O regresso apoteótico de Aristides Pereira a Cabo Verde com o seu desembarque no aeroporto da Praia, a 27 de Fevereiro de 1975, e, depois, o seu regresso definitivo ao país natal com vista à assunção do cargo de Presidente da República de Cabo Verde, mesmo se conservando o altíssimo cargo supra-nacional de Secretário-Geral do PAIGC e, deste modo, a pretensão a uma futura Presidência de uma eventual República Unida da Guiné e Cabo Verde, bem assim os demais actos acima mencionados são de indubitável importância, quer para o condicionamento da abertura de uma via que se poderia demonstrar como sem retorno para o processo da implementação da união orgânica entre a Guiné e Cabo Verde (pelo menos na vigência do regime de partido único ou até à eclosão, sempre eminente, de um golpe de força similar ao despoletado a 14 de Novembro de 1980), quer para o correlativo aplainamento prático de uma via mais inequivocamente soberanista caboverdiana. Estamos em crer que essa via foi sempre perscrutada como opção fundamental pelos patriotas e nacionalistas caboverdianos integrados no partido bi-nacional, o PAIGC, e veio dar razão aos que defendiam com convicção que cada tiro disparado na Guiné, mormente se o fosse por um combatente caboverdiano, era um tiro disparado pela independência de Cabo Verde e, assim, intentavam legitimar o que consideravam ser o seu inequívoco nacionalismo caboverdiano. Tanto mais que, argumentavam, o caminho da Guiné só foi definitivamente encetado por se ter mostrado praticamente impossível levar a cabo uma luta armada não suicidária em Cabo Verde, depois de haver um grupo previamente preparado na Argélia, em Cuba e na União Soviética para o efeito, operacionalmente conduzido pelo Comandante então em ascensão, Pedro Pires, e superior e directamente liderado por Amílcar Cabral, e depois, em resultado de uma decisão do II Congresso concretizadora de um dos itens do seu Testamento Político (Mensagem do Ano Novo de 1973), com uma efectiva estrutura dirigente nacional caboverdiana, a Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC.
QUARTA PARTE
IV
O PERÍODO DO PÓS-25 DE ABRIL DE 1974, AS DISSENSÕES POLÍTICAS E CULTURAIS ENTRE OS DIVERSOS PROTAGONISTAS POLÍTICO-PARTIDÁRIOS EM LIÇA E O PERÍODO DA TRANSIÇÃO POLÍTICA PARA A INDEPENDÊNCIA
1. A preponderância da via pan-africanista demonstrar-se-ia de forma inequívoca no período pós-25 de Abril de 1974 quando, reunidos na Frente Ampla Anti-Colonial (FAAC), os antigos presos políticos, algumas personalidades avessas ao regime colonial-fascista e os estudantes universitários regressados para a mobilização das populações em prol da independência se declararam de forma esmagadora favoráveis ao PAIGC e aos seus princípios e objectivos e contribuíram de forma decisiva para a larga disseminação dos seus postulados ideológicos e das suas palavras de ordem políticas.
Tanto mais que, como estrategicamente previsível, a luta político-armada conduzida pelo PAIGC na Guiné-Bissau foi de valor determinante para o colapso do fascismo português e para a eclosão do 25 de Abril de 1974 e da Revolução dos Cravos, a qual por sua vez inaugurou novas e inéditas perspectivas para o exercício do direito à autodeterminação ao povo caboverdiano e aos demais povos das colónias portuguesas e abriu novas oportunidades democráticas e desenvolvimentistas para o próprio povo português.
