"Entre nós, parece haver uma tendência para reescrever a constituição, não pelas vias formais explicitadas na CRCV, mas através de mecanismos informais".
“Os tribunais não podem aplicar normas contrárias à Constituição ou aos princípios nela consignados”
(Nº 3 do artigo 211º da Constituição da República)
A recente decisão do Tribunal Constitucional (TC) de permitir, informalmente, a “revisão constitucional” de uma norma constitucional, para atender interesses(?) ou necessidades(?) outras, é um exemplo acabado de inauguração de “ativismo judicial”.
O Tribunal Constitucional, que se tem afirmado, no panorama jurídico-constitucional cabo-verdiano, como uma das instituições mais credíveis e respeitadas do país, abriu uma nova era no constitucionalismo cabo-verdiano ao romper com o princípio da supremacia da constituição (expressamente estipulada nos nºs 2 e 3 do artigo 3º da CRCV), ao declarar a constitucionalidade da Resolução 3/X/2021 com base ou fundamentos nos costumes contra a constituição que TC entendeu fazerem parte da ordem jurídica cabo-verdiana, situando-se, hierarquicamente, acima da própria CRCV, podendo derrogar as suas normas.
Com a inovação trazida pelo douto Acórdão N.º 17/2023 do Tribunal Constitucional (TC), o nº 1 do artigo 148º e o artigo 151º da Constituição da República (CRCV) passam a ser normas constitucionais ineficazes, sem força impositiva, passando a vigorar com força de lei as praticas da Assembleia Nacional, ainda que desconforme com a constituição.
Contrariamente a muitos países que não têm constituições escritas ou se as têm são consideradas flexíveis, Cabo Verde tem uma constituição escrita e as normas constitucionais são vinculativas.
Um dos princípios fundamentais do nosso Estado Direito está consagrado nos nºs 2 e 3 do artigo 3º da CRCV, segundo o qual “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática, devendo respeitar e fazer respeitar as leis. Mais, a CRCV proclamou e determinou que “As leis e os demais atos do Estado, do poder local e dos entes públicos em geral só serão válidos se forem conformes com a Constituição”.
Está-se aqui perante um princípio/dever constitucional que imana da CRCV que se impõe a todos, incluindo o TC: enquanto uma lei estiver em vigor, ela deve ser respeitada, ainda que não se aplique todos os seus efeitos. Isso significa que o TC, também, no quadro da liberdade de interpretar que lhe é concedido, não pode, não deve, violar a constituição, permitir ou pactuar com a sua violação. Também o TC tem de se submeter à CRCV.
O Doutor Aristides Lima, juiz conselheiro do TC, defendia, de forma categórica, na sua declaração de voto no acórdão nº 27/2017, de 20 de dezembro, que “modernamente, a ideia de Constituição está ligada essencialmente a fontes escritas, legais”. Para de seguida acrescentar que “é evidente que no nosso sistema jurídico de matriz romano-germânica, o costume é uma fonte de direito admissível, mas apenas de forma muito residual”. O conselheiro do TC na sua declaração de voto nesse acórdão aceita que “se pode admitir um costume parlamentar secundum constitutionem, que está em conformidade com as normas e princípios constitucionais e um costume praeter constitutionem, que vai para além das normas e dos princípios constitucionais”. Porém, de forma enfática assevera que “não parece aceitável admitir na prática um costume contra um sentido claro da norma constitucional e contra a finalidade desta”.
O Doutor Aristides Lima sustenta a sua tese, baseada em vários autores e doutrinas, e aproveitou nessa declaração de voto para citar Konrad Hesse que reproduzimos: “O efeito estabilizador e racionalizador de uma Constituição é fortalecido, quando se trata de uma Constituição escrita»… « Por causa da função da Constituição escrita, não é possível com base na invocação de direito não escrito ignorar o direito constitucional escrito”.
Lamentavelmente, parece que foi o que, incompreensivelmente, o TC não fez!
O atual Presidente do Tribunal Constitucional, Doutor José Pina Delgado, na ocasião juiz conselheiro, também produziu uma declaração de voto, no citado acórdão nº 27/2017, na qual defendia que “no quadro do sistema constitucional pátrio, admite-se, por motivos naturais, o costume secundum legem e o costume praeter legem, mas também o contraconstitutionem, desde que não se atinjam normas respeitantes a matérias protegidas do poder de revisão da constituição pela cláusula de limites materiais ou os direitos, liberdades e garantias”, e, nesse último ponto, divergindo-se parcialmente da posição do juiz conselheiro Aristides Lima, ao admitir o costume contraconstitutionem, desde que não atinjam matérias sujeitas a limites materiais de revisão.
