VII CENA
Na praça do Palmarejo, às 18h00, as duas comem gelados enquanto conversam.
DROGANESA – Pois, Lixívia, tenho um assunto delicado para falar contigo.
LIXÍVIA – Que assunto?
DROGANESA – Se não te interessar… também não é preciso estrilo. É só dizeres que não.
LIXÍVIA – Ok.
DROGANESA – Um amigo falou-me em levar "assuntos para fora".
LIXÍVIA – Que assuntos?
DROGANESA (olha para todos os lados e diz baixinho) – Droga.
LIXÍVIA (surpreendida) – O quê?
DROGANESA (dá uma trincada no gelado) – Podes levar alguma… droga para fora?
LIXÍVIA (olha-a bem nos olhos) – Assunto muito delicado!
DROGANESA – Oh! Quando as coisas te interessam, tu dás sempre um jeito.
LIXÍVIA – Isso seria muito complicado. Envolveria alguns perigos.
DROGANESA – O que é que neste mundo não envolve perigo? Só se ficarmos em casa e não fizermos nada. Mas também há o perigo e a vergonha de morrermos à fome.
LIXÍVIA – Mas há uns que são mais perigosos.
DROGANESA – Pensa nisso.
LIXÍVIA – Vou pensar… mas não sei.
DROGANESA – Pensa bem. É um negócio que pode não correr bem… é verdade. Mas também pode correr muitíssimo bem. Aliás, até que não corra bem, já estás bem orientada.
LIXÍVIA – Para quem tenha sorte… de facto é verdade. As melhores casas e os melhores carros são dos traficantes. Pena é que quase todos são tolos, estúpidos e analfabetos.
DROGANESA – Não te esqueças também dos mamadores armados em políticos. Viste o ordenado que esses patifes vão passar a ganhar, com a aprovação, por unanimidade dos deputados, do estatuto dos titulares de cargos políticos?
LIXÍVIA – Ui! Isto agora é a manchete de todas as notícias. Que descaramento! Um simples deputado ou vereador, com apenas a 4ª classe, irá ganhar não sei quantas vezes mais do que um professor ou engenheiro!
DROGANESA – Um meu vizinho, como não conseguiu ser eleito vereador, o presidente da Câmara nomeou-o seu assessor. E com esse estatuto, vai ganhar quase 5 vezes mais do que um médico. E ele tem 2º ano do ciclo preparatório, com a média de nove valores e meio.
LIXÍVIA – Tenho um sobrinho com mestrado e está desempregado há mais de um ano.
DROGANESA – Enquanto esses fantasmas, sem inteligência na cabeça nem vergonha na cara, apenas com a mão no bolso do povo, levam a vida como se ganhassem euromilhões. E argumentam que essa é a forma de dignificar a classe dos titulares de cargos políticos.
LIXÍVIA – Aí até estou de acordo com eles. São uma cambada de indignos.
DROGANESA – Só se tornarão dignos, dando caço-body ao povo?
LIXÍVIA – Coitado do povo. É como as mulheres. O povo deixa-se iludir pelas promessas vãs desses titulares de cargos políticos, as mulheres deixam-se iludir pela aparência de qualquer imbecil que lhes promete mordomia.
DROGANESA – Enquanto tu queres trabalhar honestamente, eles vão enriquecendo à tua custa. E o paradoxo é que foste tu quem os avalizou esse direito.
LIXÍVIA – Que direito?
DROGANESA – De te roubarem! Não os elegeste como deputados… teus representantes?
LIXÍVIA – Olha que tens razão! Até parece um contra-senso. Em circunstâncias normais é o ladrão quem escolhe a sua vítima. Mas o povo é vítima do ladrão que ele próprio escolheu.
DROGANESA – Tens que perceber, minha querida. Pelo dinheiro faz-se tudo. O rótulo “pobre” é pior que o rótulo “criminoso” numa pessoa rica.
LIXÍVIA – Lá isso é verdade. É como antigamente na nossa terra. Gente branca não era necessariamente pessoa de cor branca. Era quem detivesse capital e uma posição socialmente aceite.
DROGANESA – “Quem detivesse capital e uma posição socialmente aceite”. Então por que é que não arriscas entrar no esquema e reclamares também essa “posição socialmente aceite”?
Despistam a conversa quando se aproxima uma pessoa.
