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Louca verdade e outros (in)verosímeis desatinos, paradoxos e incongruências do quotidiano* - Segunda Parte
Cultura

Louca verdade e outros (in)verosímeis desatinos, paradoxos e incongruências do quotidiano* - Segunda Parte

Na verdade, a neutralização política dos partidos políticos adversários e /ou opositores do PAIGC significou a instauração de facto de um regime de autoritarismo revolucionário de partido único socializante, ainda antes de encetado o período de transição para a independência política de Cabo Verde. Muitos dos novos encarcerados no Tarrafal, é certo que em “regime livre de recreio”, seriam libertados pouco depois em razão da inexistência de provas consistentes para sustentar as suspeitas e as acusações contra os mesmos. Outros seriam libertados ainda antes da independência, tendo outros contra os quais pendiam mais consistentes acusações de terem sido agentes e/ou informadores da PIDE/DGS sido recambiados para Portugal para a prisão de Caxias para a prossecução dos respectivos processos, os quais viriam a ser depois arquivados. Alguns destes últimos participariam na fundação e/ou na militância activa na UCID numa óbvia sequenciação da sua anterior militância na UDC e, depois, na UPICV, na altura acrescida da sigla FP (Frente Popular), vindo esta a conhecer um longo estado de coma, para somente acordar de forma intermitente na sequência da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990 para definitivamente soçobrar à agonia e à morte inglória, depois de o seu líder e quase solitário dirigente ter regressado voluntariamente a Cabo Verde em 1986 para definitivamente se integrar na sua vida social, cívica e cultural pós-colonial certamente a instância e mediante os bons ofícios de José Araújo, alto dirigente do PAIGC e, depois do PAICV, seu amigo e antigo confrade e colega do Grupo Nova Largada de Lisboa, depois de ambos terem provavelmente tirado as respectivas ilaçôes dos seus antagónicos posicionamentos sobre a questão da unidade Guiné-Cabo Verde e dos seus igualmente antagónicos ou, pelo menos, divergentes sentimentos sobre tão controversa e candente questão, doravante, nesses tempos pós-coloniais, definitivamente condenada à falência, quiçá para alívio, (in) satisfacão e (des) contentamento de todos, mesmo se de outros modos e em outros tempos, também de agora, também dilacerante de todos, salvo nos respectivos afectos, amizades e lealdades de infância e de criaturas amadurecidas com os tempos para as imprevisibilidades do Tempo...

"A arte fica, o comentário petrifica" - Ruy Belo

À memória e em homenagem de Caló de Dona Tina, malogrado e estimado amigo e camarada da brincadeireira infância assomadense e das expectantes juventude e maturidade praienses

 

SEGUNDA PARTE

DA DITADURA MITIGADA DO REGIME DE PARTIDO ÚNICO SOCIALIZANTE CABOVERDIANO  E  DAS ALEGADAMENTE MUITO POUCO CONSENSUALIZADAS PULSÕES TOTALITÁRIAS DO SEU CONTROVERSO  AUTORITARISMO REVOLUCIONÁRIO

