Interior de Santiago: um espaço histórico especial de exclusão?!
Ponto de Vista

Interior de Santiago: um espaço histórico especial de exclusão?!

Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara. (Saramago, Ensaio sobre a Cegueira)

Por volta das seis horas da manhã, ainda em meio à geada e maresia matinais, caminhava, na Achada Santo António (ASA), em direção à Quebra Canela para o meu exercício habitual. Ao lado do hotel Santiago, deparei-me, para a minha surpresa, com uma moça na casa dos vinte anos, sentada num banquinho, com uma criança repousando às suas costas (bombudo), a cabeça recaída sobre o dorso da mãe, encoberta por um pano azul… em sono profundo. No chão, viam-se hortaliças (tomates, cebolas, repolhos, etc.) e frutas (bananas, maçãs, peras, etc.), embaladas em saquinhos de plástico, com preço pré-definido, pronto a vender. A cada transeunte que por ali passava, ela alongava a vista, rua adentro, na expetativa de um freguês. Numa outra ocasião, deambulando pelas bandas do conhecido largo da Bolsa de Valores, ecoara aos meus ouvidos uma voz musicada és banana, és banana, és bananaaaaaaa. Segundos depois, assomara uma senhora esguia, já na casa dos 50, que transportava à cabeça, debaixo de um sol a pino, um balde apinhado de frutas. Abeirando-se de mim, com um olhar lânguido, disse-me: “é nhô, nhu dam 20 escudos pan kumpra pom” (…). Já em casa, pus-me a matutar sobre mais uma jornada (a)normalizada dos encontros fortuitos.

Todo este introito, para dizer que a pandemia causada pelo vírus Sars-CoV2 colocou a descoberto inúmeras vulnerabilidades socioeconómicas estruturais do país, cujas consequências nefastas se repartem de forma desigual, tanto entre e intra-ilhas como no seio das gentes que nelas residem. Santiago é a ilha mais infetada e afetada pela pandemia, pois, representa mais de 75% dos casos registados da doença e, em termos proporcionais e absolutos, a esmagadora maioria da população pobre do país. A nosso ver, a crise sanitária desencobriu a vida de pandemónio de quem sobrevivia, há muito, numa pandemia da pobreza.

Se é verdade que os efeitos do SARS-CoV-2 e da seca prolongada atingem todas as ilhas, no entanto, não devemos, sob pena de omissão, coibirmo-nos de perguntar quem e de onde são e serão as pessoas mais atingidas pela crise sanitária? Parece-nos que quando olhamos para as periferias da Praia, Sal-Rei, Espargos e Santa Maria restar-nos-ão poucas dúvidas quanto aos mais afetados e penalizados: na sua esmagadora maioria, são os originários do interior de Santiago

Por interior de Santiago, denominamos o espaço geográfico histórico que resulta, a partir dos finais do século XVII, da mobilidade da população das duas capitanias fundadoras do povoamento de Cabo Verde situadas na Ribeira Grande de Santiago e Alcatrazes. Trata-se de uma zona socioeconómica, cuja população originária era composta maioritariamente por negros escravizados e por um punhado de brancos da terra. Estes entreviam no movimento de interiorização uma forma de recriar as condições de reprodução violenta do capital económico, entretanto, enfraquecido com a mudança do epicentro do tráfico negreiro de Santiago de Cabo Verde para a Costa da Guiné. Meio século após esse deslocamento, eis alguns traços dessa população inserta na Carta que o Bispo de Cabo Verde mandara ao Rei, no segundo quartel do século XVIII:

A grande maioria dessa população, que à época representava 47% dos habitantes do arquipélago, foi aquela que historicamente esteve mais exposta à violência e ao desprezo dos sistemas escravista e colonial e aos efeitos horríveis dos longos ciclos de seca geradores de mortandades assombrosas. Foi apartada das oportunidades económicas, através de mecanismos de exclusão de acesso à terra e menores chances de admissão à escolarização, como revelam as estatísticas escolares do final desse século XIX.

