A qualidade da democracia passa necessariamente pela avenida da língua materna—e um Estado que não promove o uso da língua materna nas suas operações, procedimentos, e processos cria graves impedimentos à experiência democrática. Quanto menor for a barreira linguística entre o Estado e a sociedade mais e melhor será a participação política e a atividade supervisora cidadã. A promoção da língua materna, com uma paridade de estima de facto e de jure, é assim uma exigência da democracia.
No passado dia 1 de março, o jornal Expresso das Ilhas publicou um editorial de Humberto Cardoso, intitulado “Os tempos não estão para activismos fracturantes” [sic] cujo objetivo traduz-se num redutivo “bota abaixo” do Fórum sobre a Língua Cabo-verdiana, promovida pela ALMA-CV aquando do dia internacional da língua materna. Com a eliminar e repor os fatos em ordem—e, assim, desmoronar velhos e insistentes mitos linguísticos que ainda assolam a língua cabo-verdiana—o presente artigo faz uma análise critica e fria aos pontos centrais do dito editorial. Assim, vai-se focar em três pontos essenciais: (a) o patrocínio do Estado na promoção linguística; (b) o Alfabeto Cabo Verdiano; (c) o caso das ilhas ABC.
Antes de se passar a uma leitura cuidadosa nos três pontos acima mencionados há que primeiramente desconstruir, critica e categoricamente, a ideia de um excecionalismo cabo-verdiano—designado, por Humberto Cardoso, de “especificidade cabo-verdiana.” É preciso notar, em letras gordas, que não existe uma excecionalidade cabo-verdiana, por mais que alguns assim o queiram e continuem a bater nessa tecla. Aliás, pensar em tal coisa não só é teoricamente redutiva como sem qualquer fundamento empírico, posto que parte de uma suposição da inexistência de experiências sociológicas e históricas similares, e, com isso colocando as ilhas enquanto uma exceção à regra. Assim, poder-se-á falar de uma especificidade cabo-verdiana da mesma maneira que se fala de uma especificidade senegalesa, brasileira, chinesa, ou de um outro povo qualquer. A experiência cabo-verdiana não é de todo diferente do que o passou nas outras sociedades crioulas em África ou no mundo caribenho—particularmente no diz respeito a questão da língua. Da mesma maneira, a crioulidade e crioulização não constitui um fato sociológico único em África; pelo contrário, a partir do momento da instalação do europeu no continente africano, mormente nas zonas costeiras, sociedades crioulas, em cultura e língua, desenvolveram—e isso, em parte, explica a existência de um número grande de línguas crioulas e pidgins por toda a África ocidental. Quando, por exemplo, Ali Mazrui fala de “Afro-Saxons,” ele refere aos grupos africanos que por várias gerações tem tecido sistemas culturas autóctones e europeias.
Outrossim, é de enfatizar que a noção de uma especificidade cabo-verdiana não passa mais do que um derivativo do discurso tardo-claridoso que assentava na ideia de que “Cabo Verde é Cabo Verde” —sendo que tal não passava mais do que um prémio de consolação de uma rejeição ao reino do lusotropicalismo, após o veredito do “Messias” Gilberto Freyre que, nas palavras do Baltazar Lopes da Silva, “nos traiu.”
É preciso acabar com esse mito desconexo de um excecionalismo cabo-verdiano quando a nossa experiência histórica é deveras semelhante ao do resto do continente africano.
Sobre o Patrocínio do Estado
O editorial, ao falar do Fórum sobre a Língua Cabo-verdiana, garante que o “problema [sic] é que tem o patrocínio claro das instituições do Estado incluindo o suporte de órgãos de soberania, do sistema educativo do país, da universidade pública e da comunicação social do Estado.” O Estado, nesta perspetiva, ao invés de ser o microcosmo da sociedade e dos interesses deste, é-lhe demandado que se desengaje e retraia de qualquer compromisso com a iniciativa emanada da própria sociedade civil. Num outro editorial de 30 de janeiro de 2023, Cardoso escrevia que “a via para se ultrapassar o cinismo e a desconfiança passa sim pelo exercício da cidadania plena e por se ter uma sociedade civil autónoma e interventiva.” (itálicos adicionados) Ou seja, quando estamos perante uma “sociedade civil autónoma e interventiva” (a ALMA enquanto elemento associativo da sociedade) a demandar uma acão da parte do Estado—e logo mostrar-se como autónoma e interventiva—vem agora o editorial despreciar tal feito quando o esperado, a julgar pelas suas palavras de um ano atrás, seria a via de celebração da capacidade autonomizante e interventiva da sociedade civil.
