Consciência de Classe
Colunista

Consciência de Classe

Se as palavras ainda possuem algum sentido, então, dedico o significado de cada frase neste artigo, à Amazona dos nossos dias, senhora Noberta Semedo, e a toda classe trabalhadora que foi privada de Justiça no bairro Alto da Glória, desalojados no dia dos trabalhadores, pela Câmara Municipal da Praia, em plena pandemia.

Os moradores proletários do Alto da Glória foram oprimidos, ultrajados e despojados de toda dignidade e habitação, por quem se elegeu, sob a imagem de ampará-los. Arrebentaram as portas e as paredes das casas, numa luta desigual, atacaram cidadãos indefesos cuja vida já era suficientemente pesada por toda vulnerabilidade que a pobreza oferece, trabalhadores que lutam e labutam, para criar lucros que os burgueses juram e perjuram, serem seus frutos. Todavia, tudo isso não bastava aos donos do poder, era preciso dar à população sofredora cabo-verdiana uma amostra inesquecível de covardia, o único legado que têm a capacidade de transmitir. Era preciso dizimar o lar dos proletários, o único lugar de recolhimento e descanso onde o trabalhador e a trabalhadora revigoram as suas forças para enfrentar a cada dia, o mundo do capital.

Tal desumanidade só poderia ser levada a cabo por um ser dotado com as qualidades de um abutre, seriamente desprovido de tato social, guiado por um cérebro sem tino.

Neste momento, toda solidariedade que este jovem de vinte cinco anos pôde demonstrar, foi escrever meras linhas de denúncias, e ainda assim, sequer fazemos enrubescer com a verdade da escrita, a quem já devia ser removido do cargo, pela verdade dos factos.

Nenhum pretexto toldará da nossa memória as crianças que ficaram ao relento, à mercê do Sol inclemente do dia, dos açoites do vento da noite, e da cruel pandemia à todo tempo constante.

Não podemos restituir-lhes as casas, o consolo e a paz, falta-nos meios para tal empresa. Mas asseguramos, que jamais seremos submissos a ponto de aceitar esta injustiça calados. Jamais seremos platéia para a tirania de uma classe sobre a outra.

Na democracia real, os cidadãos não participam, atuam. Ça ira! [1] (Vai dar certo!)

O Covid 19 tem sido acima de tudo, um terreno de reparações. O confinamento social levantou todas as vestes da exploração que cobrem a sociedade cabo-verdiana nas suas mais variadas matizes e nuances. Desde a saturação do trabalho doméstico, jogado nas costas da mulher proletária cabo-verdiana às expensas de um machismo que sempre impregnou o arquipélago, até à exploração da classe trabalhadora pela ordem burguesa sempre disposta a colocar em risco a saúde do trabalhador para reviver a sua amada economia capitalista. Torna-se necessário, portanto, professar de modo onímodo: A época do servilismo cego, acabou.

Não é preciso consultarmos o oráculo de nenhuma Sibila[2] para anteciparmos que os trabalhadores informais são os excomungados do Governo burguês durante este isolamento social. Por conseguinte, o sustento da família se torna cada vez mais inviável na pandemia. A fome ronda, escolhe a sua vítima e a devora sob o olhar espectador do nosso Estado burguês.

Conhece bem este facto a senhora Maria Gonçalves Lopes, Presidente da Associação das Trabalhadoras Domésticas, que já no mês de Abril havia denunciado o abandono do Governo. O trabalho realizado pelas empregadas domésticas, esse trabalho que é invisível a muitos olhos, exercido muitas vezes, (com mais frequência do que se admite), sob as duras penas do assédio moral e sexual, é visto com desdém pela classe dominante.

Entretanto, não são apenas as trabalhadoras domésticas que são contempladas com essas indiferenças. Os estivadores, os pedreiros, pescadores, pequenos agricultores, operários e tutti quanti (todos), recebem a sua cota de desprezo pelo Estado burguês cabo-verdiano.