1. Aproveita-se, aqui e agora, o muito controverso ensejo para abrir um relativamente longo parêntese discursivo em forma de reflexão e miscelânea ensaística com o fito de explanar de forma mais explícita essa suposta singularidade islenha, acima exposta, que alegadamente estaria devidamente sustentada e condimentada em ingredientes assaz característicos, tais a morabeza, a natural propensão democratizante e os brandos costumes devidamente embebidos do interconhecimento social e comunitário característico das nossas pequenas urbes e do ruralismo tropical típicos do povo de todas as ilhas, alegadamente potenciado e propulsado pelas múltiplas matrizes da sua cultura e identidade crioulas, desde muito cedo, diria mesmo desde sempre dos tempos de outrora, dos precoces tempos da sua meio-milenar experiência colonial, mas com maior incidência a partir da sua definitiva consolidação, dos fins do século XVIII ao último quartel do século XIX, com o prematuro esboroamento  da sociedade colonial-escravocrata, estendendo-se pela primeira metade do século XX, se erigindo, se representando e se disponibilizando para o outro, colonizador português e estrangeiro exótico, estranho e exterior à relação colonial, como cultura e identidade abertas às novidades do mundo.  Essa abertura ao mundo foi ademais considerada como intrínseca, original, necessária e vocacional da natureza crioula da cultura e da  identidade caboverdianas enquanto resultado tangível e sempre re-actualizado da confluência, da fusão e da síntese no nosso arquipélago saheliano das culturas e das línguas originais de dezenas de grupos étnicos negro-africanos, europeus e, em muito menor medida, orientais, todos transplantados para a virgem exiguidade espacial e antropológica da sociedade colonial-escravocrata das nossas ilhas tropicais secas, peri-africanas e peri-ocidentais, desde há muito emergente e consolidada como um todo identitário homogéneo afro-latino enquanto continente e arquipélago cultural crioulo, na feliz expressão de Gabriel Mariano, por isso mesmo superador e, em razão disso, desconhecedor de fracturas étnicas, religiosas ou culturais de monta ou de assinaláveis, inconciliáveis e irremediáveis convulsões político-sociais fundadas nessas mesmas fracturas essencialistas de teor étnico-racial e feição cultural-identitária. Parecem ter constituído excepções a esses estado de coisas  no passado mais remoto os casos de algumas revoltas anti-escravocratas, como a dos Valentes de Julangue, em Santa Catarina, e a do Monte-Agaro, na Vila da Praia, e, mais recentemente, o caso dos eventos relacionados com os processos da reforma e da contra-reforma agrárias na ilha de Santo Antão. Assim,  e por isso, somos da opinião que se pode e se deve legitimamente considerar e perfeitamente qualificar como assaz esporádicos, atípicos e excepcionais esses mais recentes eventos político-sociais - relembre-se que ocorridos no dealbar dos anos oitenta do século XX em pleno apogeu do processo revolucionário caboverdiano simultaneamente ao desfecho da paroxistíca crise do projecto pan-africanista da unidade Guiné-Cabo Verde de construção pós-colonial de uma comum pátria africana una, progressista e solidária entre as Repúblicas-irmãs da Guiné-Bissau e de Cabo Verde entretanto constituídas como estados soberanos e independentes, se bem que governados por um mesmo partido único bi-nacionalista e democrático-revolucionário. Estamos em crer que a explicação da ocorrência dos mesmos eventos históricos poderá residir em grande medida na tentativa de aproveitamento de uma conjuntura político-social assaz concreta, designadamente de uma eventual fraqueza transitória do regime democrático-revolucionário de partido único - agora e surpreendentemente apossado de um férreo nacionalismo  caboverdiano -, como já referido, explanado e dissecado, constitucionalmente instituído no país com as adaptações decorrentes da falência pós-colonial do projecto de unidade Guiné-Cabo Verde e da correlativa proclamação do ramo caboverdiano do PAIGC como partido autónomo e próprio do povo caboverdiano e doravante denominado PAICV, consagrando-se na revisão constitucional de Fevereiro de 1981 como sucessor para o território caboverdiano e para o conjunto do povo das ilhas e diásporas do antigo partido único bi-nacional e da sua herança político-ideológica consubstanciada no Pensamento de Amílcar Cabral, sendo tudo o que vem dito resultante da sequência de acontecimentos advenientes do (in) esperado golpe de estado de Bissau de 14 de Novembro de 1980 protagonizado pelo Comissário Principal (equiparado a Primeiro-Ministro) João Bernardo (Nino) Vieira contra o Presidente do Conselho de Estado (equiparado a Presidente da República) Luís Cabral. Tornou-se ademais notória e evidente a conjugação dos supra-mencionados acontecimentos de Bissau, e do mais que se lhes seguiu como crísicas consequências e repercussões político-ideológicas, jurídico-constitucionais e cultural-identitárias em Cabo Verde para a necessária recomposição e a indispensável reformulação do regime de partido único, com a eficaz intoxicação dos assalariados agrícolas, dos camponeses pobres, secularmente explorados como rendeiros e parceiros, e dos camponeses médios, muito ciosos da sua condição de proprietários-gestores das suas diminutas parcelas de terra, por uma pequena franja de grandes proprietários fundiários, chamados morgados nas também agrícolas e ilhas de Santiago e do Fogo (mais antigas quanto à história do seu povoamento), que, aliados à UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática) - o então único partido activo da oposição política caboverdiana, fundado em Roterdão, a 13 de Maio de 1978, no rescaldo dos traumáticos acontecimentos repressivos de 1977 na ilha de S. Vicente - souberam (con)sabidamente aproveitar-se dos laços e dos liames de patronagem e compadrio reinantes na muito montanhosa ilha localizada mais a norte do arquipélago caboverdiano, por isso obrigando o mesmo regime de partido único socializante a uma resposta política e militar e policial pronta e contundente, mas por demais desproporcionada. 

2. Resposta essa que, por seu lado, foi imediatamente denunciada e desqualificada pela chamada reacção interna liderada pela acima referida oposição política, pelos seus mentores, mandantes e activistas actuantes a partir de Portugal, da Holanda e dos EUA e reforçados por algumas organizações afectas à defesa dos direitos humanos nas ilhas e nas diásporas, designadamente o IPAJ (Instituto do Patrocínio e da Assistência Judiciários) e a Liga da Defesa dos Direitos Humanos, sediada em Lisboa - como alegadamente comprovativa do verdadeiro rosto repressivo, ditatorial e totalitário do regime caboverdiano de partido único socializante, alegadamente não se coibindo o mesmo regime politicamente monolítico da prática de torturas, tratamentos cruéis e degradantes e outras graves práticas de flagrante e despudorada violação dos direitos humanos, aliás, expressamente proibidas pela letra e pelo espírito da própria Constituição Política que, segundo as alegações dos opositores políticos acima referidos, o regime despótico de partido único fez adoptar pelo seu parlamento, aliás, ilegítimo porque meramente de fachada enquanto inócua correia de transmissão e amorfa caixa de ressonância do famigerado partido único socializante, deste modo transformando-os, entenda-se que ao espírito e à letra da Constituição da República, em letra morta, diriam sarcásticos os oposicionistas acima referenciados, até mortíssima, de uma lei fundamental que, moribunda no seu todo sistemático e sistémico, salvo na autoritária (senão totalitária) omnipotência supra-constitucional do seu célebre artigo quarto, se vem comprovando desde a sua recente aprovação obviamente por formal unanimidade e, logo a seguir, por explícita e ruidosa aclamação dos deputados arregimentados pelo partido único socializante, como mera e retintamente semântica. Deste modo claro e inequívoco, sublinharam os críticos mais virulentos nas páginas do mensário oposicionista Terra Nova e em panfletos nocturnos distribuídos clandestinamente, veio o regime caboverdiano de partido único socializante a contradizer, e de forma cristalina e notória, uma pretensa imagem impoluta e moderada que o mesmo vinha construindo e propalando junto das comunidades emigradas e dos seus imprescindíveis parceiros internacionais, dos quais aliás, depende, e em grande medida, a mera sobrevivência física das populações das ilhas, assim logrando o mesmo regime de partido único socializante a estranha e risível façanha, o por demais inaudito e ontensivo desígnio de se desnudar de falsos pudores e mentirosos alardes e ardores democráticos (mesmo se envergando indumentárias e roupagens ditas revolucionárias) e, assim, de se desmascarar em si mesmo e a si próprio nas suas flagrantes e manifestas pulsões e perversões totalitárias, deste modo também se comprovando como um autêntico logro e uma verdadeira falácia a sua auto-representação e a sua auto-projecção na opinião pública nacional e na opinião pública internacional como sendo um regime respeitador dos direitos humanos universalmente reconhecidos e consagrados enquanto emanação necessária e expressão indispensável da democracia - mas não devendo nunca e em tempo algum assim ser entendida na sua perversão monolítica dita democrático-revolucionária-, enquanto substantivação política da vontade popular livremente expressa nas urnas e corporizada em órgãos representativos eleitos periodicamente enquanto consubstanciação autêntica e verdadeira da tríplice consigna democrática de “um poder do povo, para o povo e pelo povo”, também expressa e estranhamente professado pelo próprio Amílcar Cabral.

