O diretor da Torre do Tombo considerou que a PIDE temia Amílcar Cabral e as suas relações internacionais, tendo começado a persegui-lo quando ainda estudava em Lisboa e depois como um “dirigente terrorista” que afrontava Salazar.
Entre os cinco milhões de fichas de pessoas seguidas pela polícia política portuguesa, que compõem os arquivos da PIDE, consta o processo de Amílcar Cabral, que tem gerado muito interesse da parte dos académicos que estudam o pensamento do líder africano, considerado o “pai” da independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau.
Em entrevista à agência Lusa, Silvestre Lacerda, diretor da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), responsável pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo, afirmou que o processo de Cabral revela que este começou a ser seguido no início dos anos 50 do século passado, quando ainda era estudante em Lisboa.
Cabral, cujo centenário do nascimento se assinala este ano, começou “a sua atividade política mais intensa na Casa dos Estudantes do Império (CEI)”, destinada a estudantes universitários das ex-colónias portuguesas e que teve entre os seus associados nomes como Agostinho Neto, Lúcio Lara, Joaquim Chissano, Pedro Pires ou Onésimo Silveira, entre muitos outros.
Nesta altura, “a polícia passa a ter uma informação mais detalhada sobre Amílcar Cabral, daquilo que é” e das atividades políticas que desenvolve na CEI, sobretudo com Lúcio Lara, “com quem ele vai ter relações muito próximas e que é um angolano que está na origem da formação do Movimento Popular de Libertação de Angola” (MPLA).
“Ele começa por estudar no Instituto Superior de Agronomia, é agrónomo. Faz estudos em Portugal, nomeadamente em Cuba [Alentejo], mas depois vai para a Guiné e na Guiné faz um trabalho fundamental, que é um cadastro da propriedade e, de alguma maneira, o conhecimento concreto do terreno, que depois lhe vai ser particularmente útil no âmbito das ações que vai desenvolver aquando da guerrilha. Esteve em Angola, regressou à Guiné, regressou a Lisboa e esse é todo um percurso que era acompanhado pela polícia política”, referiu.
“Essa perseguição pode ser demonstrada através da informação da polícia política de Cabinda, de Luanda, de Bissau”, mas também pela “atividade dos embaixadores de Portugal nos diferentes países”.
“Nós temos relatórios dos embaixadores, nomeadamente o embaixador de Portugal em Inglaterra, que relatam ao Governo português quais são as atividades que Amílcar Cabral estava a desenvolver, porque era sempre considerado a denúncia do colonialismo como um insulto à pátria portuguesa”, adiantou.
Segundo o responsável, “a PIDE receava Amílcar Cabral, sobretudo pelas relações que ele rapidamente estabeleceu, nomeadamente com os estrangeiros, em particular com os ingleses”.
Cabral iria, inclusive, usar o pseudónimo de Abel Djassi para “escrever nos jornais ingleses e, de alguma maneira, a internacionalização e a denúncia do colonialismo português, o que naturalmente o regime não estava disponível para ouvir sequer”.
Para Silvestre Lacerda, os agentes da PIDE que seguiam Cabral tinham dele a perceção de ser “um estudioso”. “E esta é uma das caraterísticas com que Amílcar Cabral é reconhecido, quer nacional, quer internacionalmente, como um líder que não se limita às armas, também é capaz de pensar, também é capaz de estabelecer uma estratégia para a independência do território, que, aliás, ele vai desenvolver nos seus escritos”.
“Ele próprio assume uma primeira carta dirigida ao Governo português, antes do início das ações armadas por parte do PAIGC, que estava disponível para negociar com o Governo português desde que a negociação assentasse na Independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e isso é uma matéria que era inegociável, quer com o presidente do Conselho, António Oliveira Salazar, quer mesmo depois, já com o Marcelo Caetano”, prosseguiu.
A carta consta dos arquivos de Cabral na Fundação Mário Soares, guardiã desta documentação a pedido da família do líder africano, mas nos arquivos da PIDE é tema em algumas expressões que conduzem precisamente ao pensamento de Amílcar Cabral e à sua disposição para negociar, a par do que acontecia desde o final da Segunda Guerra Mundial com as colónias em África, na Ásia e um pouco por todo o mundo.
O trajeto de Cabral como líder do PAIGC e nas reuniões em que participou em Tunes e na Argélia com os outros movimentos de libertação, nomeadamente a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), bem como a constituição de um conselho de coordenação da guerra colonial que tem a designação de CONCP é seguido pelos elementos da PIDE.
“Aí, a polícia vai seguir claramente, tratando-o como um dirigente terrorista - a expressão que é utilizada”.
Para Silvestre Lacerda, os arquivos da PIDE permitem identificar Cabral como “um líder com um pensamento estratégico de independência para o seu país, de uma característica também interessante que é defender que não devia haver exploração do homem pelo homem”.
“Este é, provavelmente, um dos legados de Amílcar Cabral, que não sabemos como é que o iria concretizar, porque foi assinado antes da tomada do poder e antes até da declaração de independência de Guiné, em 1973”, disse.
E também de alguém que não deixou de “chamar a atenção para aspetos que não são fáceis de dizer a quem passa da guerrilha e assume o poder: Que não se deve deixar deslumbrar pelo exercício do poder, mas deve ter em consideração aquilo que é a vontade dos seus concidadãos”.
Amílcar Cabral nasceu em Bafatá, na Guiné-Bissau, em 12 de setembro de 1924.
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