Lamentavelmente, parece que foi o que, incompreensivelmente, o TC não fez!
No entanto, a nossa constituição parece afastar-se da ideia do costume contraconstitutionem, quando estabelece no nº 1 do Artigo 277º que “São inconstitucionais as normas e resoluções de conteúdo normativo ou individual e concreto que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.
A CRCV não deixou para mãos alheias o poder de decisão sobre essa matéria. Em casos de normas e resoluções de conteúdo normativo ou individual que violem ou os princípios constitucionais ou as disposições constitucionais, a CRCV tomou posição e disse claramente que são inconstitucionais, não deixando espaço para tergiversações.
Recentemente em Portugal, tivemos um episódio a que se pode fazer algum paralelismo com o caso em apreço: o Tribunal Constitucional Português procedeu, a pedido da Provedora de Justiça, a fiscalização abstrata sucessiva de normas de uma lei, e através do Acórdão n.º 268/2022 declarou inconstitucionais os artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008. A decisão de inconstitucionalidade, segundo o Tribunal Constitucional, produzia efeitos, remontando a 2014, data que o Tribunal Europeu decidiu sobre a matéria, considerando-a em desconformidade com Carta dos Direitos Fundamentais da UE. Não satisfeita, com a decisão do Tribunal Constitucional (TC), a Procuradora Geral da República apresentou um requerimento, arguindo a nulidade do Acórdão. Na resposta, o TC, através do Acórdão n.º 382/2022, decidiu que a requerente carecia de legitimidade. Eventualmente questionado sobre os efeitos da decisão, o TC afirmou que “os efeitos da declaração de inconstitucionalidade são determinados pela Constituição e não pelo Tribunal Constitucional”.
Ou seja: há matérias constitucionais que a própria constituição decide, deixando, apenas, espaço para o seu cumprimento.
Embora desde 2014, o uso de metadados para fins diversos, inclusive para investigação criminal, tenha sido uma realidade, o TC não invocou uso e costumes para validar praticas que violavam a Constituição: respeitou e cumpriu a Constituição.
Lamentavelmente, parece que foi o que, incompreensivelmente, o nosso TC não fez!
Entre nós, parece haver uma tendência para reescrever a constituição, não pelas vias formais explicitadas na CRCV, mas através de mecanismos informais.
No entendimento do TC, transposto para o acórdão 27/2023 vem escrito que “Ora, admitindo-se o costume constitucional contra a Constituição como o Tribunal admite, tal significa que se pode aceitar um efeito derrogatório em relação à norma do nº 1 do artigo 148º da Constituição da República. Assim, a resolução nº 3/X/2021, de 12 de julho, da Comissão Permanente não é inconstitucional por ser conforme a norma costumeira constitucional.
Pois bem: a norma costumeira contra a constituição entrou em vigor quando? Foi publicitada quando? A garantia constitucional de que nenhum ato ou norma poderá subsistir se for contrário à constituição deixou de existir? E deixamos de respeitar o estatuído no nº 1 do artigo 9º do Pacto dos Direitos Civis e Políticos (Lei nº 75/IV/92) que diz que “Ninguém poderá ser privado de liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos”.
Onde estão estabelecidos os procedimentos para aplicação do direito costumeiro, especialmente o referente ao costume contra a constituição?
O princípio constitucional do primado da constituição passa a ser o primado da constituição costumeira?
A decisão do TC, porque a constituição é um sistema, alicerçado em princípios, não só derrogou o nº 1 do artigo 148º. Também, simultaneamente, derrogou os nºs 2 e 3 do artigo 3º, o nº 1 do artigo 12º, o nº 2 do artigo 15º, os nºs 2, 3 e 4 do artigo 17º, artigo 18º, o nº 2 do artigo 30º, os nºs 3 e 4 do artigo 32º, a a) do artigo 85º, o nº 1 do artigo 154º, o nº 1 do artigo 161º, o nº 2 do artigo 170º, a d) do artigo 175º, os nºs 1, 2 e 3 do artigo 211º, a a) do artigo 215º, o artigo 262º, o nº 1 do artigo 277º, os nºs 1 e 2 do artigo 281º, o nº 3 do artigo 286º e, finalmente, o nº 2 do artigo 290º.
Parecendo que não, porém, esta decisão do TC mexe com tudo isso, nuns casos, tornando as normas derrogadas ineficazes, e noutros, ficam a carecer de ajustamento para que estejam alinhados com o novo princípio constitucional, imposto pelo TC.