Essa indiferença, essa negligência, esse descaso desavergonhado está longe de ser acidental, pelo contrário, são os efeitos esperados de uma declarada lutas de classes em curso.

O Estado, seja ele arcaico, feudal ou burguês, não está acima das classes sociais como prega a fábula liberal, muito antes, ele obedece a uma lógica e dinâmica de classe. Portanto, este Estado burguês vassalo do Capital que aí temos, constitui um dispositivo de força, de coerção, para fazer valer a vontade de uma classe sobre a outra. A vontade da burguesia sob o proletariado.

O Estado burguês (não abriremos mão deste qualificativo, pois é este o estado que temos), está a anos luz de ser neutro, muito menos imparcial. Inversamente, é tendencioso e não visa satisfazer os interesses de todas as classes, esta é a verdade molecular que parece escapar aos nobres políticos de carreira.

Em vários setores da sociedade cabo-verdiana observamos ex professo (com verdadeiro conhecimento de causa), as inclinações de uma balança estatal que pendem sem hesitar, para o lado das classes abastadas. No que se refere à justiça, o saudoso senhor Felisberto Vieira Lopes e o senhor Amadeu Oliveira, demonstraram magistralmente tais inclinações. Nos apresentaram evidências contundentes da prevaricação dos magistrados, e consequentemente, da justiça burguesa cabo-verdiana.

Na educação, a elitização do conhecimento foi edificada ao longo dos anos pelo uso das propinas escolares e universitárias, o nosso Estado burguês nunca teve a mais leve pretensão de promover um ensino gratuito e de qualidade para todos em todos os níveis da educação.

Aparentemente, o Governo burguês é um pequeno deus Janus[3] de duas caras que, estando em causa os interesses da classe dominante, como em épocas eleitorais ou para resgatar uma empresa privada que responde pelo nome de Cabo Verde Airlines, nos é apresentado um Estado forte, robusto, esbelto, repleto de recursos que “não acabam mais”, todavia, quando os interesses proletários são postos na ordem do dia, passam a nos retratar um Estado fraco, anêmico, disforme, caído quase moribundo cujas alavancas Arquimedes[4] nenhum consegue levantar, e cheio de apreensões sobre o futuro.

Ora, a que devemos esta bipolaridade do Estado burguês, senão a um profundo exercício de hipocrisia burguesa?

Que utilizem como queiram os eufemismos para designar as lutas de classes, como “a questão social” ou “problemas sociais”, a verdade é que mesmo encoberto por sofismas, as lutas de classes são tão presentes na realidade cabo-verdiana quanto a cachupa e o grogu.

A Vossa Excelência, o Primeiro-Ministro, admitiu que errou na Boa Vista, mas talvez nunca saberemos quando, onde, ou mesmo qual foi o erro concreto que cometeu o nosso salutar governante. Pois o Governo quando fala de si mesmo colecionamos ambiguidades, frases vagas e palavras abstratas. A diferença de tom torna-se nítida quando o senhor Primeiro-Ministro, teve o cuidado de partilhar a sua culpa com os trabalhadores do Hotel Riu Karamboa. Apontou o dedo aos trabalhadores e o funesto erro que estava nublado na sua pessoa, passou a irradiar nos trabalhadores.

O erro que não tinha paradeiro certo no Governo, encontrou a sua localização exata nos trabalhadores. Tudo o que estava indefinido na retórica neoliberal para o corpo do Governo, se tornou muito bem definido para os trabalhadores. Se disse o quando, o onde e como os trabalhadores erraram e os sicofantas a serviço do Governo, puderam respirar aliviados novamente.