Essa população integrou-se, gradativamente, no sistema económico por um longo processo de recusa ao aviltamento da exploração sob a liderança dos morgados da ilha e pela construção de formas de trabalho por conta própria. As ondas de transformações políticas, económicas e culturais geradas pelos movimentos liberal e republicano, que ecoaram na província ao longo do século XIX, tocaram de forma extremamente marginal a essas gentes, as quais foram submetidas, constantemente, a estratégias de reescravização e discriminação material e simbólica.

Na verdade, somente na segunda metade de século XX, na sequência das vagas de movimentos independentistas, é que o Estado tardo-colonial português repolitiza as suas funções, incorporando essa população na esfera social, através de obras públicas (vulgo, trabalho de apoio) e expansão das escolas primárias (posto-escolar). Aquando dessa virada, parte importante dessa população pobre já havia entrevisto na emigração, sobretudo para a Europa, uma forma de aquisição de rendimento económico para a sua sobrevivência na diáspora e para o sustento dos familiares na terra natal. Ademais, foi por iniciativa própria que reabilitaram as suas habitações, substituindo a cobertura em palha pela telha e desta pela de betão – epopeia celebrizada por Zezé di Nha Reinalda no monumental cântico “Guentis d’Azágua”. Além do mais, erigiram um eficiente sistema de transportes rodoviários entre e inter-localidades, mediante o financiamento de veículos coletivos (das lendárias Bedford e Dina de caixas abertas, evoluindo depois para as confortáveis Hiace e Hilux), viabilizando a rápida mobilidade de pessoas entre as várias comunidades até então encravadas.

Com o advento do Estado nacional, as mudanças introduzidas nas condições de acesso à terra, educação, saúde, água, saneamento, eletricidade, captação da água e estradas de ligação entre e intra-concelhos contribuíram para melhorar as condições de vida dessas populações. Contudo, volvidos 45 anos após a independência e à beira dos 30 anos da institucionalização do regime democrático, os concelhos do interior ostentam os piores indicadores nacionais, sendo o seu o PIB per capita de 38% do valor médio, a taxa de subemprego quase duas vezes superior à média nacional, a pobreza absoluta atingindo quase a metade de sua população, o acesso à água e ao saneamento muito abaixo das taxas globais, como se denota no quadro infra.

Contrariamente ao que uma certa mindset (mentalidade) propala nos media, a principal periferia de Cabo Verde, quer em termos de acesso a rendimentos quer em termos de acesso a serviços básicos, é sem margem de dúvida o interior de Santiago que, curiosamente, dista a poucos quilómetros da capital. Portanto, aferir os alegados efeitos do “centralismo” com base no critério milhas marítimas é, no mínimo, inconsistente. Aliás, a proximidade e a distância do Estado não se mensuram em função de espaçamentos físico-geográficos, mas, acima de tudo, pela (in)capacidade de possuir redes de influência sobre o aparato político-administrativo na definição e implementação de medidas de política, bem como na habilidade de as inscrever nos meios de comunicação social. Por isso, não é de todo verossímil que a centralização favorece mais a ilha de Santiago, a menos que reduzamos Santiago à Cidade da Praia. Mas, se sim, seria interessante escrutinar quem dela mais beneficia (empresários, classe política, elite burocrática, estrangeiros ocidentais e asiáticos, etc.)

Nas últimas duas décadas, importa realçar, o interior da Ilha beneficiou de avultados investimentos através da edificação de infraestruturas de acessibilidade (estradas circundantes e vicinais asfaltadas), eletrificação (central única), mobilização da água superficial através de barragens e diques, tendo em vista a criação de condições para alavancar a sua economia, integrando-a de forma mais competitiva na produção riqueza da ilha e do País. Em relação às barragens, tudo indica que, possivelmente, ao invés de as espalhar para o interior de Santiago e em outras ilhas sem uma avaliação rigorosa do seu impacto, seria mais racional construí-las em menor número, entretanto, com toda a cadeia conexa completa (retenção da água, construção de infraestruturas de irrigação e de correção torrencial a montante, gestão, manutenção, formação, produção e comercialização). Infelizmente, nessas horas, o frenesim político e a cultura do sta na moda falam mais alto.