3. Obviamente que contra essas acutilantes e gravosas acusações os nacionalistas e democratas revolucionários caboverdianos retorquíram imediatamente, mas indirectamente,   que a democracia teve consabidamente diversas expressões classistas e diferentes modelos procedimentais durante a longa e rica história da Humanidade, não se limitando pois a mesma ao modelo democrático-liberal ocidental sufragado como universal pelos políticos e intelectuais burgueses dos cinco continentes (com óbvia excepção dos adeptos do regime de partido único de matriz neo-colonial amiúde mascarados de teóricos do chamado “socialismo africano”, como ilustrados pelos assomos doutrinários de Leopold Sédar Senghor e Jomo Kenyata), sendo que mesmo a democracia burguesa conheceu já na sua mais que bissecular existência muito assinaláveis desenvolvimentos e perversões, avultando nesse aspecto a universalização da liberdade do voto secreto com a definitiva superação dos votos censitário, capacitário, sexista, racista e,  de outro qualquer modo, discriminatório de franjas importantes dos cidadãos e, assim, demonstrando-se como  violador da igualdade de direitos de todos os cidadãos e da dignidade da pessoa humana. Na verdade, houve sistemas mais ou menos democráticos em todos as formações económico-sociais e nos correlativos  modos de produção e sistemas políticos por que tem passado a Humanidade, verificando-se uma louvável aceleração da História no presente século XX, feliz e infelizmente de ouro e de horror. Na verdade, a história política caboverdiana pós-colonial constitui uma feliz ilustração em como, e certamente com base no estudo da nossa própria realidade e na assimilação crítica das experiências dos outros, se pode edificar uma democracia que, negando o formalismo enganador das democracias burguesas ocidentais enquanto expressão da efectividade do poder das derradeiras classes e categorias sociais possidentes, exploradoras e parasitárias da História da Humanidade, e pretendendo-se como sendo revolucionária porque convictamente colocada ao serviço dos interesses mais profundos e perenes das massas populares e das suas classes trabalhadoras e laboriosas, é também genuinamente democrática porque estruturalmente potenciadora da participação popular no exercício efectivo do poder (político, económico, social e cultural) nos seus diferentes níveis e nas suas diferentes modalidades representativas e participativas propriamente ditas. É assim que o primeiro parlamento do povo caboverdiano constituído em nação crioula soberana e pátria africana do meio do mar foi livremente escolhido por força e como expressão da vontade popular em eleições legislativas por voto livre, universal, directo e secreto de todos os eleitores caboverdianos residentes nas ilhas, funcionando as mesmas eleições legislativas como autênticas e verdadeiras eleições referendárias, isto é, como consulta popular que precedeu e referendou a livre opção do povo caboverdiano pela independência política no quadro do destino africano do seu novo país saheliano e legitimou os titulares do poder político soberano num quadro de um regime de partido único, por isso tudo, pretendendo-se como assaz específico na plena democraticidade da sua instituição como membro por inteiro da Comunidade Internacional e, por essa forma e desde o acto primeiro e primacial da sua fundação, como original, essencial e benignamente semelhante, dir-se-ia quase em tudo idêntico àqueles regimes africanos socializantes instituídos no quadro de uma Frente Unida, Patriótica e Popular constituída por um bloco de partidos políticos satélites e dirigido por um partido hegemónico de vanguarda, e diametralmente diferente no seu modus operandi dos demais regimes políticos africanos de partido único socializante, tipicamente monolíticos, repressivos e totalitários na sua expressão política e nos modos como vêm lidando com a diferença, a oposição e o dissídio políticos mesmo quando se dizem genuínas expressões do poder popular ou de modalidades africanas da democracia popular experimentada em outras partes do mundo depois da Segunda Guerra Mundial. Diga-se todavia e sempre em abono da verdade histórica que a diferença, a oposição e o dissídio políticos foram sempre abruptamente negados em momentos-chave de detecção de alegadas ameaças de ruptura política ou de real questionamento da própria subsistência do regime de partido único socializante ou da continuação da manutenção do seu partido dominante no próprio sistema frentista socializante,  ou somente e muito renitentemente tolerados, sobretudo com a distensão política ocorrida durante os anos oitenta sequentes à irrupção violentamente contra-subversiva para contrariar os desígnios insurreccionais contra a reforma agrária dos protagonistas dos acontecimentos de Santo Antão de 31 de Agosto de 1981 e dos seus dias de calças roladas imediatamente anteriores e dos seus espessos dias de chumbo e pranto imediatamente posteriores.