Estudantes universitários e liceais e activistas dos centros urbanos ensinavam à juventude curiosa, rebelde e sedenta de acção política a fazer ressoar nas ruas slogans enaltecedores da independência total e imediata, da unidade e luta, da unidade Guiné-Cabo Verde, da unidade e da revolução africanas, da vitória ou morte, da luta continua e contra reacção invariavelmente botada abaixo. Reacção essa que se ia descredibilizando quer pela sua aliança com aquele que era considerado e invectivado como o mentor intelectual do traiçoeiro e bárbaro assassinato de Amílcar Cabral (o General Spínola) e com as suas teses de reciclagem do adjacentismo no recém-inventado federalismo no seio de uma denominada Comunidade Lusíada, quer com os círculos mais retrógrados da Igreja Católica e das classes e categorias sociais oligárquicas, possidentes e privilegiadas dos meios urbanos e rurais.
A via estritamente nacionalista islenha representada por José Leitão da Graça seria, por sua vez, vítima do regresso tardio às ilhas desse político do seu exílio euro-africano (Gana, Senegal e Suécia) e do amalgamento que se pôde fazer da argumentação crioulista de feição neo-claridosa e avessa ao projecto cabraliano e paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde professada pela corrente política ferreamente nacionalista caboverdiana e de extrema-esquerda maoísta e por ele representada com as correntes reacionárias, luso-crioulistas, lusófilas, colonial-saudosistas, adjacentistas/federalistas e spinolistas, muito devido ao facto de, depois da queda em desgraça do Presidente da República Portuguesa, o General António de Spínola, nos acontecimentos do 28 de Setembro de 1974, muitos dos militantes da UDC (União Democrática de Cabo Verde), de João Monteiro, se terem mudado com armas e bagagens e passado para a UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde), de José Leitão da Graça. Tal amalgamento tem lugar, apesar das nítidas diferenças e discrepâncias político-ideológicas entre os dois partidos adversários do PAIGC e, como se disse já, da assumida ideologia pan-africanista, do radicalismo de esquerda de feição maoísta e do independentismo soberanista e crioulista integral, porque adverso à unidade Guiné-Cabo Verde, professados pelo antigo exilado político e veterano resistente anti-colonial José Leitão da Graça. Curiosamente, terá sido a exacerbação de um nacionalismo caboverdiano, alicerçado nas especificidades geográfico-insulanas e culturais mestiças crioulas da caboverdianidade que foram fatais para a conjuntura política de José Leitão da Graça. Sem os pergaminhos míticos de que o PAIGC e os seus dirigentes, combatentes, presos políticos e militantes da clandestinidade eram portadores, o nacionalismo estritamente caboverdiano de José Leitão da Graça foi primacialmente dirigido contra os muito vituperados princípio e projecto de unidade Guiné-Cabo Verde recorrentemente apodada de união forçada com a Guiné, sobretudo numa primeira fase em que o mesmo solitário líder nacionalista e a organização política por ele chefiada exigiam em combativos comunicados (consultar a propósito o livro Golpe de Estado em Portugal...Traída a Descolonização em Cabo Verde!, de compilação por José Leitão da Graça dos documentos, comunicados e memorandos da UPICV) que a questão da unidade Guiné-Cabo Verde fosse objecto preferencial de referendo em lugar da questão da independência, como exigiam os adjacentistas da UDC ou alguns autonomistas, como Henrique Teixeira de Sousa. Por isso mesmo, foi facilmente confundido com a ideologia crioulo-lusitana dos claridosos, na altura em rápido refluxo e acelerado descrédito, do ponto de vista do seu ideário culturalista de promoção da diluição da África na cultura caboverdiana. Nem mesmo o radicalismo de esquerda dos comunicados da UPICV pôde ter acolhimento numa juventude estudantil que, seduzida pelo esquerdismo, o qual fora estigmatizado e desqualificado por Lenin como a doença infantil do comunismo, estava maioritamente com o PAIGC e com o seu ideário pan-africanista e progressista e começava a prepara-se para abertamente se digladiar entre as correntes trotskysta e maoísta na sua disputa pela liderança do processo independentista então em curso e, depois, do processo revolucionário pós-colonial com os chamados vindos de Conacry e das duas Guinés.