Recentemente, as intervenções do Governo, em colaboração com as autarquias, quer através de apoios aos agricultores (vale-cheque-seca) quer mediante à (re)qualificação urbana, ajudam a aliviar e a distender os efeitos negativos das secas, a embelezar os espaços urbanos e elevar alguma autoestima. Contudo, não constituem, nem de perto nem de longe, uma resposta estruturante capaz de debelar, a médio e longo prazo, o desemprego, melhorar a qualidade vida das famílias de forma sustentável e, consequentemente, reduzir o êxodo rural acelerado e seus efeitos – às vezes negativos –, seja na origem seja no destino.

Neste sentido, importa perguntar por que motivos os importantes investimentos canalizados para o interior da ilha não se traduzem na melhoria significativa nas condições de vida de parte importante das gentes que nele residem, quer em matéria de acesso a serviços básicos quer em termos de empregos e rendimentos? Por que razão a ilha de Santiago continua a funcionar de forma espartilhada e não como unidade, em termos políticos e de ordenamento socioeconómico?

A nossa hipótese geral consiste em considerar que um dos principais fatores é a contínua incapacidade de superar a cultura do isolamento – outrora uma estratégia de defesa ante a brutalidade dos sistemas escravista e colonial – que contribui para a fragmentação da ilha em espaços territoriais desintegrados, impedindo a construção de uma perspetiva agregadora. Seguidamente, desdobraremos esta hipótese principal em algumas de índole secundária, a saber:

Em primeiro lugar, a arquitetura política resultante da última alteração ao Código Eleitoral aprovada em 2010, que institui, no território nacional, o circulo-eleitoral-ilha, introduz uma exceção não explicitada que divide Santiago em dois círculos políticos demarcados pelos pontos cardinais Sul e Norte (como se não houvesse Centro, Este e Oeste) a partir das fronteiras da velha capitania de alcatrazes (São Domingos), fazendo com que as águas do mar da baía da freguesia de Nossa Senhora da Luz (Praia Baixo) adentrasse como linha marítima imaginária instituindo duas “ilhas-terra”. A nosso ver, a di-visão do mercado eleitoral em dois círculos persiste ainda porque beneficia, sobretudo, os dois maiores partidos políticos (MpD e PAICV), uma vez que a conversão dos votos através do método de hondt acaba por lhes ser mais favorável, pois, as sobras dos votos arrecadados pelos pequenos partidos em cada um dos círculos resultam em desperdício na contabilidade global.

Em segundo lugar, as elites políticas do Sul e do Norte precisam de uma zona de conforto exclusiva para, a despeito de combater a pobreza e/ou promover a riqueza, terem “uma população própria” e pobre com as suas características supostamente idiossincráticas a quem possam, no seu entender, legitimamente representar. Entretanto, as consequências dessa departição têm sido prejudiciais para as populações pobres dos dois lados da barricada. De um lado, a pobreza continua a multiplicar-se no interior e no cinturão periurbano da capital, o que, do ponto de vista do negócio político, não tem sido, infelizmente, nada mau, visto que permite baixar os custos de legitimação política, especialmente para grande parte da população pobre que viveu historicamente submetida a práticas de favores e de relações de compadrio e, como tal, distante de uma cultura de direito legítimo às políticas públicas do Estado. Com efeito, a reprodução da pobreza rural e urbana – ainda que não seja por intenção deliberada de nenhuma autoridade pública – tem contribuído para a exploração exaustiva das fragilidades dessas populações, instituindo uma espécie de voto “baxa-panha” (baixo custo).