Sempre que os ideólogos da burguesia falam, falam pela boca do Capital. O partido do moinho, vive e gira ao sabor da brisa que a ordem burguesa cabo-verdiana soprar, no que tange à sua principal concorrência, o partido do astro negro, desde que teve como Estrela-guia o capital, eclipsou o proletário. Há muito que regrediu de um partido revolucionário para se tornar numa organização reformista, que apenas elabora as suas críticas se estas se comportam dentro de uma escala burguesa, qualquer desvio a esta escala torna-se por demais frontal ao seu paladar, atualmente aburguesado.

Nas eleições, a classe trabalhadora toma o proscênio do palco, a encenação dos partidos da ordem é conhecida, depois de traficarem com as dores da classe sofredora em discursos insossos, projetam as promessas que alienam mais do qualquer outra coisa. O povo emocionado ao ver o seu candidato em cima do palanque sem terno, envergando trajes calculadamente convenientes para a ocasião, dirá: Quantum mutatus![5] (Quanto mudou!)

A pessoa que discursa no momento ganha um ar mais humano, mais próximo, disposto a enfrentar todas as desgraças que afligem os trabalhadores.

Assim que a eleição termina, descobre-se que a metamorfose jamais se realizou, o povo terá o desgosto de ver que a borboleta continuou lagarta, e a peça chega ao seu fim sem aplausos.

Na ordem burguesa tutto deve cambiare perché tutto resti come prima[6] (tudo deve mudar para que tudo permaneça como antes).

Se Galeno[7] distinguiu as veias das artérias no corpo humano, é preciso também distinguir as classes dominantes das classes exploradas na anatomia social. Caso contrário, estaremos passíveis de um erro crasso ao analisar os infortúnios dos estivadores, dos agentes prisionais, dos pescadores, dos trabalhadores do instituto de Meteorologia, das trabalhadoras domésticas ou dos professores como um caso isolado. Não o são. São ataques para uma classe específica, a classe trabalhadora, a classe assalariada. Uma análise de conjuntura somente corresponderá à realidade concreta se efectuada com rigor em termos holísticos e dialéticos, acompanhados de uma perspectiva de classe.

Para que os trabalhadores construam o seu próprio futuro, é vital ganharmos consciência de classe. É crucial reconhecermos, que os nossos interesses de classe não são somente contraditórios mas antagônicos, aos da classe dominante. O choque de interesses é frequente. Os trabalhadores exigem melhores salários, enquanto os capitalistas preferem conceder o mínimo estipêndio possível, visando obter maior lucro; os proletários reivindicam direitos e melhores condições de trabalho, a burguesia procura explorar o máximo que pode os trabalhadores, sem conceder-lhes os direitos necessários. Estas dicotomias traduzem uma dinâmica que na sua aparência, é provida de aspectos económicos, mas que na sua essência, abrangem toda engrenagem social.

Responderão algures os senhores neoliberais, com toda a graça que lhes é peculiar, que o mundo sempre foi assim e assim continuará, que não nos cabe transformá-lo, e se acaso tentarmos estaremos realizando um trabalho de Sísifo.[8] Mas o que foge à percepção destes senhores é que tomam os elementos do mundo capitalista como categorias a-históricas, ou seja, aceitam elas como um dado eterno. Adoptam uma atitude conformista e conservadora em relação ao presente, pois são blindados por um otimismo panglossiano.[9] Em tese, reconhecem o trabalhador como a antítese do burguês, mas a síntese desta dialética não ganha forma no seu raciocínio pois vê as incoerências do sistema capitalista como inerentes a um estágio permanente da humanidade, e não como um processo em curso no qual, o motor inicial é o desenvolvimento dos modos de produção e das forças produtivas. E é por isso que, desde 1825[10], sempre ficaram perplexos ao verem uma crise acometer o sistema que tanto idolatram sem entendê-lo.

O mundo do capital é um lugar inóspito ao trabalhador e à trabalhadora. A consciência de classe serve para que o trabalhador saiba que só cabe a ele, como classe, levantar o jugo que o oprime. A consciência de classe é o estalo que impulsiona a classe trabalhadora refletir sobre as suas vidas, não segundo uma lógica individualista neoliberal, mas a meditar sobre os seus destinos enquanto classe social.