Anote-se ainda que, como esclarece o livro Cabo Verde-Os Bastidores da Independência, de José Vicente Lopes, a tentativa de Onésimo Silveira, um conhecido dissidente do PAIGC, e Baltasar Lopes da Silva, um emérito anti-fascista luso-crioulista, de fundação de um partido trabalhista caboverdiano frustrar-se-ia completamente em face da maciça adesão e do peso político do PAIGC, abertamente apóstolo de uma via socialista de desenvolvimento e de um pan-africanismo propugnador da unidade Guiné-Cabo Verde. Curiosamente, Onésimo Silveira viria efectivamente a fundar o seu Partido do Trabalho e da Solidariedade, a partir do seu Movimento para Levantar a ilha de São Vicente, que o levaria à presidência da Câmara Municipal dessa mesma ilha nas primeiras eleições autárquicas pluralistas do Cabo Verde independente e em outras que se lhes seguiram, e do Espaço Democrático, mas sem a participação de Baltasar Lopes da Silva (falecido em 1989) e num contexto de democracia pluripartidária encetada com a Abertura política de 19 de Fevereiro de 1990 e inaugurada e marcada pelas eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991, pelas eleições presidenciais de Fevereiro de 1991 e pelas eleições autárquiças de Dezembro de 1991, todas ganhas de forma esmagadora pelo emergente e oposicionista MpD (Movimento paras a Democracia), vindo as mudanças políticas pós-Abertura Política a serem consagradas na revisão constitucional de Setembro de 1990 da Constituição de Setembro de 1980, a qual seria total e globalmente revista e materialmente revogada com a adopção da Constituição de Setembro de 1992.
Por sua vez, logo após o 25 de Abril de 1974 medidas de grande impacto político foram tomadas ou influenciadas pelas diferentes correntes político-ideológicas conotadas com o PAIGC. Foram os casos da libertação dos presos políticos do Tarrafal, a 1 de Maio de 1974, os confrontos de jovens praienses com os militares portugueses por ocasião do 19 de Maio de 1974, a fundação do jornal independentista Alerta para substituir e em resultado da extinção do oficioso e (arqui-)colonial-fascista semanário O Arquipélago, a recusa dos mancebos caboverdianos aquartelados no Centro de Instrução Militar do Morro Branco, na ilha de São Vicente, em prestar juramento à bandeira portuguesa, a greve geral da função pública, a ocupação da Rádio Barlavento e a mudança da sua linha editorial para um cariz inequivocamente paigcista e a alteração da sua denominação de Rádio Barlavento para Rádio Voz de São Vicente, os inumeráveis comícios, sessões de esclarecimento, saraus culturais e outras acções de mobilização política, precedidas sempre e invariavelmente de “um minuto de silêncio em memória do Camarada Amílcar Cabral, Militante Número Um do nosso Partido e Herói do nosso Povo na Guiné e em Cabo Verde”, bem como de outros mártires guineenses e caboverdianos tombados na luta político-armada na Guiné, como Domingos Ramos, Jaime Mota, Justino Lopes ou Titina Silá, e preenchidas com slogans e excursos político-heróicos às tragédias e histórias do sofrimento dos caboverdianos, destacando-se sempre a escravatura, as fomes, a emigração forçada e o trabalho servil e semi-escravo nas roças de São Tomé e Príncipe e Angola, os inumeráveis vexames sofridos às mãos dos morgados e das autoridades coloniais (incluindo as religiosas), a lendária resistência anti-colonial do povo caboverdiano consubstanciada nas revoltas dos Engenhos, da Achada Falcão e de Ribeirão Manuel (ainda os