Assim, através de uma leitura cuidadosa pode-se notar que o editorial parte da noção de que certas ideias vindas da sociedade civil, por mais aceites que sejam, não deverão nunca ser “patrocinados” pelo Estado e das suas instituições. A peça central da democracia, como bem nos ensina a filosofa norte-americana Hanna Pitkin, é a representação e tal traduz-se numa reprodução, no círculo do poder, de ideias e ideais provindos da sociedade. No entanto, o editorial pede ao Estado, as suas instituições e os seus agentes que se afastem das reais vontades e anseios de uma parcela substancial dos cabo-verdianos, nas ilhas e na diáspora. De acordo com os resultados de uma pesquisa de opiniões, feita aos cidadãos nacionais de várias ilhas com idade superior a 18 anos, levada a cabo pelo Afrobarometer em 2022, a maioria dos cabo-verdianos nota que o governo de Cabo Verde ou nada ou um pouco tem feito no que tange a uma paridade de estima e de uso entre a língua nacional e o português. No mesmo estudo, nota-se que quase 2/3 de Cabo Verdianos (63%) ou fortemente ou simplesmente concordam com o “direito de formalizar o estatuto da Língua Cabo-Verdiana na Constituição como uma língua oficial tal como o Português.” 2 em cada 3 cabo-verdianos assim o pedem—mas não para uma elite distanciada, desinteressada e suspensa da realidade sociopolítica nacional.
A qualidade da democracia passa necessariamente pela avenida da língua materna—e um Estado que não promove o uso da língua materna nas suas operações, procedimentos, e processos cria graves impedimentos à experiência democrática. Quanto menor for a barreira linguística entre o Estado e a sociedade mais e melhor será a participação política e a atividade supervisora cidadã. A promoção da língua materna, com uma paridade de estima de facto e de jure, é assim uma exigência da democracia.
Do Alfabeto Cabo Verdiano
Diz ainda o editorial que “o facto do crioulo ter base lexical portuguesa em mais de 90% adoptou-se um alfabeto fonológico não por razões práticas ou culturais, mas sim por razões fundamentalmente ideológicas. Na linha do pensamento único tinha-se que impor a realidade alternativa conjecturada em tempos revolucionários da origem africana dos cabo-verdianos. A escrita na base do alfabeto etimológico revelando as origens da sua língua materna não podia denunciar o contrário.” [sic] Vamos por partes: qualquer sistema de representação gráfica de uma língua é acima de tudo uma afirmação ideológica. A escrita do cabo-verdiano no período colonial caracterizava-se fundamentalmente pela tendência de mostrar a pertença da nossa língua ao mundo português— mormente no período tardo-colonial substanciado na ideia de um Estado pluricontinental e plurirracial, cujo mote central era o de “Isto aqui é Portugal.” O problema da escrita que se aproxima do etimológico traz (e tem trazido) um conjunto de problemas de coesão e coerência lógica. Dado que a literatura científica sobre este assunto é bem vasta, sugeria a leitura, entre outros textos, da tese de doutoramento em linguística do Professor Donaldo Macedo de 1979 onde o assunto foi cuidadosamente abordado.
O editorial ainda omite o fato do Estado colonial—através da educação colonial e o discurso colonial—constituir-se num substrato ideológico que impunha a aplicação de um alfabeto que se aproximasse do português, mesmo para palavras que não tenham a origem no português. No que toca à questão da língua, o discurso colonial português limitava o uso da expressão “língua” ao português sendo que os outros sistemas linguísticos existentes na então chamada “África Portuguesa” eram conotados de “dialetos.” Assim, o Cabo Verdiano era designado “dialeto crioulo,” expressão essa que não só mostrava uma suposta primitividade linguística (inexistente, diga-se) como também fazia dele um derivativo categórico do português e, assim, sem qualquer legitimidade de autodeterminação linguística. Foi neste contexto socioideológico que varias gerações de escritores e poetas escreviam o Crioulo—com a notável exceção da proposta de Paula Brito, dos finais do seculo XIX, que departia radicalmente do português escrito. Muito provavelmente este Paula Brito seria acusado de ser “pan-africanista” (como se fosse algo a ser evitado) dado a proposta de distanciamento em relação ao português escrito. A escrita autónoma seria retomada com a publicação do livro Noti em 1966 pelo poeta advogado Kaoberdianu Dambara (pseudónimo de Felisberto Vieira Lopes).