Seja-me permitida a parcial extrapolação para os tempos vindouros da mudança política - aliás, somente a muito custo no agora dos tempos presentes concebíveis e imagináveis graças ao imprescindível apoio das antenas delirantes e alucinadas da sombra raivosa e enrouquecida do poeta-cronista que costuma envergar as minhas vestes, mesmo que somente póstumas, de Louco Predilecto da Cidade - de factos e acontecimentos que serão presenciados,  contemplados e festejados somente por alguns daqueles que acompanham a nossa narração nesta praça na boca ora hilariamente engasgada da República.

4. Desde já, e tendo em devida conta isso tudo que foi resgatado dos tempos futuros pelo poder antecipatório e profético da palavra e é,  por isso,  sumamente miraculoso, e sempre visando uma melhor contextualização prévia dos factos e dos acontecimentos vindouros supra-referenciados, assinale-se que nos tempos imediatamente sequentes à sua fundação e à sua paulatina implantação nas ilhas, com destaque para as ilhas de Santo Antão e de S. Vicente, assim como nas diásporas, com relevo para a Holanda - onde contaria com a preciosa adesão de antigos militantes e simpatizantes do PAIGC, tornados paulatinamente avessos, se não abertamente contrários, especialmente à subsistência e à continuidade no período pós-colonial do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde  e do projecto da união orgânica dos dois pequenos países oeste-africanos- , para Portugal e para os Estados Unidos da América, a UCID teve como primeiro Presidente o antigo Governador spinolista pós-25 de Abril de 1974, o engenheiro Sérgio Duarte Fonseca, denotando o seu programa nessa altura um forte teor anti-africanista e uma compreensão sumamente luso-tropicalista e neo-claridosa da crioulidade caboverdiana, além de se demonstrar frontal e denodadamente oposta a várias outras matrizes programáticas do partido único então governante de Cabo Verde, com destaque para os seus posicionamentos contrários a qualquer forma de reconhecimento e assunção da co-matriz e da dimensão africanas da cultura caboverdiana e, assim, da identidade política africana de Cabo Verde, à opção socializante e não alinhada da República de Cabo Verde e, obviamente, ao regime de partido único, na senda, aliás, da UDC, da qual a UCID parecia de todo em todo a reciclagem actualizada e adaptada às novas condições pós-coloniais das irreversíveis e consumadas soberania  e independência política de Cabo Verde, morto e enterrado que fora para sempre o sonho adjacentista dos remotos tempos coloniais de outrora e desvanecida que fora na voragem dos acelerados acontecimentos do pós-25 de Abril de 1974, a pretensão spinolista de um federalismo neo-colonial no quadro de uma Comunidade Lusíada (ou Luso-Africana) de países e povos diferentes e desiguais. A saída de Sérgio Duarte Fonseca da liderança da UCID, depois assumida pelo economista emigrante Lídio Silva, acarretaria mudanças profundas no perfil do partido oposicionista que, mantendo a sigla da sua denominação, alterou todavia por uns tempos o seu significado por extensão, passando a chamar-se União Cabo-Verdiana para a Independência e a Democracia, encetando ao mesmo tempo negociações e contactos secretos com o PAICV (comojá referido, entretanto constituído como partido político exclusivamente islenho e herdeiro do PAIGC-CV, na sequência do golpe de Estado militar de João Bernardo (Nino) Vieira de 14 de Novembro de 1980 contra Luís Cabral), na/para uma eventual e sempre periclitante transição gradual e pacífica do regime político caboverdiano para uma democracia pluripartidária, reforçando-se os esforços nesse sentido da abertura do regime a outras vozes, mesmo se dissonantes e divergentes, com a crescente eclosão de sinais no sentido do multipartidarismo, da liberalização política e da democratização plena nos países do Leste da Europa, em especial na União Soviética de Mikhail Gorbatchov. Vicissitudes várias (infelizmente não elencadas na revista "Nação Cabo-Verdiana", o órgão de informação da UCID, durante muito tempo dirigido pelo contista e poeta Virgílio Pires), entre as quais as insanáveis dissensões entre os seus principais dirigentes e facções internas, justificam que, embora tenha contribuído para a sua eclosão, a Abertura Política anunciada a 19 de Fevereiro de 1990 pelo Secretário-Geral Adjunto do PAICV e Primeiro Ministro de Cabo Verde, Pedro Pires, pareça ter apanhado de surpresa a UCID. A surpresa ante a Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990 pode ser explicada pelos seguintes factores e circunstâncias: o afastamento por muito tempo do país e das suas realidades político-culturais imediatas e  a longa radicação no estrangeiro, com destaque para os países ocidentais desenvolvidos, onde os seus principais dirigentes e os seus militantes mais proeminentes tinham organizadas as suas vidas pessoais e profissionais;  o tardio regresso ou, simplesmente, o não regresso ao país de grande parte dos seus dirigente e responsáveis;  a não consagração da UCID, tal como ocorreu com o PAICV, como partido político caboverdiano histórico (na verdade o mais antigo com denominação e radicação exclusivamente caboverdianas nas ilhas e diásporas). Todos esses condicionalismos  ditaram a não legalização atempada da UCID junto do Supremo Tribunal  de Justiça caboverdiano,  alegadamente, do ponto de vista jurídico-formal,  por falta do número e da qualidade das assinaturas requeridas para o conjunto do país, para efeitos de sua participação nas primeiras eleições legislativas multipartidárias caboverdianas, de 13 de Janeiro de 1991. Nessa inglória sequência, os votos da UCID viriam a ser canalizados para as listas do recém-fundado MpD (Movimento para a Democracia), o que certamente terá também contribuído não só para a esmagadora maioria qualificada conseguida por este último partido mas também para a irrupção e a longeva persistência do pecado original da democracia pluripartidária caboverdiana que viria a ser a duradoura bipolarizaçâo do sistema político caboverdiano, de que nem a UCID, nem os demais partidos entretanto surgidos no panorama político caboverdiano (designadamente o PCD - Partido da Convergência Democrática, o PRD - Partido da Renovação Democrática, o PTS -Partido do Trabalho e da Solidariedade, o PSD - Partido Social Democrata e o PP - Partido Popular) conseguiram superar. Anote-se que parte desses mesmos partidos viria a ser extinta, designadamente o PCD e o PRD, vindo grande parte dos seus militantes e quadros a reintegrar as fileiras do MpD, partido do qual se tinham apartado na sequência de dissensões e fracturas intrapartidárias, ocorridas respectivamente em 1993/1994 e em 1998/1999, limitando-se quase todos os demais partidos, ainda formalmente subsistentes, designadamente o PSD, o PTS  e o PP, a marcar presença nas campanhas eleitorais para as eleições legislativas em alguns poucos círculos eleitorais e, por vezes, para algumas eleições autárquicas, nas últimas das quais ocorridas em 2020, aliás, o PP conseguiu eleger um representante para a Assembleia Municipal da ilha da Boavista.