Valentes de Julangue não eram conhecidos e rememorados) e nas figuras de Lázaro, o salteador sedento de justiça social, e do Capitão Ambrósio, a denúncia da repressão das “nossas manifestações culturais mais genuínas” (com destaque para o batuco, a tabanca, o funaná, o colá sanjon), do inculcamento colonial da vergonha em relação às nossas características raciais de feição ou matriz negras, enfim, quase tudo o que tinha sido aflorado em 1962 por Manuel Duarte no panfleto político “Cabo Verde e a Revolução Africana”, assinado por A. Punói. Tudo muito regado a música revolucionária, nossa e dos outros africanos (com especial destaque para José Carlos Schwarz e os Cobiana Jazz, da Guiné-Bissau), e de muita “poesia de protesto e luta”, da autoria de poetas cabo-verdianos, africanos e progressistas do mundo inteiro. Nos comícios e sessões de esclarecimento, jovens e adolescentes recitavam com fervor “Labanta bo anda fidjo di África/ labanta negro/ obi grito’l povo/África Djustisa Liberdadi” do poema “Labanta, Negro”, de Kaoberdiano Dambará, e os versos de outros poemas, tais o “Poema de Amanhã”, de António Nunes, “Kabral ka More”, de Emanuel Braga Tavares, “Os Flagelados do Vento Leste”, de Ovídio Martins, ““Caminho Longe” e “Capitão Ambrósio”, de Gabriel Mariano, “Canta co alma sem ser magoado” e “Toti Cadabra”, de Arménio Vieira, “Bandera di Strela Negro (Black Star Over Africa”)” e “Batuco”, de Kaoberdiano Dambará, “Poeta e Povo”, de Aguinaldo Fonseca, “Hora Grande” e “Têtêia”, de Onésimo Silveira, “Casebre”, de Jorge Barbosa”, “Ressaca”, de Osvaldo Alcântara”, entre outros também de outros poetas caboverdianos e africanos contestatários ou de denúncia social e política, e entoavam “Sol, Suor e o Verde Mar”, de Amílcar Cabral e hino do PAIGC e da Guiné-Bissau, “Guerra Mendes”, de Abílio Duarte “Tchom di Morgado”, de Caló Querido, “Korda Skrabo”, “Minino Manso” e “Amílcar Cabral, Bu Mori Cedo”, de Tony Lima e do grupo Kaoguiamo, “Cabral ca Morre”, de Daniel Rendall, e “Nos Raça”, de Manuel de Novas, entre muitas outras canções em voga nesses tempos de renovação da música caboverdiana, em especial das suas letras.
Nesta fase, em parte precedente do 25 de Abril de 1974 e da queda do fascismo em Portugal e em Cabo Verde e em parte coincidente com esses mesmos eventos históricos, os princípios pan-africanistas e da unidade Guiné-Cabo Verde incorporados e defendidos no ideário político do PAIGC revelaram-se como encerrando um grande poder mobilizador.
2. Releva nesta circunstância o profundo e subliminar significado da proclamação, a 24 de Setembro de 1973, ainda no calor da guerra colonial/da luta armada de libertação (bi)nacional, do Estado independente e soberano da Guiné-Bissau, do qual Cabo Verde não fazia parte, nem podia fazer parte, quer por razões sumamente candentes e irrenunciáveis, porque fundadas na identidade própria do povo das ilhas e na intangibilidade das fronteiras do seu arquipélago, sendo que todas elas se funda(va)m em princípios de Direito Internacional Público imperativo (jus cogens), designadamente no princípio (direito) da autodeterminação e da independência dos povos coloniais e no princípio da intangibilidade das fronteiras herdadas do colonialismo, princípios esses consagrados em vários instrumentos jurídicos internacionais, designadamente na Carta das Nações Unidas, na Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral das Nações Unidas e na Carta da Organização da Unidade Africana (OUA).