O que se deve evitar assenta em qualquer acão ou omissão que faça a língua cabo-verdiana refém da língua portuguesa—pese embora o papel lexificante desta. A ancoragem da escrita do cabo-verdiano na língua portuguesa acarreta problemas derivados da reforma ortográfica nessa língua. Assim, se se ficar preso na escrita puramente etimológica como parece defender o Humberto Cardoso como é que vamos escrever, por exemplo, a palavra “batismo” em língua cabo-verdiana? Será “batismu” de acordo com o mais recente acordo ortográfico ou “baptismu” para manter a lealdade ortográfica ao período antes de 1990? E já agora a palavra “farmácia”? Devemos escreve-la com “f” ou “ph” como era comum até 1911? (nota-se que o editorial não segue as normas do acordo ortográfico de 1990).
Por fim, a minha aderência ao Alfabeto Cabo-Verdiano (ou ALUPEC como alguns continuam a chama-lo) tem a ver muito com o fato de ser um resultado de uma epistemologia e pesquisa autóctones, indicativo da nossa real capacidade de originalidade e coragem no campo da produção científica. O trabalho que resultou nesse projeto trouxe linguistas e pessoas de letras de vários pontos do país. É preciso notar que o Alfabeto Cabo-Verdiano não surgiu deus ex machina; pelo contrário, foi resultado de vários momentos de discussão séria e de aprendizagem dos sistemas anteriores, a começar com o alfabeto que surgiu do Colóquio de Mindelo de 1979 (ridicularizado de “alfabeto do chapéu”). Outros momentos significativos da escrita do cabo-verdiano incluem o fórum de alfabetização de 1989 assim como o fórum sobre o ALUPEC de 2008. Em ambos os casos, as discussões sobre as experiências resultaram em modificações consideráveis à escrita. Contextualizando, assim, a tendência foi o de adaptação constante e evitar, sempre que possível, qualquer dogmatismo na escrita do cabo-verdiano.
O Crioulo nas ilhas ABC
O editorial afirma que “não se nota nessas duas ilhas o tipo de activismo frenético que se vê em Cabo Verde.” [sic] Isto depois de mostrar que o Papiamentu é aceite como a língua oficial nessas ilhas—muito ao contrário do caso de Cabo Verde. Deve achar que o planeamento do estatuto do Papiamentu deve ter resultado da benevolência holandesa. Claro que não—foi resultado de processos políticos duros, levados a cabo por organizações da sociedade civil e ativistas linguistas que desafiaram a ordem linguística colonial imposta nas ilhas. A primeira ordem da luta foi o de derrubar alguns dos mitos sobre o crioulo das ilhas ABC—mitos esses em relação ao crioulo é claramente patente no artigo sob escrutínio. Da mesma maneira, deverá achar o recente estatuto da União Europeia em reconhecer o Papiamentu de Bonaire com o estatuto de língua minoritária no quadro da Carta Europeia para as Línguas regionais e Minoritárias como sendo resultando da boa vontade de Bruxelas e não das lutas levadas a cabo pelos falantes dessa língua. Ou seja, aos falantes do Papiamentu lhes são negados qualquer agência histórica, sendo o que tem acontecido de positivo na sua língua algo que não resultou de ativismo fraturante e frenético.
A chamada revolta de “Trinta di Mei” (30 de maio) de 1969 na ilha de Curacao, organizado e levado a cabo pela maioria de afrodescendentes contra um sistema que colocava todo o poder económico numa pequena minoria branca teve como suporte ideológico tanto o pan-Africanismo como o Black Power. Nos idos anos 1970 e 1980, a luta pelo reconhecimento do Papiamentu centrava-se em dois princípios angulares, nomeadamente, Awor nos ta manda (Agora nós é que mandamos—o “nós” aqui a referir aos Afro-Caribenho e a sua língua) e Di nos e ta (Nós reclamamos o nosso legado Afro-Caribenho). A defesa da língua que tem como substrato algumas das línguas da Africa ocidental aconteceu com base nesta “reafricanização de espíritos” que deitou abaixo as antigas ideologias de identidade postulados pelo discurso colonial.