É, pois, neste contexto de visíveis dificuldades para superar a bipolaridade político-partidária vigente como marca do pecado original da democracia representativa caboverdiana que se deve assinalar e louvar a ascensão da UCID ao estatuto de terceira força política parlamentar e segunda força política na importante ilha de S. Vicente, tanto nas eleições legislativas como nas eleições autárquicas, remetendo o PAICV para o terceiro lugar do pódio político-partidário insular, permanecendo o longevo partido de matriz democrata-cristã situado no centro-direita político como um partido essencialmente regional, ademais com um forte cariz regionalista, barlaventista e sanvicentino, o que vem constituindo uma sua força, mas também uma sua notória fraqueza, porque indutora da inviabilização em considerável medida do seu crescimento sociológico e eleitoral fora e para além do seu nicho partidário sanvicentino. Por outro lado, é assaz curioso que a UCID tenha deixado, desde as primeiras eleições multipartidárias caboverdianas, de ser um partido conotado essencialmente com as diásporas caboverdianas radicadas nos países ocidentais desenvolvidos da Europa e das Américas, como fora o seu caso notório e indesmentível nos primórdios do seu surgimento e da sua disseminação primacialmente diaspórica entre as comunidades caboverdianas.

Feita a devida, inusitada e, admite-se, pouca imaginativa extrapolação (certamente porque inundada de veracidade histórica, depois directa e tempestivamente observada,  e não somente pressentida pelos pressentimentos olhos exorbitados, enlouquecidos e enrouquecidos do Louco Predilecto da Cidade, mas pelas antenas ominipresentes e omniscientes  do cronista-mor e pelos sósias e pseudo-heteronínimos poéticos da sua vida e da sua morte severinas), relembre-se mais uma vez, de alguns factos e acontecimentos para os tempos vindouros da mudança política caboverdiana que, não por mero acaso mas  coincidentemente, acompanhou quase simultaneamente os inícios das mudanças políticas de carácter liberal-democrático a nível global do mundo e que ditaram a generalizada e abrupta falência dos regimes políticos de partido único, tanto de esquerda como de direita, quase sempre por implosão induzida na liberdade das urnas, em especial na Europa do Leste, na África subsahariana, na América Latina e nas Caraíbas ainda não plenamente democratizadas e em alguns países asiáticos, e que viria a prolongar-se  pelas duas décadas seguintes do século XXI, com ela e com as suas primaveras árabes, as suas revoluções democráticas coloridas e as suas insurreições populares e os seus golpes palacianos no interior dos sistemas políticos híbridos pseudo-democráticos varrendo algumas autocracias persistentes com a entrada em cena dos oligarcas e hierarcas e da sua institucionalização da cleptocracia como sistema lícito de célere e desregrada acumulação primitiva do capital e do baptismo do capitalismo selvagem como forma mais recente e consumada da chamada economia de mercado.