Relembre-se neste contexto que na sua Mensagem de Ano Novo de 1973, considerado o seu Testamento Político, Amílcar Cabral arquitectara a proclamação de um Estado independente e soberano bissau-guineense pela Assembleia Nacional Popular (ANP) desse povo africano (e cujo processo de eleição indirecta estaria quase concluído com a eleição já realizada dos conselheiros regionais no seio dos quais sairiam os deputados à supra-referida ANP), e, posteriormente, a proclamação de um Estado independente e soberano caboverdiano, após a criação das devidas condições político-institucionais para o efeito, designadamente a eleição de uma Assembleia Nacional Popular caboverdiana. Esse Estado independente e soberano caboverdiano deveria ser distinto do Estado independente e soberano bissau-guineense, mesmo sendo inegável que Amílcar Cabral continuava a almejar a associação entre ambos os Estados e a pugnar pela união orgânica de ambos, antevendo para prazo não muito longínquo a criação de uma Assembleia Suprema do Povo dos dois países, desde que assim fosse a vontade expressa dos respectivos povos para o efeito consultados em referendo e/ou das respectivas Assembleias Nacionais Populares. Como anteriormente referido, já no Memorando apresentado ao Governo português no ano de 1960, Cabral defendera, de forma inequívoca, a existência prévia de poderes soberanos independentes em cada um dos dois países como pressuposto jurídico-constitucional e político-institucional para qualquer eventual unidade orgânica entre os mesmos.
3. Acontecimentos de grande relevância política rodeiam esta fase de aceleração da internalização insular dos princípios pan-africanistas conexos com o projecto de unidade Guiné-Cabo Verde. São os casos do sucessivo regresso a Cabo Verde, ao longo do ano de 1974 e a partir do mês de Maio, dos combatentes e de dirigentes do PAIGC, como Zezé Manco, Toi de Suna, Lela Guerrilheiro, Henrique Pereira, Corsino Tolentino, João Pereira Silva, Tchifon, João José Lopes da Silva (Jota-Jota), Álvaro Dantas, Carlos Reis, Agnelo Dantas, Zezinha Chantre, Paula Fortes, Dori Silveira, Olívio Pires, Osvaldo Lopes da Silva, Silvimo da Luz, Pedro Pires, entre muitos outros dirigentes, responsáveis, comandantes, combatentes e militantes caboverdianos, culminando, já a 27 de Fevereiro de 1975, na chegada à cidade da Praia de Aristides Pereira, Secretário-Geral do PAIGC, todavia permanecendo na Guiné-Bissau o membro do Secretariado e do CEL do PAIGC José Araújo e os Comandantes Honório Chantre, Júlio de Carvalho e Manuel dos Santos integrados na Direcção Superior do PAIGC e nas FARP da Guiné-Bissau.
Relevante no que se refere a Aristides Pereira parece ter sido a sua implícita recusa de o mais alto dirigente político caboverdiano em assumir de forma imediata a candidatura à Presidência de uma República Unida da Guiné e Cabo Verde, a ser proposta à reunião do Conselho Executivo da Luta, e que teve lugar a 25 de Maio de 1975, menos de dois meses antes da proclamação da independência política das ilhas caboverdianas programada para 5 de Julho de 1975. É nessa sequência que Aristides Pereira é formalmente indigitado pelo alto órgão executivo do PAIGC para se apresentar à ANP caboverdiana como candidato único do partido-movimento de libertação bi-nacional para exercer o alto cargo de Chefe de Estado caboverdiano, isto é, de Presidente da República de Cabo Verde, e Pedro Pires é escolhido pela ANP, por proposta do Presidente da República também eleito pela ANP, para ser o primeiro Primeiro-Ministro do Cabo Verde independente.
Relembre-se que a 30 de Junho de 1975 tiveram lugar as eleições para a Assembleia Legislativa soberana e constituinte do Estado de Cabo Verde, apresentando-se às mesmas eleições e nos termos da lei eleitoral vigente grupos de cidadãos total e completamente dominados pelo PAIGC, o qual vinha agindo como partido único de facto desde a neutralização política dos partidos adversários do PAIGC na sequência dos acontecimentos que levaram em Dezembro de 1974 ao encarceramento de alguns dos seus altos responsáveis e importantes militantes no Presídio do Tarrafal (ainda que em regime de recreio).