Em terceiro, o insulamento de Santiago em dois polos eleitorais reproduz as antigas geografias territoriais e identitárias e, com elas, os (re)ssentimentos históricos resultantes das diversas formas de discriminação racial, económica e cultural a que comunidades periféricas ao núcleo urbano, tanto na capital como no campo, acabaram por ficar sujeitas por ação de franjas das elites locais e nacionais. Resta saber se isso não soa a um resgate de velhas querelas da di-visão entre os chamados “de dentro” e os “de fora”, as tais emanações do passado de má memória, por parte das novas elites locais, enquanto estratégia para sua própria sobrevivência e reprodução.

Em quarto lugar, a persistência desse imaginário de exclusão no seio das elites locais é fruto, provavelmente, de uma dupla exclusão simbólica. De um lado, a hétero-exclusão posta em marcha durante vários séculos pelos donos da terra e do poder local, afastando a população pobre campesina das oportunidades de inclusão, enquanto sujeitos no processo produtivo e beneficiários de políticas públicas promovidas pela esfera estatal, especialmente nos períodos em que por estas bandas ressoou alguma ventania liberal e republicana a partir da segunda metade do século XIX. Do outro, como consequência da primeira, num contexto de maior autonomia, é a auto-exclusão enquanto estratégia de defesa, tendo em vista a monopolização de um campo político próprio destinado à autoafirmação. Entrementes, nessa luta fratricida em busca do (re)conhecimento persiste ainda uma espécie de dispositivo percetivo subalterno que condiciona a forma como parte importante da nova classe política local e nacional visualiza os problemas socioeconómicos graves dessa população pobre campesina.

Se não, como explicar que se considere normal que milhares de pessoas continuem a viver à míngua no interior Santiago à espera do “Governo-chuva”? Como aceitar que mesmo quando elas se deslocam para os centros urbanos mais dinâmicos como Praia, Sal e Boa Vista se consente que sobrevivam em proto-bairros (quase guetos) em condições de salubridade infra-humanas e sujeitas a múltiplas formas de assédio, preconceitos sociais, nalguns casos com laivos de índole racista? Como normalizar a vida de quem tem de trabalhar muitas vezes mais de 10 a 12 horas diárias, levando à cabeça 10 a 20 kg de mercadorias para, no final da jornada, amealhar escassos 200$00 a 300$00/dia para sustentar a sua extensa família? Como normalizar a repressão policial que sobre essa população pobre recai nos interstícios do Platô, no Palmarejo e nas bermas das estradas onde permanecem, às vezes, pela noite adentro, sem que se lhes ofereçam alternativas credíveis? Enfim, como poderá alguém imaginar que essas situações aviltantes sejam escolhas racionais dessa população pobre? Ora, se isso é normal, o que será, afinal, anormal? O pior de tudo isto é a tentativa de se veicular a ideia de que essa população periférica, por estar próxima, do ponto de vista espacial, da luxúria em que vivem os novos ricos e o “estamento político-burocrático” do “partido-Estado”, também estaria, por osmose, em situação de semelhante fartura.

Praia, em particular, e Santiago como um todo, têm uma dívida enorme para com essa população do interior que soube, com resiliência, construir sua própria trajetória de auto-inserção (uma clara legitimação do aforismo santiaguense “nka por si”). A então capital da província, antes de receber os fluxos migratórios significativos, especialmente do interior da ilha a partir dos anos 70, era uma urbe pasmaceira – com aquele ambiente em ritmo lento sem eira nem beira – sendo o Platô um oásis apinhado de funcionários vivendo à espera do salário certo do fim do mês para sustentar uma vida modesta. Foi esse fluxo de pessoas, com labor de formiga, aproveitando das despesas públicas e da mobilidade de capital fundiário e comercial, sobretudo, do interior da ilha e do Fogo, que recriou novos mercados de feira, um montão de pequenas lojas longan-longau, dando pujança à microeconomia da capital.