Para se perceber melhor a dimensão e a profundidade desta decisão do TC e da alteração que dela emerge, vejamos o que foi posto em causa também nesta decisão: o artigo 211º da CRCV estabelece os princípios fundamentais que devem nortear a administração da justiça, consubstanciados nos seguintes:
“1. No exercício das suas funções, os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à Constituição e à lei.
2. Os tribunais só podem exercer as funções estabelecidas na lei.
3. Os tribunais não podem aplicar normas contrárias à Constituição ou aos princípios nela consignados”.
A questão se coloca face a este comando constitucional é a de saber se o Tribunal Constitucional tem poderes para aplicar leis ou normas contrárias à constituição?
Ora, se a CRCV diz taxativamente que “Os tribunais não podem aplicar normas contrárias à Constituição”, o TC poderá achar que pode? O TC acha que está acima da Constituição? Se sim estamos mal, perigosamente mal!
Alguém terá de explicar ao homem comum ou médio cabo-verdiano qual é o real significado do que está expresso no artigo 262º da CRCV que diz que “Nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos, nem atribuir a atos normativos de outra natureza poder para interpretação autêntica ou integração das leis, bem como para modificar, suspender ou revogar qualquer ato legislativo”.
O que é que a CRCV quer dizer, acautelar ou afastar?
A CRCV estaria avisar que não aceita a derrogação das suas normas, através de atos normativos que crie normas costumeiras contra a constituição?
Permitir, que se faça informalmente “revisão constitucional” ou que o costume passe a ter poder derrogatório de normas constitucionais, não pode ser uma ideia ou uma solução imposta ao país por uma pessoa, por um parecer ou um grupo limitadíssimo de pessoas, que mesmo amparadas em legitimidade funcional e institucional, por mais iluminadas que sejam, pois, ficar-lhes-á sempre a faltar a legitimidade originária para impor as suas opções porque elas não foram sufragadas pelo voto popular. Trata-se de uma matéria controversa, onde não há unanimidade na doutrina, nem mesmo entre os estudiosos e especialistas dessa problemática, fato que, por si só, exigiria prudência, e um amplo e alargado debate que possibilitasse o país escolher de forma racional, criteriosa e consciente o caminho que pretende trilhar, dando claramente indicação na própria constituição que é essa solução que a nação deseja.
Se a tese de revisão informal da constituição vigorar, teremos necessariamente que flexibilizar também algumas exigências constitucionais, por já não fazerem muito sentido estarem inscritas na constituição, nomeadamente: (i) a norma que determina que a revisão ordinária se faça “decorridos cinco anos sobre a data da publicação da última lei de revisão ordinária”; (ii) a exigência, segundo a qual, o poder de iniciativa para que haja a revisão extraordinária da constituição seja de “maioria de quatro quintos dos Deputados em efetividade de funções”; ou ainda (iii) a imposição para que a alteração da constituição seja aprovada “por maioria de dois terços dos Deputados em efetividade de funções”, uma vez que com o constitucionalismo costumeiro contra a constituição instaurado, passaremos a poder rever a constituição a todo tempo sem ter que seguir a tramitação imposta pela CRCV. Ou seja: deixa de fazer sentido, de a CRCV rodear-se de cautela máxima com relação a tudo o que tivesse a ver com “mexidas” ou revisão da constituição, exigindo, para que tal acontecesse, houvesse regras, procedimentos e um amplo consenso, já que, a partir de agora, bastará que se vá reiteradamente agindo contra a constituição para que essa conduta se afirme como normas do direito de costume constitucional.
Parecendo que não, é tudo isso que está em causa nesta decisão do TC, passando esta instância de aplicador da lei, de ajustador de omissões, imprecisões ou lacunas de normas, para produtor de normas constitucionais: é preciso, pois, estar-se ciente disso!!! E é uma deriva perigosa!!!
No caso da Resolução 3/X/2021, não se pode sequer invocar as práticas e os costumes, como parece fazer crer o acórdão n.º 17/2023, uma vez que esse episódio de detenção do deputado ocorreu pela primeira vez no nosso país. Não se conhecem precedentes na história parlamentar cabo-verdiana, de a Assembleia Nacional ser confrontada com um pedido para detenção de um deputado fora de flagrante delito, e o parlamento ter de decidir se se autoriza ou não a sua detenção. É claramente um rito completamente diverso, com exigências procedimentais próprias, já que a detenção ou a prisão de um deputado, é, nem mais nem menos, do que a privação da liberdade a um titular de órgão de soberania, não tendo, portanto, nenhuma relação com autorização a um deputado a ser ouvido como testemunha ou como perito.