O sistema de escrita diverge-se entre as ilhas de Curacao e Bonaire, por um lado, e Aruba, por outro. No caso do primeiro, temos Papiamentu e no segundo Papiamento—sendo que o primeiro tende a seguir um compromisso entre o fonémico e etimológico e o segundo puramente etimológico. Uma vez mais recorre-se a literatura científica, em particular os estudos de Philippe Maurer, que tem mostrado as grandes dificuldades que advém da escrita etimológica do Papiamentu para os seus falantes. Não é por acaso que o ativismo linguístico em relação ao Papiamentu tem sido de longe mais “frenético” nas ilhas de Bonaire e Curaçau.
O ativismo linguístico dos falantes do Papiamentu tem sido multidimensional e tem entrado vários domínios, incluindo as redes sociais. A título de exemplo, conferir a página do Facebook da Fundashon Akademia Papiamentu, recheada de atividades e ações que visam tanto o prestígio como da disseminação da língua. Na sua página de internet, a Fundação define-se como instituição que “tin komo meta promové, fortifiká i protehá papiamentu riba tur tereno.” (nem é preciso fazer qualquer tradução aqui). É Preciso notar no slogan como a escrita afasta da etimologia das palavras, que derivam do português e espanhol.
O acervo bibliográfico em Papiamentu, mormente em Curaçau onde a escrita é de longe mais rico do que temos em Cabo Verde—incluindo não só obras de literatura, de vários géneros, como também ensaios científicos, livros didáticos e académicos, ate da legislação. A presença do Papiamentu na vida sociopolítica das ilhas ABC faz inveja a qualquer cabo-verdiano que ama a sua língua. A visibilidade sociolinguista do Papiamentu é patente m vários domínios, incluindo o campo da escrita—com um número bem grande de jornais e publicações nessa lingua.
Ao contrário do que é escrito no editorial, Papiamentu é usado como um médium de ensino—para a vergonha de Cabo Verde. A página online do governo local de Curacao encontra-se também disponível em Papiamentu (https://gobiernu.cw/). Jornais vários publicam em Papiamentu. Um exemplo é o caso do jornal online Vigilante inteiramente em Papiamentu (https://vigilantekorsou.news/). É de realçar que desde 1987 que existe uma escola centrada no uso do Papiamentu como instrumento de ensino. Fundado pelo linguista Martinus Arion e pela Fundashon pa Skol Humanista na Papiamentu (Fundação para as Escolas Humanistas em Papiamentu), o Kolegio Erasmo é um exemplo claro da coragem e libertação de complexos linguísticos que muito afetam as sociedades crioulas em relação as suas línguas maternas (ver a página da instituição em https://www.facebook.com/kolegioerasmofundeshi/) De acordo com a própria definição, o “Kolegio Erasmo ta un skol ku ta brinda enseñansa kompletamente na Papiamentu.” (o Kolegio Erasmo é uma escola que fornece ensino completamente em Papiamentu). O que temos em Cabo Verde é o retorno em força do complexo colonial, posto que existe uma escola, a Escola Portuguesa, parte integrante de um Estado estrangeiro, que em altifalantes tem proibido o uso da língua cabo-verdiana no recinto escolar valendo, com isso, aplausos de uns tantos nacional-lusitanistas ilhéus.
Portanto, trazer a experiência das ilhas ABC—mormente Curaçau—mostra duas coisas: primeiro, as mudanças na política linguística resultaram de um longo período de ativismo “frenético.” Nesse sentido, o que tem passado nestas ilhas no campo da promoção e elevação do Papiamentu é resultado de décadas de ativismo linguístico e participação cívica engajadora que permitiram—e permitem—a desconstrução contínua da diglossia assim como dos mitos variados que tem assolado a língua materna. Segundo, é indicativo de como Cabo Verde, no que toca a questão da língua materna, encontra-se anos de atraso.
Conclusão
Em jeito de conclusão sumario, dir-se-á que a maioria, silenciada por décadas após a independência (sem mencionar séculos durante o colonialismo), pretende mudar este estado das coisas. Esperava-se uma atitude bem diferente de quem foi um tanto quanto ativista “frenético” nos finais dos anos 1980 e inícios dos anos 1990. Mas olha…
*Pan-Africanista convicto, Defensor incondicional da Língua Cabo-Verdiana, e Cabralista em nome, ação e pensamento
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