Portanto, aguarda-se, com urgência, a implementação de uma estratégia ambiciosa de inclusão dessa população pobre do interior, pois, os clusters /plataformas Praça Financeira e Parque Tecnológico podem contribuir para densificar a acumulação de riqueza, mas não terão efeitos substanciais na redução drástica do desemprego e no acesso a rendimentos para franjas significativas dessa população.

Ademais, espera-se que no Pós-Covid19 – ideal seria que fosse agora no chamado “novo-normal” –, as autoridades públicas tenham em consideração que é impossível superar os efeitos socioeconómicos desta crise, a não ser que se equacione de vez os problemas estruturais do interior da ilha de Santiago, cuja população é superior a 100.000 pessoas, sendo que mais de metade vive em situação de pobreza severa e continua exposta, quer aos efeitos económicos da pandemia quer à seca prolongada que a flagela de forma dura desde há três anos consecutivos.

O desenho de uma estratégia eficaz e sustentável aos problemas acima referenciados deve assentar-se numa abordagem holística e integradora da ilha e não num somatório de estratégias individuais e avulsas de cada município. A economia de Santiago no seu todo funciona cada vez mais de forma conexa. Tanto assim é que Praia e Interior dependem do fluxo económico de um e de outro, numa relação de interdependência, pese embora em proporção dissemelhante. Não obstante cada município constituir-se numa unidade político-administrativa, esta não é um espaço económico autónomo, mas interconectado aos fluxos económicos globais da ilha como um todo e de Cabo Verde. Eis por que se nos afigura mais ajustado falar-se em “economia no concelho” do que em “economia do concelho”.

Então, se o mercado da ilha funciona de forma interdependente, não haverá nenhuma razão plausível para que a planificação geral e o ordenamento socioeconómico de Santiago não passem a ser pensados e realizados numa perspetiva integrada e integradora e jamais de modo fragmentado. Só assim se justificam as somas importantes despendidas na elaboração, por exemplo, dos instrumentos de ordenamento do território tais como Esquema Regional de Ordenamento do Território e Plano Diretor Municipal (PDM), na prática, de eficácia duvidosa.

Estamos em crer que uma das prioridades para o interior da ilha é a conceção e implementação, por um lado, de um ambicioso projeto industrial, capaz de potenciar a produção agropecuária e pesqueira (por exemplo, com epicentro num corredor entre Santa Catarina, São Salvador do Mundo e Santa Cruz,) e, por outro, de um espaço com potencial para o desenvolvimento, além da agropecuária, do turismo de natureza, balnear e cultural (São Domingos, São Lourenço dos Órgãos, São Miguel e Tarrafal), capazes de servir a ilha como um todo que é. Estes dois espaços criariam uma nova dinâmica económica, contribuindo para a redução drástica do desemprego e propiciariam melhores condições de fixação das populações no interior da ilha e, por arrastamento, descomprimindo a pressão sobre a capital. Para o efeito, urge definir um conjunto de incentivos para que os investidores nacionais e estrangeiros possam se interessar por uma empreitada dessa envergadura.

Além disso, é necessário dinamizar a Associação dos Municípios de Santiago (AMS), revigorar os gabinetes técnicos especializados, bem como colocar em marcha dispositivos de concertação entre a classe política (eleitos locais de todos os municípios da ilha) e as organizações da sociedade civil. Não através dos tradicionais, dormentes e comensais fóruns, seminários e outros certames em que a maioria dos participantes são transformados em meros espetadores de sessões de catarse política, mas sim, de espaços de diálogo crítico propositivo. Só assim será possível cada um ter a largueza de vista para mirar não só a sua árvore (autarquia), mas, acima de tudo, a floresta (a ilha como um todo), possibilitando a construção de uma visão e o delineamento de uma estratégia de desenvolvimento integradora da ilha. A

