral ka more” e em outros poemas de Emanuel Braga Tavares, no Primeiro Livro de Notcha, de Timóteo Tio Tiofe, um dos nomes literários de João Manuel Varela, cuja escrita foi iniciada nos anos sessenta do século passado, e no livro Pão e Fonema e nos outros livros de Corsino Fortes, designadamente  Árvore e Tambor e “Sol e Substância”, depois reunidos num único volume e editados com o título geral A Cabeça Calva de Deus. A poesia caboverdiana da  afro-crioulitude vem sendo cultivada por vários outros poetas, mesmo se esporadicamente, com destaque para David Hopffer Almada, Jorge Carlos Fonseca, Vera Duarte, Tomé Varela da Silva, Tony Lima, José Luís Hopffer Almada, Danny Spínola, Filinto Elísio Correia e Silva, José Luís Tavares, Carlota de Barros, Eneida Nelly, Margarida Fontes, entre muitos outros poetas das gerações literárias pós-coloniais. A problemática racial caboverdiana e o correlativo resgate de expressões culturais de rosto afro-crioulo têm também tido fortes repercussões na narrativa ficcional, com os romances do ciclo foguense de Henrique Teixeira de Sousa, designadamente Na Ribeira de Deus, Ilhéu de Contenda e Xaguate, no primeiro romance caboverdiano em crioulo intitulado Odju di Águ, nalguns contos de Tomé Varela da Silva e Daniel Benoni, nos romances de Viriato de Barros, Eugénio Inocêncio Dududa e Joaquim Arena, entre outros, sendo que no último dos autores nomeados é uma forte vertente diaspórica que faz a sua irrupção. 

O interessante é que, contrariamente às Antilhas ditas Francesas em que a crioulitude afirma-se na sequência da afirmação da negritude, com Aimé Césaire e Léon Gontran Damas, a poesia caboverdiana da afro-crioulitude ou da negritude crioula começa a afirmar-se, enquanto uma sua mais abrangente e descomplexada vertente, depois da afirmação literária da crioulidade caboverdiana pela pena tanto dos nativistas  como dos claridosos, sendo certo que na escrita dos nativistas existiu igualmente uma vertente pan-africanista cultivada sobretudo por Pedro Cardoso, o Afro, com os poemas “Ao Egipto” e “Ode a África”, bem como uma vertente negrista, registando-se o primeiro grito literário da negritude caboverdiana com a fala do escravo João do romance O Escravo, de José Evaristo de Almeida. O mesmo fenómeno ocorreu na escrita claridosa com alguns poemas de Jorge Barbosa, nomeadamente  “África” e “Baile”, e com, pelo menos, dois poemas de Osvaldo Alcântara, nomeadamente “Na Terra Roxa dos Massapés” e  “Poema para Jorge Amado”.

Pode-se, pois, dizer que também na vertente literária o desiderato político-cultural da reafricanizacão dos espíritos de Amílcar Cabral tem produzido preciosos, valiosos e apetecíveis frutos!

 

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