Consumadas a transplantação e a transfiguração onírica - mas muito veraz -dos factos e acontecimentos, ainda que em modo discursivo directo e sem ornamentos metafóricos, regresse-se aos tempos actuais, dos anos oitenta do século XX da plena se bem que renitente vigência do regime de partido único socializante caboverdiano, desses tempos de agora, nossos e do Louco Predilecto da Cidade, e às ruínas das suas palavras metamorfoseando-se camaleónicas e mantidas provisória e transitoriamente em suspenso. 

5. Anote-se neste por demais complexo e desafiante circunstancialismo que a natureza semântica da Constituição de 1980/1981 pode ser também aferida, paradoxalmente a contrario e exactamente no seu antónimo sentido substantivo, se bem que também nos seus precisos termos literais.  Sentido interpretado, aliás, de modo assaz benigno, e por vezes, igualmente maligno numa visão estritamente liberal-democrática ocidental, no sentido e na óptica de que a natureza do regime político e da ordem económico-social nela consagrados nunca foram realmente levados até às suas últimas consequências. É o que ocorre com o célebre artigo quarto que, consagrando o partido protagonista da luta pela independência e pela libertação nacional como força política dirigente da sociedade e do Estado, criava margens suficientes para a existência de um sistema político multipartidário, como, aliás, ocorreu em vários países de opção socialista e socializante, com destaque para alguns países de regimes ditos de democracia popular (como a RDA, a Polónia ou a Hungria), para a Nicarágua revolucionária ou o Madagáscar socializante de Didier Ratsiraka, mesmo se os partidos jurídico-legalmente co-existentes com o partido hegemónico e dominante vissem  o seu papel político bastas vezes reduzido ao de meros partidos satélites, muito semelhantes ao papel subsidiário desempenhado por aqueles partidos liberais-democráticos, nacional-democráticos e camponeses subsistentes no quadro dos chamados Blocos Democráticos e das denominadas Frentes Nacionais ou Populares nos supra-referidos países do Leste europeu, também (des)qualificados como países do socialismo real,  em tudo idêntico ao papel assaz corporativo/ sindical das organizações de massas da juventude, das mulheres ou dos trabalhadores, também elas integrantes dos blocos frentistas acima referenciados, cabendo nesses casos a esses partidos representar os interesses de classes e camadas sociais dirigidas no âmbito do processo dito de construção do socialismo com expressa salvaguarda do papel dirigente do chamado partido da classe operária em razão da alegada missão histórica de vanguarda desse mesmo proletariado,  bem como no processo de construção de sociedades socializantes de transição para uma futura e programada formação económico-social de transição para um modo de produção realmente socialista, não interessa agora se com mais ou menos perversões, desvios e retrocessos burocráticos, totalitários ou revisionistas, como reiteradamente alegado por várias correntes da extrema-esquerda revolucionária, como o rosa-luxemburguismo, o trotskysmo, o maoísmo nas suas muitas variações radicais resgatadoras do estalinismo e adeptas da chamada Grande Revolução Cultural Proletária após as célebres denúncias dos crimes de Estaline no famoso XX Congresso do PCUS de 1956 e o correlativo conflito sino-soviético, para além das habituais  posturas críticas e contestatárias das muitas correntes social-democratas e socialistas de esquerda e de direita e das tendências euro-comunistas, tornadas depois dominantes em alguns Partidos Comunistas da Europa Ocidental, com destaque para o Partido Comunista Italiano e o Partido Comunista Espanhol, depois extintos.  

No caso de Cabo Verde, são muitas as razões que podem ser carreadas para explicar a inviabilização e a impossibilitação de um sistema multipartidário fundante e congénito ao Cabo Verde pós-colonial, de todo o modo previsivelmente progressista e revolucionário.
De entre essas possíveis razões destacamos:

i. A neutralização política nos dias imediatamente anteriores às negociações entre o Governo português e o PAIGC,  que culminaram na celebração do Acordo de Lisboa para a transição para a independência política e as soberanias nacional e internacional do Estado de Cabo Verde, de todos os demais partidos políticos caboverdianos surgidos na cena política arquipelágica no período pós-25 de Abril de 1974, mediante a prisão de alguns dos seus mais destacados militantes, num estranho conluio e numa insuperável aliança política entre todas as tendências e correntes políticas presentes no ramo caboverdiano do PAIGC (nomeadamente a democrático-revolucionária, a trotskista e a maoista) e os representantes do  MFA colocado nas ilhas. Destaque-se que, na sequência dos acontecimentos políticos de 28 de Setembro de 1974, os quais levaram à derrota  e à queda políticas do General António de Spínola como primeiro Presidente da República Portuguesa designado no período pós-25 de Abril de 1974, a UDC (União Democrática Cabo-Verdiana), fervorosa defensora das teses federalistas do antigo Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas Portuguesas na Guiné plasmadas no best-seller Portugal e o Futuro, livro por ele publicado nos meses imediatamente anteriores ao golpe de estado revolucionário acima referido, desapareceu praticamente da cena política caboverdiana. Na sequência desse desaparecimento tácito, o grosso dos militantes e simpatizantes da UCD transitou para as até então muito minguadas hostes da UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde),  embrenhado em intensos monólogos políticos em comunicados impecavelmente impressos através da célebre Minerva de Cabo Verde. Diga-se em abono da verdade histórica que os comunicados da UPICV eram em regra bem elaborados  pelo seu líder solitariamente carismático José André Leitão da Graça, recém regressado do longo exílio em Dakar, com esporádica passagem inicial no Gana de Kwame Nkrumah, para, ainda que tardiamente, tentar dar a conhecer e implantar nas ilhas o partido caboverdiano ferrenhamente nacionalista contra a por ele denominada “união forçada de Cabo Verde com a Guiné-Bissau”, simultaneamente situado na esquerda radical revolucionária ou, se se quiser de outro modo, na extrema-esquerda dita maoísta caboverdiana no seu igual e equivalente combate tanto contra o imperialismo americano (de que a UDC seria a fiel representante nas ilhas) como também contra o social-imperialismo e ao revisionismo soviéticos (de que o PAIGC seria o instrumento e o mandatário-mor no arquipélago caboverdiano e na Guiné-Bissau).