Ademais, com a revisão da constituição em 2010, o legislador constituinte quis deliberadamente romper com a prática anterior, porquanto no nº 1 do artigo 147º da versão originária da constituição de 1992, falava-se nos “intervalos das sessões”, sem se referir a que tipo de sessões, já com a revisão constitucional de 2010 clarificou-se a norma, dizendo claramente que é nos intervalos das sessões legislativas, tendo sido tipificados os momentos concretos que a Comissão Permanente pode intervir em substituição da Assembleia Nacional.
E nem se pode invocar que o Regimento da Assembleia Nacional disponha de normas que permitam a Comissão Permanente se reunir no intervalo das Sessões Plenárias, e ignorar olimpicamente que a CRCV dispõe de normas que contrariem o Regimento, sabendo, como sabíamos até bem pouco tempo, que a constituição considera que “As leis e os demais atos do Estado, do poder local e dos entes públicos em geral só serão válidos se forem conformes com a Constituição”.
Neste caso em apreço, nem as próprias disposições do regimento foram respeitadas, quando se estabelece na alínea c) do artigo 135º do Regimento que se fazem por escrutínio secreto “As deliberações sobre matérias respeitantes ao mandato e à imunidade do Deputado”.
Afinal, somos ou não um Estado de Direito onde impera o princípio, a soberania e o império da lei?
As perguntas que se colocam e não encontram respostas no texto do acórdão são as seguintes:
Alterou-se o princípio do primado da CRCV, passando o costume contra a constituição a ter supremacia em relação à constituição escrita?
Pode o costume contra a constituição alterar princípios constitucionais que são fundamentos do Estado de Direito?
Com a entrada em vigor da Lei Constitucional nº 1/VII/2010, o nº 1 do artigo 148º da CRCV é, ou não, uma norma de aplicação imediata?
A Lei Constitucional nº 1/VII/2010 produziu, ou não, efeitos no ordenamento jurídico cabo-verdiano, derrogando o direito anterior, em tudo o que contrariasse a constituição e os seus princípios?
O nº 1 do artigo 148º da CRCV é uma norma de eficácia plena ou carece de alguns requisitos para a sua aplicação?
A resolução 3/X/2021, que autoriza a detenção fora de flagrante delito, enquadra-se, ou não, na esfera dos direitos, liberdades e garantias constitucionais, porquanto com a sua aprovação suprimiu o direito à liberdade de um cidadão?
Se sim, porque se optou por aplicar os costumes em matérias integradas nos limites materiais de revisão, contrariando, ao que parece ser, a própria tese do acórdão nº 17/2023?
Se sim, ainda, porque foram ignorados os dispostos no nº 2 do artigo 17º e no artigo 18º da CRCV?
São questões que carecem de explicações e esclarecimentos do TC.
Estranhamos que uma decisão tão controversa, que rompe com princípios constitucionais, como a tradição e o consenso sobre o princípio da SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO, não tenha merecido nenhum comentário ou reação minimamente fundamentada dos diferentes atores da nossa comunidade jurídica e política (claro que não me refiro às partes interessadas no processo).
Mais estranho, ainda, é o facto da nossa comunicação social, salvo algumas exceções, ter simplesmente ignorado a emergência deste relevante facto social, jurídico e político, não promovendo debates, confronto de opiniões, análises de especialistas (com tantos professores universitários e especialistas de direito que temos, e políticos, também, uma vez que a constituição é uma peça mais política do que jurídica), visando uma melhor compreensão e um esclarecimento mais acabado do significado e das implicações desta inesperada e controversa decisão do Tribunal Constitucional.
O Senhor Presidente da República, que ao ser investido no cargo, com base nesta Constituição, jurou, “defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição, observar as leis”, como fica com o seu juramento depois dessa decisão do TC?
Não podemos continuar a ser um país de “come e cala” num amorfismo social e num culto de gestão do silencio que “matam” a cidadania ativa e asfixia a participação cívica, nos assuntos que dizem respeito às nossas vidas e à da nossa coletividade.
O calculismo e o tacticismo, em demasia, podem matar a democracia!
Hoje morre uma parte da democracia, amanhã outra e depois todas.
E quando assim acontecer, não teremos sequer o direito de “chorar” pela democracia perdida, pois, fomos nós que a matamos com a nossa omissão e o nosso silêncio.
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