Nesta perspetiva, é preciso ter claro que sem a criação de oportunidades económicas para as pessoas no interior da ilha não haverá como impedir a degradação do espaço urbano na Praia e não só (veja-se o caso das ilhas do Sal e da Boa Vista), com graves problemas sociais que sobejamente conhecemos. Ou seja, se não se fizer um investimento a montante (Interior) não haverá como corrigir a jusante (Praia). Seria o mesmo que agir nos efeitos sem atuar nas causas estruturais ou, então, como se diz no jargão popular, “apanhar a água com o binde”. Outrossim, é preciso considerar que o investimento no interior da Ilha é um direito que assiste às pessoas que nele habitam, que não devem ser tratadas como sub-cidadãos, epíteto que não faz parte dos fundamentos do contrato fundador da nossa República democrática.

Se é certo que a nossa capital precisa ser dotada efetivamente do seu estatuto administrativo quer por imperativo constitucional, quer porque carece de recursos financeiros para corrigir as graves distorções de uma urbe que cresceu ladeada por concelhos vizinhos muito pobres, importa ter em conta que os mecanismos legais, por si só, não têm o condão de operar as mudanças estruturais que se impõem. Isto é, para que o projeto político subjacente ao estatuto administrativo da capital cumpra o seu propósito, é preciso que a sua implementação se faça em simbiose perfeita, sobretudo, com a estratégia global do desenvolvimento de Santiago, especialmente para o interior da Ilha. Uma intervenção isolada na Capital poderá correr o risco de produzir efeitos contrários aos preconizados com o almejado Estatuto.  

Por outras palavras, a continuar essa toada, num contexto de enorme desequilíbrio económico (Praia/Interior), as vagas da população migrante tenderiam a criar novos espaços urbanos em zonas de riscos na esperança de que, a prazo, estes seriam objeto de (re)qualificação. Aliás, esta é a situação que se vive na capital desde há décadas. Por exemplo, nos anos 80, da qualificação da Achadinha, no âmbito do PROMEBAD, emergiram e/ou expandiram rapidamente novos bairros – Eugénio Lima, Pensamento, Safende, Calabaceira, São Pedo Latada, Ponta de Água, Achada Mato, etc. Hoje, a capital conta com mais de 60 bairros, sendo que mais de 1/3 configurara-se em assentamentos informais, onde as populações vivem em situação de grave privação em termos de acesso à água, saneamento e rendimentos. Com isso, estar-se-ia a consolidar um círculo vicioso de reprodução da degradação urbana, cujas consequências poderão ser desastrosas na eventualidade de haver uma combinação de desastre ambiental à uma crise sanitária provocada pelas estirpes de mosquitos transmissores de paludismo, dengue e zica já instalados.

Repescando a frase de José Saramago que epigrafa este texto, a nosso ver, o atual modelo espartilhado de organização política e socioeconómica da Ilha serve mais para reproduzir, tanto o interior – enquanto um grande hinterland pobre, um exército de mão-de-obra barata para os outros polos económicos do país – como para cristalizar o sistema clientelista existente, que se presta muito bem à lógica da conquista e de perpetuação no poder, mas que pouco potencia o desenvolvimento das suas populações locais.

Em suma, projetar e implementar um futuro digno para os habitantes do interior da ilha e de Santiago no seu todo, requer, antes de mais, fazer o óbvio: unificar a ilha do ponto de vista político e socioeconómico. Com isso estar-se-á a potenciar o uso mais racional dos seus inúmeros recursos naturais e humanos em prol do bem-estar da sua população, a qual tem dado mostras da sua imensa capacidade de trabalho e resiliência. Não o fazer – ou mesmo, continuar a adiá-lo - é permanecer, de um lado, seduzido ainda pelos cálculos políticos de conjuntura e, do outro, enclausurado pelo medo semiconsciente do porvir. Não há tempo a perder! Caminhu longi ta andadu di bespa.

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