LIXÍVIA – Por acaso queria meter-me na política, mas faltou-me o descaramento. Não passei nos testes da mentira.
DROGANESA – É muito mais complicado ser político.
LIXÍVIA – Achas? Então deve ser por isso que em Cabo Verde não há políticos! Há titulares de cargos políticos.
DROGANESA – Pois, claro! Embora bate tudo quase na mesma. Seja político ou titular de cargo político, é preciso dominar certas matérias: mentir com subtilezas e enganar as pessoas de forma a deixá-las convencidas de que a verdade nunca seria outra; ser insensível e ter humor bastante para rir-se das desgraças que provocou aos outros; saber prever o futuro, fazendo leis que o protejam; saber roubar e arranjar culpado, de preferência, um amigo da esfera mais próxima; conquistar amizades nos últimos três meses e produzir inimigos nos próximos quatro ou cinco anos. (Olha para os lados e certifica-se de que estão novamente sozinhas) Quanto ao esquema… basta ter coragem. E isso parece-me que não te falta.
LIXÍVIA – Se for apanhada… a minha vida acaba naquele instante.
DROGANESA – É difícil seres apanhada. No teu serviço é quase impossível desconfiar de ti. E se for o caso, até lá, já terás dinheiro para comprares o juiz e até o tribunal se quiseres.
LIXÍVIA – Ou arrendar um apartamento em São Martinho, com contrato a longo prazo e um diretor a administrar o condomínio.
Riem-se.
DROGANESA – Então… o que dizes?
LIXÍVIA – Depois dou-te a resposta.
DROGANESA – Conforme pensares, liga-me e diz qualquer coisa.
Despedem-se e saem.
VIII CENA
O telemóvel toca.
DROGANESA – Oi, amiga!
LIXÍVIA [V. O.] – Tudo às direitas?
DROGANESA – Tudo. E a minha amiga como é que acordou?
LIXÍVIA [V. O.] – Bem. Estás ocupada neste momento?
DROGANESA – Não. Não estou a fazer népia.
LIXÍVIA [V. O.] – Queres ir tomar um café comigo em Achada de Santo António?
DROGANESA – Em que sítio?
LIXÍVIA [V. O.] – Por mim… pode ser no Poeta ou no Benfica.
DROGANESA – Vamos então ao Benfica. Aproveitamos e comemos umas lagostas que vi lá ontem.
LIXÍVIA [V. O.] – Daqui a quanto tempo?
DROGANESA – Eu estou pronta. Dentro de dez minutos podemos encontrar-nos lá.
LIXÍVIA [V. O.] – Combinado.
Droganesa desliga o telemóvel e mete-o na mala, apanha a chave do carro e sai.
IX CENA
No bar restaurante “Benfica” bebem imperial e petiscam uma lagosta grande.
LIXÍVIA – Sou uma pessoa direta nos assuntos.
DROGANESA – Assim mesmo é que eu gosto.
LIXÍVIA – Aceito a tua proposta desde que o cachê compense.
DROGANESA – Eu sei que és cara.
LIXÍVIA – Não é isso. É que dá muito trabalho.
DROGANESA – Também sei disso.
LIXÍVIA – É preciso dar atenção aos voos e aos serviços de raios X. Vou ver o que posso fazer para facilitar a passagem.
DROGANESA – Claro! Temos de ver qual a melhor forma.
LIXÍVIA – O fundamental é combinar com um polícia da minha confiança que opere a máquina de raios X nesses dias.
DROGANESA – Quem é esse polícia da tua confiança?
LIXÍVIA – Ave! Para já, não posso dizer.
DROGANESA – Porque não?
LIXÍVIA – Ainda está tudo no ar. Ainda nada está assente.
DROGANESA – Não vejo razões para não aceitares. O teu plano é perfeito.
LIXÍVIA – É. Mas isto vai ter custos!
DROGANESA – Estou consciente disso.
LIXÍVIA – Quem é o patrão?
DROGANESA – Iremos ter contigo à tua casa.
LIXÍVIA – É pessoa séria? Não está e nunca esteve metido em nenhum sarilho?
DROGANESA – É pessoa muito conceituada. Só lida com gente grossa.
LIXÍVIA – É emigrante?
DROGANESA – Vivia em Portugal, depois foi para Holanda. Agora está cá, só vai quando precisa de fazer compras.