Até quando esperaremos que as soluções venham dos mesmos que criaram o problema?

Devemos aprender a bela lição que a burguesia nos deu: O futuro depende da vontade dos homens e mulheres organizados.

Ganhar esta consciência não é vista com bons olhos pelos que querem conservar a ordem vigente, esbravejam-se ao mínimo toque e apressam-se a nos chamar de rebeldezinhos. Não nos importamos, pois um diminutivo vindo de um ser diminuto, apenas engrandece o diminuído.

Os apócrifos progressistas se revelam os mais devotos conservadores mediante qualquer perturbação que abale os fundamentos dos seus privilégios, cogitando que de alguma maneira, desejamos inverter o status quo da sociedade, no entanto “não choreis prematuramente, esperai que tenhais de tudo pleno conhecimento”.[11]

Longe de nós, simplesmente alterar o status quo, trata-se sem mais delongas, de suprimi-lo e superá-lo.

Em razão disso, tremem-se diante da idéia de existir entre nós um Sankara[12] ou uma Rosa Luxemburgo[13], que consiga reunir a classe trabalhadora numa comunidade Ubuntu,[14] entregando-a enfim, a sua derradeira consciência de classe.

[1] Canção simbólica da Revolução Francesa, tendo as letras compostas pelo soldado Landré e a melodia pelo violinista Bécourt. Em 1953 a música revolucionária foi gravada pela voz da Edith Piaf.

[2] Profetisas da Antiguidade.

[3] Foi um deus romano comumente retratado tendo duas em faces em direções opostas.

[4] Arquimedes (287 a.C - 212 a.C) foi um matemático grego que descobriu a lei da alavanca, conta-se que terá dito: Dê-me um ponto de apoio e moverei o mundo.

[5] Referência a frase pronunciada por Eneias ao ver o príncipe Heitor durante um sonho, no poema épico Eneida, de Virgílio (70 a.C - 19 a.C).

[6] Referência à frase de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896 - 1957), no seu romance histórico sobre a aristocracia decadente italiana, O Leopardo.  

[7] Galeno (129 - 199) foi médico e filósofo romano, distinguiu o sangue venoso do arterial, foi o primeiro a propor que o corpo fosse controlado pelo cérebro.

[8] Sísifo era considerado pela tradição o mais astutos do mortais e um dos maiores ofensores dos deuses do Olimpo. Foi punido a rolar por toda eternidade uma grande pedra de mármore até o cume de uma montanha, toda vez que estava prestes a chegar ao topo a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível, invalidando completamente o duro esforço despendido.

[9] Referência ao personagem satirizado, o ingénuo professor Pangloss que sempre assumia uma postura conformista diante dos desastres do mundo na obra-prima Cândido ou o Otimismo, de Voltaire (1694 - 1778).

[10] Ano da primeira crise capitalista, desde então crises tem sido recorrentes na sociedade burguesa.

[11] Referência à frase pronunciada por Prometeu na tragédia Prometeu Acorrentado, do dramaturgo Ésquilo (525 a.C - 455 a.C), considerado o pai da tragédia.

[12] Thomas Sankara (1949 - 1987), foi um revolucionário marxista, pan-africanista e líder político de Burkina Faso. Seu governo tentou abolir também os privilégios tribais e baniu as mutilações genitais, os casamentos forçados e a poligamia. Além disso, foi bem sucedido em promover campanhas contraceptivas e vacinações infantis.

[13] Rosa Luxemburgo (1871 - 1919), foi uma filósofa, economista e revolucionária marxista polaco-alemã, autora da obra Acumulação do Capital.

[14] Filosofia africana que nutre o conceito de humanidade na sua essência. A ideia de ubuntu estava diretamente ligada à história da luta contra o regime que excluía a cidadania e os direitos dos negros.

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