A partir de então, a UPICV passaria exclusivamente a pugnar pela realização de um referendo sobre a pregnante questão da unidade Guiné-Cabo Verde, referendo esse que deveria ser prévio à proclamação da independência total e imediata de Cabo Verde, obviamente completamente separado tanto da República Portuguesa como também da República da Guiné-Bissau, deixando assim a UPICV de pugnar pela realização de um referendo de auto-determinação política para aferir sobre várias opções, quais sejam i. a independência política total e imediata,  ii. uma autonomia política no seio da nação portuguesa, ainda que provisória e visando uma eventual independência política a médio prazo , tal como, aliás defendido, pelo General Spínola e pelos seus sucessivos representantes ao mais alto nível político das ilhas e corporizados designadamente pelo Encarregado de Negócios Loureiro dos Santos e pelos Governadores Silva Horta e Sérgio Duarte Fonseca, por outros políticos portugueses, com destaque para Mário Soares, Ministro dos Negócios Estrangeiros, e António Almeida Santos, Ministro da Coordenação Interterritorial, pela própria UDC e por alguns intelectuais caboverdianos, com destaque para o médico e escritor neo-claridoso foguense Henrique Teixeira de Sousa. Ressalte-se que os  posicionamentos de Teixeira de Sousa, registados em Junho de 1974, no livro/brochura "Cabo Verde e o seu Destino Político",  pareciam ser assaz coincidentes com os posicionamentos de outros intelectuais claridosos-fundadores, como Baltasar Lopes da Silva, muito próximos no imediato pós-25 de Abril de 1974 da Associação Democrática de Barlavento que, com nominal abrangência pan-caboverdiana, viria a resultar na UDC, liderada pelo advogado João Baptista Monteiro.

II. O reconhecimento do PAIGC, ainda antes do 25 de Abril de 1974,  como único e legítimo  representante do povo de Cabo Verde por parte não só da ONU e da OUA, mas também por parte de inúmeras entidades internacionais, como, por exemplo, o Movimento dos Não-Alinhados e a Conferência de Solidariedade Afro-Asiática, tendo ademais esse partido proclamado unilateralmente  a 24 de Setembro de 1974 o Estado independente e soberano da Guiné-Bissau na região de Madina do Boé com grande e extenso apoio internacional.

3. A derrota e a queda do General Spínola e dos seus aliados e apoiantes, não só em Portugal como também em Cabo Verde, e a correlativa ascensão e consolidação vitoriosa da ala mais consequentemente anti-imperialista e anti-colonialista no seio do MFA, a qual possibilitou o desatamento do dossier Cabo Verde, deliberada e sucessivamente mantido no limbo para, em tempo oportuno, satisfazer os apetites geo-estratégicos da NATO e dos Estados Unidos da América e dos seus aliados neo-imperiais e federalistas portugueses e neo-colonialistas na posição geo-estratégica meso-atlântica privilegiada do arquipélago caboverdiano.