As eleições de 30 de Junho de 1975 tiveram uma elevada participação com mais de oitenta por cento de votos sim, isto é, favoráveis aos candidatos apresentados nas listas dos grupos de cidadãos emanados do PAIGC. Por isso, e porque destituídas da competitividade entre programas políticos apresentados por candidatos de diferentes forças políticas, as mesmas eleições afiguraram-se como de natureza eminentemente referendária ou plebiscitária. Na verdade, elas vieram ratificar os acontecimentos de Dezembro de 1974, consagrando a um tempo i. o regime político de partido único do PAIGC; ii. o carácter socializante desse mesmo regime político e iii. o princípio cabralista e o projecto paigcista de unidade Guiné.-Cabo Verde e de união orgânica pós-colonial entre as Repúblicas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. É, assim que a recém-eleita Assembleia Legislativa soberana e constituinte se transfigura em Assembleia Nacional Popular, elege o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e o Presidente da Assembleia Nacional Popular, todos propostos pelo PAIGC, procede pela voz do Presidente da Assembleia Nacional Popular, a 5 de Julho de 1975, à proclamação da independência política e da soberania nacional e internacional do Estado de Cabo Verde, como República de Cabo Verde e aprova uma LOPE (Lei da Organização Política do Estado), até ser aprovada a primeira Constituição Política da República de Cabo Verde, parecendo assim dar sequência aos trâmites todos previstos nos Acordos de Lisboa celebrados pelo Governo português e pelo PAIGC. Anote-se que Pedro Pires foi o putativo candidato à Presidência da República de Cabo Verde, caso Aristides Pereira quisesse aguardar a assunção da Presidência de uma eventual República Unida da Guiné e Cabo Verde e não houvesse a alegada oposição de Luís Cabral, Secretário-Geral Adjunto do PAIGC e Presidente do Conselho de Estado (equiparado a Presidente da República) da Guiné-Bissau, à pretensão de Pedro Pires.
O regresso apoteótico de Aristides Pereira a Cabo Verde com o seu desembarque no aeroporto da Praia, a 27 de Fevereiro de 1975, e, depois, o seu regresso definitivo ao país natal com vista à assunção do cargo de Presidente da República de Cabo Verde, mesmo se conservando o altíssimo cargo supra-nacional de Secretário-Geral do PAIGC e, deste modo, a pretensão a uma futura Presidência de uma eventual República Unida da Guiné e Cabo Verde, bem assim os demais actos acima mencionados são de indubitável importância, quer para o condicionamento da abertura de uma via que se poderia demonstrar como sem retorno para o processo da implementação da união orgânica entre a Guiné e Cabo Verde (pelo menos na vigência do regime de partido único ou até à eclosão, sempre eminente, de um golpe de força similar ao despoletado a 14 de Novembro de 1980), quer para o correlativo aplainamento prático de uma via mais inequivocamente soberanista caboverdiana. Estamos em crer que essa via foi sempre perscrutada como opção fundamental pelos patriotas e nacionalistas caboverdianos integrados no partido bi-nacional, o PAIGC, e veio dar razão aos que defendiam com convicção que cada tiro disparado na Guiné, mormente se o fosse por um combatente caboverdiano, era um tiro disparado pela independência de Cabo Verde e, assim, intentavam legitimar o que consideravam ser o seu inequívoco nacionalismo caboverdiano. Tanto mais que, argumentavam, o caminho da Guiné só foi definitivamente encetado por se ter mostrado praticamente impossível levar a cabo uma luta armada não suicidária em Cabo Verde, depois de haver um grupo previamente preparado na Argélia, em Cuba e na União Soviética para o efeito, operacionalmente conduzido pelo Comandante então em ascensão, Pedro Pires, e superior e directamente liderado por Amílcar Cabral, e depois, em resultado de uma decisão do II Congresso concretizadora de um dos itens do seu Testamento Político (Mensagem do Ano Novo de 1973), com uma efectiva estrutura dirigente nacional caboverdiana, a Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC.