LIXÍVIA – O que mais faz?
DROGANESA – É empresário.
LIXÍVIA – Em que ramo?
DROGANESA – Tem três empresas em seu nome. Duas de construção civil e uma de importação e exportação.
LIXÍVIA – Ok. Então vou esperar-vos lá em casa. Não demorem.
DROGANESA – Vamos já ter contigo.
LIXÍVIA – O que é que querem que vos guarde?
DROGANESA – O que lá tiveres.
LIXÍVIA – Lá há muita coisa.
DROGANESA – Tens Whisky velho?
LIXÍVIA – Se não tiver eu compro. Qual é a marca de que gostam?
DROGANESA – Eu gosto mais de Johnnie Walker Gold Label, mas os rapazes preferem Black Label.
LIXÍVIA – Os rapazes?! São mais do que um?
DROGANESA – São dois, mas como se fosse um.
LIXÍVIA – Negócio com muita gente envolvida não costuma acabar bem. Às vezes, duas pessoas já são demais!
DROGANESA – Fica tranquila. São praças velhas. Quando os conheceres, aliás, quando os vires, porque sei que os conheces, verás que são fixes.
LIXÍVIA – Não demorem. Por acaso tenho em casa as duas marcas de whisky que trouxe da Holanda a semana passada.
DROGANESA – Vantagem de ser comissária de bordo!
LIXÍVIA – Espero não acabar no gabinete de um comissário da polícia. (Riem-se) Tchau.
DROGANESA – Pensamento positivo. Adeus.
Droganesa deixa o dinheiro da conta e gorjeta, num pires em cima da mesa.
X CENA
Na sala, bebem whisky e comem amendoins enquanto conversam.
LIXÍVIA – Qual é o cachê?
MORINGO – Qual é a ideia?
LIXÍVIA (pensa um pouco) – Acho que o melhor é usar uma carry on.
DROGANESA – Os assistentes de bordo viajam sempre com uma carry on.
LIXÍVIA – Nunca me interessava… mas agora sim. Com uma carry on é só meter a droga lá dentro, cobrir com duas peças de roupa… já está.
DJONDJON – Uma ideia simples, mas consequente.
LIXÍVIA – Já decidiram quanto vou receber por cada quilo?
DJONDJON – Depende da quantidade.
DROGANESA – Quantos leva uma carry on?
LIXÍVIA – Uns 15 a 18 quilos.
MORINGO – É demais; vai gerar desconfiança.
LIXÍVIA – Demais não! Eu posso carregar 20 quilos na mão, numa boa.
DJONDJON – Tens a certeza?
LIXÍVIA – Pensam que sou mulherzinha ou o quê? Reparem bem no meu corpo!
DROGANESA – Se levares 20 quilos, quanto é que nos cobra?
LIXÍVIA – Quero 500 contos por cada quilo!
DROGANESA – Se levares 10 a 20 quilos, o lucro fica todo para ti!
LIXÍVIA – Se querem concordar assim… amanhã já eu levo.
DJONDJON – Damos-te 250 contos por cada quilo.
LIXÍVIA – Não compensa.
MORINGO – Lixívia, 20 quilos a 250 contos cada quilo, são cinco mil contos.
DJONDJON – Já imaginaste o que é ganhar cinco mil contos num dia?
LIXÍVIA – Também num minuto posso perder tudo: o meu trabalho, os meus bens, a minha família e sobretudo a minha liberdade e dignidade.
DROGANESA – Dignidade tu não perdes. Uma pessoa com dinheiro tem sempre dignidade.
MORINGO – Não pensemos nisso agora. Vá, Lixívia, resolve e diz-nos.
LIXÍVIA – Não pensem que não tenho despesas. Também tenho que pagar a alguém no aeroporto para me ajudar a passar.
DJONDJON – Mesmo que pagues 50 ou 100 contos para te ajudarem a passar… vê ainda com quantos ficas.
LIXÍVIA – Se não querem assim… paciência!
MORINGO – Diz-nos quem te ajuda a passar e nós pagamos-lhe.
LIXÍVIA – Nem tentem. O segredo é a alma do negócio. Não quero ser passada para trás.
DJONDJON – Quinhentos contos está muito caro.
MORINGO – Pagamos-te trezentos contos por cada quilo, e damos-te mais quatrocentos por cada carry on, para pagares ao polícia que te ajuda a passar.
