É fundamental que o MPD, enquanto partido hoje no poder e herdeiro do pluralismo democrático conquistado a partir de 1991, respeite o legado da independência com a grandeza e a responsabilidade de Estado que o momento exige. Corrigir distorções não é apenas um dever político, mas um imperativo moral e patriótico. O reconhecimento do papel do PAIGC, de Cabral, e de todos os combatentes da liberdade da pátria não é um favor a fazer à oposição ou a um partido, mas um tributo de justiça à fundação da República. A independência de Cabo Verde em 5 de julho de 1975 não foi um presente do 25 de Abril, mas uma conquista acumulada de décadas de resistência silenciosa e armada, de organização política, de mobilização, de sacrifícios e de esperança.
No século XX, enquanto o mapa político do continente africano se redesenhava sob os ventos da descolonização, Portugal persistia numa teimosa cegueira imperial. A ideia do “império indivisível” sustentada pelo Estado Novo ignorava o clamor dos povos africanos por autodeterminação e liberdade. Contra essa intransigência, ergueram-se vozes, consciências e armas. Entre elas, destacou-se a de Amílcar Cabral, cuja visão estratégica e ética revolucionária marcou de forma indelével o caminho para a independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.
As causas dos movimentos independentistas nas colónias portuguesas foram múltiplas. Em primeiro lugar, a estrutura profundamente desigual do colonialismo português, marcada por exclusão racial, trabalho forçado, pilhagem de recursos e repressão cultural, foi geradora de indignação e resistência.
Além disso, o contexto internacional foi determinante: a vitória contra o fascismo na Segunda Guerra Mundial, o avanço dos processos de descolonização na Ásia e noutras partes de África, bem como o nascimento da ONU e da ideia de direitos universais, fortaleceram os argumentos dos nacionalistas africanos.
Como afirma o historiador René Pélissier, “o colonialismo português persistiu num modelo arcaico e autoritário, mantendo as colónias como meros espaços de exploração” (1986). E, como sublinha Eric Hobsbawm, “a educação colonial criou as ferramentas para que os próprios colonizados liderassem o processo da sua libertação”.
As respostas à opressão colonial variaram entre os territórios, mas em todos eles surgiram movimentos organizados de resistência. Em Angola, destacaram-se o MPLA, FNLA e UNITA. Em Moçambique, a FRELIMO. Em São Tomé e Príncipe, o MLSTP. Já na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, o protagonista foi um só: o PAIGC – Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde.
Fundado em 1956 por Amílcar Cabral e outros nacionalistas, o PAIGC assumiu uma estratégia de luta armada na Guiné e de mobilização política e diplomática para Cabo Verde. “Cabral personificou uma liderança política africana moderna: consciente do peso da cultura, do papel da educação e da luta armada como último recurso”, escreve Patrick Chabal em "Amílcar Cabral: Revolutionary Leadership and People's War" (1983).
A guerra de libertação começou em 1961 em Angola, em 1963 na Guiné-Bissau e em 1964 em Moçambique. Em Cabo Verde, não se travou combate armado direto, mas o envolvimento de centenas de cabo-verdianos nas fileiras do PAIGC, especialmente na frente da Guiné, foi decisivo.
Segundo o historiador António de Pina, “embora em Cabo Verde não se tenha verificado um teatro de guerra, o envolvimento dos caboverdianos no esforço de libertação da Guiné-Bissau foi fundamental”. A luta pela independência foi travada com armas na mata guineense e com ideias nos bairros populares de Praia, Mindelo e Assomada, nos círculos estudantis em Lisboa, Dakar e Paris, e entre as comunidades cabo-verdianas na diáspora.
A viragem decisiva veio de dentro do próprio regime colonial. Em 25 de abril de 1974, jovens capitães portugueses, exaustos com a guerra colonial e inspirados pelo ideal democrático, derrubaram o regime salazarista-marcista numa revolução pacífica — a Revolução dos Cravos. Como explica António Costa Pinto, “foi a guerra colonial que precipitou a queda do regime. O impasse militar, os custos humanos e económicos tornaram o império insustentável” (O Fim do Império Português, 2001).
Com o novo governo democrático português, iniciou-se um processo acelerado de descolonização. Entre 1974 e 1975, todas as colónias portuguesas em África conquistaram a independência.
Cabo Verde proclamou a sua independência a 5 de julho de 1975, num ambiente de unidade política e de relativa estabilidade, sob a liderança do PAIGC e de Aristides Pereira, primeiro Presidente da República.
A independência cabo-verdiana foi, em larga medida, o resultado de uma luta travada fora das suas fronteiras geográficas, mas profundamente enraizada na identidade e consciência nacional do seu povo. “Cabo Verde soube capitalizar uma luta travada à distância. A consciência nacionalista foi construída no exílio, na mobilização da diáspora e no apoio à luta na Guiné”, lembra o jornalista Nuno Rebocho.
A descolonização portuguesa foi o fim de uma ilusão imperial e o nascimento de novas nações. No caso de Cabo Verde, a independência resultou de um longo processo de resistência política, organização e solidariedade pan-africana, ancorado na figura de Amílcar Cabral e nos milhares de homens e mulheres anónimos que acreditaram, como ele, que “as armas só têm valor se estiverem nas mãos de um povo consciente”.
Como bem sintetiza Frederick Cooper, “a descolonização portuguesa foi, simultaneamente, um processo interno de libertação política e uma vitória das lutas africanas pela dignidade e autodeterminação” (Decolonization and African Society, 1996).
Portanto, a comemoração dos 50 anos da independência de Cabo Verde não pode, nem devia, ser capturada por narrativas distorcidas que obscurecem a verdade histórica e silenciam os protagonistas legítimos da luta de libertação nacional.
É fundamental que o MPD, enquanto partido hoje no poder e herdeiro do pluralismo democrático conquistado a partir de 1991, respeite o legado da independência com a grandeza e a responsabilidade de Estado que o momento exige. Corrigir distorções não é apenas um dever político, mas um imperativo moral e patriótico.
O reconhecimento do papel do PAIGC, de Cabral, e de todos os combatentes da liberdade da pátria não é um favor a fazer à oposição ou a um partido, mas um tributo de justiça à fundação da República.
A independência de Cabo Verde em 5 de julho de 1975 não foi um presente do 25 de Abril, mas uma conquista acumulada de décadas de resistência silenciosa e armada, de organização política, de mobilização, de sacrifícios e de esperança.
O que se espera é que cada um contribua, com dignidade institucional, para uma celebração inclusiva, honesta e pedagógica, que una os cabo-verdianos em torno daquilo que realmente importa: a memória partilhada da liberdade e democracia, da dignidade e da construção nacional.
Comentários