Por sua vez, argumentavam, sem a participação caboverdiana na luta político-armada na Guiné não seria possível (ou seria extremamente difícil) fazer vingar junto das autoridades portuguesas o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e à independência, negado ou relativizado por aqueles caboverdianos que ainda navegavam nas águas pantanosas quer de “uma autonomia político-administrativa no quadro de uma Nacão portuguesa doravante progressista”, como defendia o médico e escritor anti-fascista Henrique Teixeira de Sousa, quer do federalismo adjacentista spinolista, comummente considerados como modelos apressados e oportunistas de reciclagem do mal-fadado adjacentismo colonial.
A independência política de Cabo Verde ocorreria, assim, em condições assaz favoráveis, na medida em que foi possível chegar-se a dois objectivos cruciais:
a) A obtenção de uma ampla adesão popular para a causa da independência política, sobretudo entre as camadas jovens e urbanizadas, o funcionalismo público, o operariado, os empregados comerciantes e os camponeses pobres e sem terra. Para esse efeito, foram decisivas tanto a catarse cultural no sentido da libertação da plenitude da identidade caboverdiana e da recuperação da dimensão afro-crioula, da co-matriz afro-negra e da margem continental africana da mesma identidade como também a euforia e a confiança no futuro da nossa terra despoletadas com as lutas políticas no pós-25 de Abril.
Tais estados anímicos foram potenciados, em grande medida, pela participação caboverdiana não só na guerra de libertação (bi)nacional levada a cabo com sucesso na Guiné-Bissau como também na saga heroica anti-colonial realizada nas difíceis condições da clandestinidade política nas ilhas e tornada visível na libertação dos presos políticos do Tarrafal de Santiago, logo no primeiro de Maio de 1974, no regresso dos presos políticos do Campo de S. Nicolau localizado na Foz do Cunene no deserto do Namibe, no regresso triunfal e apoteótico daqueles militantes, combatentes, responsáveis e dirigentes caboverdianos directamente engajados na luta político-armada na Guiné-Bissau e/ou comprometidos na luta político-diplomática do PAIGC irradiada pelo mundo a partir da Guiné-Conacry, tendo sido de transcendente importância a mitificação de Amílcar Cabral quer como um profeta e sábio, tal um Moisés negro, que não pôde pisar a Terra Prometida, quer ainda como um Messias negro e combatente, tal um Jesus Cristo afro-crioulo.
Tais acontecimentos demonstraram-se como sumamente necessários para uma catarse psicológico-cultural de amplas repercussões identitárias e político-ideológicas e, assim, para a total ruptura com o assimilacionismo colonial e a tutela assistencial portuguesa, considerada até aí tanto em franjas extensas das camadas mais humildes e vulneráveis das populações como também por importantes sectores das elites letradas, burocrático-administrativas, comerciais e fundiárias do povo das ilhas como indispensável, senão insubstituível, para a viabilização da emigração caboverdiana para Portugal, para a manutenção dos planos de fomento e dos trabalhos públicos de apoio às populações (vulgarmente conhecidos como trabalhos de estrada), para o fornecimento num quadro suficientemente estável de todos os géneros de mercadorias e produtos comerciais e, assim, para a garantia da simples sobrevivência física das camadas sociais humildes e vulneráveis do povo caboverdiano e para a manutenção do nível de vida a que se habituaram as camadas sociais mais remediadas e abastadas das nossas ilhas.
b) A captação de recursos, de diversos quadrantes político-ideológicos, necessários, senão indispensáveis, para a viabilização do jovem Estado nacional soberano, para a sobrevivência do seu povo, apavorado, ou pelo menos, receoso, pela ameaça sempre latente das fomes, e para a criação e potenciação de força anímica com vista à prossecução do futuro desenvolvimento sustentado do país.
Como é reconhecido pelo próprio Onésimo Silveira (mesmo se com algum contra-gosto), o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde consubstanciado na unidade de acção entre guineenses e caboverdianos comprovou-se, assim, historicamente como de grande utilidade e de inegável relevância para a obtenção da independência política dos povos da Guiné e de Cabo Verde.
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