III. O papel activo do MFA de Cabo Verde, o qual tudo fez para neutralizar as forças políticas opositoras ao PAIGC, denunciando-as sistemática e ininterruptamente como “partidos políticos fantoches,  surgidos no imediato pós-25 de Abril de 1974 como no caso da UDC,  ou, para o caso da UPICV, fundado em 1958/1959 por Aires Leitão da Graça (irmão mais novo de José Leitão da Graça) nos Estados Unidos da América e refundado em Dacar durante o seu exílio por José Leitão da Graça, mas sem actividade política conhecida ou assinalável antes da data histórica acima referida, limitando-se a mesma ao envio de memorandos e declarações à ONU de denúncia das alegadas p+pretensões do PAIGC de anexar Cabo Verde à Guiné dita portuguesa (depois República da Guiné-Bissau), por isso sendo assaz reduzido o número  dos seus militantes conhecidos e activos, mesmo depois da sua saída da clandestinidade em Cabo Verde. Ilustrativa da postura pró-PAIGC por parte do MFA de Cabo Verde foi a proibição da primeira manifestação política de apoio à UPICV com consequente erecção de barricadas militares em todas as entradas da cidade da Praia, para onde foi programada a realização da mesma manifestação pública com a participação de populações do interior de Santiago e com o apoio político e logístico do Governador colonial Sérgio Duarte Fonseca e de outras forças spinolistas, no dia 1 de Novembro, dia dos Finados. Foi igualmente fundado na mesma argumentação contra a UDC e a UPICV,  acrescida da acusação contra alguns dos seus militantes de terem sido  antigos informadores e colaboradores da PIDE/DGS, da Legião Portuguesa e de outras forças conotadas com o derrubado regime colonial-fascista português que o mesmo MFA colaborou activamente na prisão e na colocação sob custódia no antigo campo de concentração do Tarrafal de dezenas de militantes e simpatizantes da UPICV e da UDC na primeira quinzena de Dezembro de 1974, a par da ocupação, a 9 de Dezembro do mesmo ano, por activistas do PAIGC da Rádio Barlavento, tida por abertamente defensora e veiculadora das teses federalistas e anti-paigcistas da UDC. Na prática, esses eventos políticos repressivos  significaram  a total neutralização política de toda e qualquer oposição política ao PAIGC como condição prévia ao início das negociações entre o PAIGC e o Governo português que desembocaram no Acordo de Lisboa, o qual estabeleceu a data da proclamação solene da independência nacional de Cabo Verde, instituiu um período de transição durante o qual seria formado um Governo de Transição do Estado de Cabo Verde, enquanto entidade político-administrativa semi-autónoma no quadro da República Portuguesa, devendo esse mesmo Governo de Transição constituído paritariamente pelo Estado português e pelo PAIGC e dirigido  por um Alto-Comissário português, se encarregar de governar no mesmo período de transição e de,  ademais, preparar todas as condições técnico-materiais e logístícas para a realização de eleições para uma Assembleia Legislativa com candidaturas propostas por grupos de cidadãos e à qual caberia a função da proclamação do Estado soberano e independente de Cabo Verde, a eleição do Chefe  de Estado (Presidente da República) e do Chefe do Governo (Primeiro-Ministro) desse mesmo Estado. Nos termos do Acordo de Lisboa e da Lei Eleitoral posteriormente aprovada pelas autoridades soberanas portuguesas, a mesma Assembleia Legislativa deveria constituir- se como Assembleia Constituinte soberana e, nessas vestes,  proceder à aprovação, no prazo de três meses após a sua eleição, da primeira Constituição Política da República de Cabo Verde. Antecipe-se aqui e agora que, tendo esse prazo inicial sido prorrogado  para um período de seis meses por deliberação da ANP (Assembleia Nacional Popular, nome que passou a designar a Assembleia Legislativa soberana e constituinte eleita a 30 de Junho de 1975), foi posteriormente uma Comissão integrada pelos juristas David Hopffer Almada (então Ministro da Justiça),  Manuel Duarte, António Mascarenhas Monteiro e Carlos Veiga , para a redacção da primeira Constituição da República de Cabo Verde, a qual viria a ser aprovada em Setembro de 1980, isto é, ainda no decorrer da primeira legislatura da ANP, com algumas alterações de pormenor (por exemplo, a substituição da expressão “Força Política Principal” por “Força Política Dirigente da Sociedade e do Estado para designar o papel nuclear do PAIGC no sistema político caboverdiano, tal como, aliás, estava já consagrada na Constituição Política da República da Guiné-Bissau de 24 de Setembro de 1974 paras esse país-irmão).

Na verdade, a neutralização política dos partidos políticos adversários e /ou opositores do PAIGC significou a instauração de facto de um regime de autoritarismo revolucionário de partido único socializante, ainda antes de encetado o período de transição para a independência política de Cabo Verde. Muitos dos novos encarcerados no Tarrafal, é certo que em “regime livre de recreio”, seriam libertados pouco  depois em razão da inexistência de provas consistentes para sustentar as suspeitas e as acusações contra os mesmos. Outros seriam libertados ainda antes da independência, tendo outros contra os quais pendiam mais consistentes acusações de terem sido agentes e/ou informadores da PIDE/DGS sido recambiados para Portugal para a prisão de Caxias para a prossecução dos respectivos processos, os quais viriam a ser depois arquivados. Alguns destes últimos participariam na fundação e/ou na militância activa na UCID numa óbvia sequenciação da sua anterior militância na UDC e, depois, na UPICV, na altura acrescida da sigla FP (Frente Popular), vindo esta a conhecer um longo estado de coma, para somente acordar de forma intermitente na sequência da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990 para definitivamente soçobrar à agonia e à morte inglória, depois de o seu líder e quase solitário dirigente ter regressado voluntariamente a Cabo Verde em 1986 para definitivamente se integrar na sua vida social, cívica e cultural pós-colonial certamente a instância e mediante os bons ofícios de José Araújo,  alto dirigente do PAIGC e, depois do PAICV, seu amigo e antigo confrade e colega do Grupo Nova Largada de Lisboa, depois de ambos terem provavelmente tirado as respectivas ilaçôes dos seus antagónicos posicionamentos sobre a questão da unidade Guiné-Cabo Verde e dos seus igualmente antagónicos ou, pelo menos, divergentes sentimentos sobre tão controversa e candente questão, doravante, nesses tempos pós-coloniais, definitivamente condenada à falência, quiçá para alívio, (in) satisfacão e (des) contentamento de todos, mesmo se de outros modos e em outros tempos, também de agora, também dilacerante de todos, salvo nos respectivos afectos, amizades e lealdades de infância e de criaturas amadurecidas com os tempos para as imprevisibilidades do Tempo...

 *Prosopoema iniciado por Alma Dofer Catarino, mas depois mental e mortalmente contaminado, e de modo assaz atroz e fulminante, por incursões discursivas de Dionísio de Deus y Fonteana, Tuna Furtado Lopes, Erasmo Cabral de Almada e Nzé de Sant´y Ago, envergando ambos os pseudónimos literários e ambos os pseudo-heterónimos poéticos   as vestes esquizofrénicas - incluindo as póstumas - do Louco Predilecto da Cidade

 

 

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