Lixívia levanta-se e vai à casa de banho.
DROGANESA (desconfiada) – Parece-me arriscado.
DJONDJON – Não! Ela não é burra, embora esteja a dar pa doida. Ela sabe em que mundo está a entrar.
LIXÍVIA (volta novamente) – Deixem-me controlar primeiro a lista dos voos para Portugal e para a Holanda, cruzo-a com os meus turnos e com os turnos do polícia… (olha para Droganesa) telefono e digo-te qualquer coisa.
DROGANESA – Fico à espera.
MORINGO – Qualquer coisa, avisas a Droganesa e ela avisa-nos.
DJONDJON – Não ficas a perder connosco.
Despedem-se com beijinhos e saem já à noitinha.
XI CENA
O telemóvel da Droganesa toca.
DROGANESA – Alô!
LIXÍVIA [V. O.] – Oi!
DROGANESA – Podes falar.
LIXÍVIA [V. O.] – Ah, ok! Quantos quilos me vão dar para levar?
DROGANESA – Para quando?
LIXÍVIA [V. O.] – Esta madrugada.
DROGANESA – Então desliga e eu ligo-te daqui a nada. Deixa-me ligar ao Moringo e falo com ele. (Desliga e liga ao Moringo) Estou!
MORINGO [V. O.] – Como é? A nossa amiga ainda não te ligou?
DROGANESA – É por isso que te estou a ligar.
MORINGO [V. O.] – O que é que ela decidiu?
DROGANESA – Ela quer saber quantos quilos vai levar.
MORINGO [V. O.] – Que dia?
DROGANESA – Esta madrugada.
MORINGO [V. O.] – Como é a primeira vez, é melhor levar só cinco quilos.
DROGANESA – E se ela insistir em levar mais?!
MORINGO [V. O.] – Tenta convencê-la. Mas, no máximo, dez quilos.
DROGANESA – Ok. Então vou dizer-lhe assim.
MORINGO [V. O.] – Tchau.
DROGANESA – Tchau. (Liga à Lixívia) Alô!
LIXÍVIA [V. O.] – Sim!
DROGANESA – Ele disse que como é a primeira vez, para levares só cinco quilos.
LIXÍVIA [V. O.] – Nem pensar! 1.500 contos não merecem tanto risco! No mínimo 10!
DROGANESA – Ok. Posso ir levar?
LIXÍVIA [V. O.] – Podes vir. Estou em casa.
DROGANESA – Até já!
LIXÍVIA [V. O.] – Até já!
O telefone desliga e Lixívia volta a ligar
LIXÍVIA – Alô!
DROGANESA [V. O.] – Alô!
LIXÍVIA – Deixa estar. Como vou à Giselay arranjar o cabelo, no regresso passo pela tua casa e trago.
DROGANESA [V. O.] – Então fico aqui à tua espera.
LIXÍVIA – Não me demoro.
Enquanto Droganesa mete notas em envelopes e escreve numa folha de papel, a campainha da porta toca. Ela vai abrir e Lixívia entra. Em cima da mesa está uma mochila da marca Adidas.
DROGANESA (aponta para a mochila) – Está tudo lá dentro.
LIXÍVIA – Lá em casa mudo para a carry on. Quantos quilos estão aí?
DROGANESA – Dez (Tira um maço de notas de um envelope, confere e volta a meter) Aqui estão os 400 contos para adoçares o polícia que te irá ajudar. (Dá-lhe uma folha de papel) E aqui está o número do telefone da pessoa que irá encontrar-se contigo… que irá receber o produto.
LIXÍVIA – Não escreveste o nome da pessoa?
DROGANESA – Não é preciso. Assim que chegares, liga para esse número, alguém há-de responder e combinam onde é o encontro.
LIXÍVIA – Logo que lhe faça a entrega, ligo-te a avisar.
DROGANESA – Mas não precisas pormenorizar nada pelo telefone.
LIXÍVIA – Só te digo: a tua sobrinha chegou bem e entreguei-a pessoalmente à tua irmã.
DROGANESA – Ninguém diz que é a tua primeira vez!
Lixívia guarda o envelope, apanha a mala e dá à Droganesa dois beijos.
LIXÍVIA – Adeus!
DROGANESA – Desejo-te boa viagem.
LIXÍVIA – Obrigada.
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