Subversão crioula: Crónica de uma lucidez silenciada
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Subversão crioula: Crónica de uma lucidez silenciada

Pensar não devia ser acto de coragem. É que nem dói pensar! 
Mas, em Cabo Verde, ainda é extremamente doloroso, perigoso e digno de super-herói, quem ousa usar a sua massa cinzenta. E, enquanto assim for, escreveremos como quem ta finca pê na tchom.
Falaremos sem ajoelhar.
Permaneceremos firmes nas convicções, mesmo que nos queiram invisíveis. Porque há quem incomode só por existir com lucidez.
E a lucidez hoje, é a forma mais perigosa de militância.

A maturidade não se mede pela idade, mas pela forma como se lida com a diferença, pela capacidade de ouvir sem se ofender, de discordar sem aniquilar, e de reconhecer o mérito no outro, mesmo quando este não veste a “farda da casa”.

Neste arquipélago de afectos frágeis e convicções alugadas, pensar tornou-se um acto de risco.
E pensar com autonomia é hoje, o caminho mais curto para o exílio.
Um exílio sem cárcere, sem anúncio e sem acusação. Apenas a ausência e o desapego meticulosamente orquestrado, por quem, até ontem, julgávamos próximo.

Descobrimos então que certas amizades só resistem enquanto dissermos “amén” às suas rezas. Quando recusamos alinhar com o delírio colectivo, somos rapidamente apagados, não por erro, mas por estratégia silenciosa, eficaz e irreversível.

Entre o vermelho e o verde, perdeu-se o arco-íris.

O pensamento independente passou a ser olhado com desconfiança.
Quem ousa não seguir cartilhas decoradas como prova de fidelidade ou submissão, aprende cedo que a verdade tem um custo e que o preço da integridade é pago com o afastamento e o Shunning.

Há quem seja chamado pelo cartão de membro. Os outros, os que pensam, são riscados mesmo que antes tenham sido tratados como imprescindíveis. Não se responde, não se explica, não se assume. Apenas se apaga (com cortesia, claro), como um gongom numa casa onde a verdade é indesejada.

Cabo Verde é mestre na arte do silenciamento cortês.

A nossa sociedade habituou-se ao consenso teatral e aos sorrisos plastificados.
Mascaramos cobardia com diplomacia, e censura com gestão de agendas.
Já não se exclui por incapacidade, exclui-se por se ter pensamento próprio.
Porque ter ideias próprias, na nôs terra, é como chegar a uma missa com tambores…não é proibido, mas toda a gente torce o nariz.

E por falar em fé, o bipartidarismo tornou-se A religião dominante.
Os “crentes” não admitem questionamentos. E os apóstatas são punidos com o esquecimento.
Ou estás com o sistema, ou és uma ameaça.
E assim se quebram amizades, desfazem laços, tudo em nome da tal “estabilidade”. Uma estabilidade que, na prática, é apenas um medo envernizado de confronto.

É curioso como se cita Aristóteles com tanto orgulho:
«Só uma mente educada pode compreender um pensamento diferente do seu, sem precisar aceitá-lo.»

Este tipo de mente é posto em quarentena.
Não encaixa porque não se curva, não encaixa porque não engole tudo em seco (nem c’um grogue el ta tchi), não encaixa porque pensa.
E isso, nas ilhas da Morabeza, é um pecado capital.

Muitos já sentiram esta exclusão discreta.
Gente capaz, comprometida e lúcida, que recusou bajular, que apontou falhas onde outros fingiam perfeição, e que disse “isto não chega” enquanto os outros aplaudiam de pé.

A história do arquipélago está cheia deles. De NÓS!!
E continuará a estar. Porque, por mais que nos empurrem para as margens, somos nós que escrevemos os textos que perduram.
Somos nós que levantamos questões quando o país adormece em slogans.
Somos nós que recusamos aplaudir o vazio, mesmo quando a carneiragem o faz.

Pensar não devia ser acto de coragem. É que nem dói pensar! 
Mas, em Cabo Verde, ainda é extremamente doloroso, perigoso e digno de super-herói, quem ousa usar a sua massa cinzenta.

E, enquanto assim for, escreveremos como quem ta finca pê na tchom.
Falaremos sem ajoelhar.
Permaneceremos firmes nas convicções, mesmo que nos queiram invisíveis.

Porque há quem incomode só por existir com lucidez.
E a lucidez hoje, é a forma mais perigosa de militância.

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Comentários

  • Miranda, 21 de Mai de 2025

    Continue a escrever o que pensa , pois ajuda muitos "iluminados" a ver outra face da moeda.
    Tenho algo atravessado que ne custa digerir.
    Há uma preocupação desmedida com o ensino superior. O resultado é termos milhares de " "doutores" e não se encontra
    Um técnico profissional que possa consertar um equipamento electrónico , um serralheiro sério, um mecânico sério, um electricista sério, etc. etc.
    Desculpa- me o desabafo....

    Responder


  • Deolinda F.D.Camoes, 21 de Mai de 2025

    Penso que quem escreve com seriedade, aprontando verdades, só está a contribuir de forma crítica para debelar os males da sociedade. Parabéns

    Responder


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