Requalificados
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Requalificados

A ilha da Boa Vista sustenta o país. Ela gera receitas para o Estado, alimenta o turismo de luxo e oferece, com as suas praias, um dos cartões-postais que Cabo Verde vende ao mundo. Mas basta desviar o olhar do mar para perceber o que a propaganda insiste em esconder: bairros inteiros afundados no abandono, onde o investimento público é apenas uma cifra vazia. Fala-se em requalificação, mas a realidade grita desleixo, e o bairro da Boa Esperança é um exemplo perfeito.

Este bairro, outrora um amontoado de barracas onde famílias viveram durante décadas, está agora marcado pela promessa não cumprida. As ruas apertadas e claustrofóbicas, as paredes de zinco que arderam em dois incêndios (um em 2001 e outro em 2003), transformaram-se em escombros de falsas promessas. Depois disso, vieram a pedra, o cimento e as promessas eleitorais. Promessas que nunca saíram do papel.

Em 2018, o Estado anunciou um investimento de 900 milhões de escudos para “requalificar” o bairro. A proposta? Calcetamento, rede de esgotos, água canalizada, eletricidade. No papel, parecia progresso, mas na prática, é um desastre. A rede de esgotos não liga às casas, e a Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR), que deveria tratar os resíduos, está avariada… desde o primeiro dia. Nunca funcionou. O bairro tornou-se uma latrina a céu aberto.

Aqui, as janelas não estão fechadas por medo de ladrões, mas pelo cheiro nauseabundo que invade as casas todos os dias. A ETAR, instalada ao lado das moradias sociais, despeja ar contaminado em nome do "desenvolvimento". Crianças e idosos vivem rodeados de larvas, mosquitos e o risco constante de doenças.

Construíram a ETAR, ligaram-na aos empreendimentos turísticos e ao projeto "Casa para Todos". Mas o bairro ficou entregue à degradação. O resultado? A água contaminada corre a céu aberto, infiltra-se nas dunas, contamina a zona industrial e chega a menos de 500 metros das casas. As análises são claras: bactérias, larvas, perigo real para a saúde pública. E a resposta das autoridades? Um silêncio cúmplice.

As casas do “Casa para Todos” foram construídas sobre salinas, em palafitas de cimento. As palafitas são construções elevadas sobre estacas, usadas para proteger as casas de inundações e outros problemas relacionados à água em áreas alagadiças. Hoje, essas estruturas estão podres e oxidadas; as infiltrações nas casas de banho correm para os apartamentos do rés-do-chão. Os condomínios não têm gestão, os espaços comuns estão sujos, degradados e inseguros. Famílias vivem cercadas por humidade, lixo e estruturas em ruína iminente.

Mas Boa Esperança não é apenas um bairro esquecido. É um instrumento político. Aqui mora uma massa eleitoral que pesa. A maioria são estrangeiros residentes há mais de três anos (tempo suficiente para votar nas autárquicas). Como as legislativas exigem nacionalidade, o bairro torna-se decisivo para quem quer conquistar ou manter a câmara municipal. É aqui que se ganha ou se perde. E aqui se investe, não por justiça social, mas por cálculo político.

Requalificar, neste jogo, é um verbo venenoso. Serve para justificar gastos, lavar consciências e alimentar campanhas eleitorais. Mas, na realidade, não muda a vida dos moradores. Não seca as infiltrações, nem limpa as ruas ou trata a água suja que escorre na calçada. Também não devolve a dignidade de quem lá vive.

O bairro da Boa Esperança foi reduzido a cimento podre e promessas vazias. O povo vive rodeado de lixo, esgoto e abandono. Mas, mesmo assim, resiste. Isto não é apenas mais um texto. É o retrato cru de pessoas a sobreviver em condições indignas: ruas invadidas por esgoto, crianças brincando na água suja, famílias vivendo com medo pelo futuro dos seus filhos, mães desesperadas com crianças que vomitam e tossicam por estarem expostas a toda essa poluição, idosos pisando o esgoto por falta de alternativa, moradores denunciando a podridão das fundações.

O bairro continua o mesmo. A “requalificação” ficou para o próximo ciclo eleitoral. Deixamos o Estado investir para ocultar, não para resolver. E nós ficamos aqui, manietados, sem forças para continuar a elevar a voz.

A "requalificação", sem dignidade, é apenas mais uma estratégia de propaganda. O povo da Boa Esperança já percebeu que não se trata de melhorar as condições de vida, mas de mascarar a realidade e garantir votos. A ilha da Boa Vista alimenta o país, e o povo de Boa Esperança continua a alimentar a máquina política, sem se aperceber.

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