Este texto é a versão integral da intervenção feita por José Luis Hopffer Almada por ocasião da realização pela Associação Caboverdeana de Lisboa do jantar literário de homenagem a Germano Almeida, no dia 16 de junho de 2018, Prémio Camões 2018, na presença do galardoado e familiares, do Embaixador e da Embaixatriz de Cabo Verde em Portugal, do Presidente da Direcção da Associação Caboverdeana, dos membros dos órgãos sociais da mesma Associação e dos numerosos participantes da mesma sessão cultural.
Lembro-me perfeitamente de quando e de como conheci Germano Almeida.
Eu e o Mito Elias fôramos convidados pelo Banco de Cabo Verde, enquanto membros do Movimento Pró-Cultura recém-revelados no depois celebrizado Voz di Letra, para irmos assistir ao lançamento do livro Cântico da Manhã Futura, de Osvaldo Alcântara (pseudónimo de Baltasar Lopes da Silva para a escrita poética), editado pelo mesmo Banco para assinalar o cinquentenário da revista Claridade.
Assim, foi no mesmo dia que pela primeira vez visitei a cidade do Mindelo que, no muito concorrido jantar de homenagem então oferecido a Baltasar Lopes da Silva, também conheci o Germano Almeida e o Leão Lopes, então co-directores, com Rui Figueiredo Soares, da revista Ponto & Vírgula.
Nessa ocasião, pude recitar um poema meu (“Permanência”), muito crítico em relação à situação político-social então vigente, por isso, dedicado ao cartoonista emergente Mito Elias, e que deve ter impressionado positivamente o Germano Almeida e os demais directores da revista Ponto & Vírgula, pois que me felicitaram efusivamente e logo ali convidaram-me a publicar o poema na mesma revista. Não o podia fazer pois que o mesmo tinha sido já publicado no Voz di Letra, suplemento literário mensal do semanário Voz di Povo, coordenado por Oswaldo Osório e Ondina Ferreira e efectivamente dinamizado pelo Movimento Pró-Cultura que nele fez a sua fecunda irrupção, revelando poetas, contistas e cronistas como Filinto Elísio Correia e Silva, Zé di Sant´y Águ (nome literário de José Luís Hopffer C. Almada), Euricles Rodrigues (pseudónimo de Daniel Euricles Rodrigues Spínola, o então conhecido jovem jornalista e futuro escritor Danny Spínola), Rosa de Saron, Eurico Correia Monteiro, Mito (nominho e nome artístico de Fernando Hamilton Barbosa Elias), Eurico Barros, Rodrigo de Sousa (pseudónimo literário de Rodrigo Rodrigues Sousa Fernandes), Kaliostro Fidalgo (pseudónimo do já falecido Pedro Delgado Freire), L3 (pseudónimo literário do também extinto Alípio Clarence Lopes dos Santos), entre muitos outros, alguns deles hoje incontornáveis protagonistas dos muitíssimos afazeres da nossa praça literária. Acrescente-se que se trata do mesmo suplemento literário homónimo daquele muito referenciado no livro O Meu Poeta, de Germano Almeida, como lugar predilecto de publicação dos execráveis e mal-amanhados versos da personagem farsante e arrivista de que trata o mesmo livro e que se vangloriava e se locupletava abundantemente de um seu suposto estatuto de poeta e cronista desejavelmente do regime vigente (a esse propósito os leitores dessa obra de Germano Almeida devem certamente recordar-se dos para sempre famigerados versos de “Ode à Baía das Gatas” e de “Canto às Verdanças”, como exemplos acabados e muito ilustrativos da má catadura literária dos versos de “o meu poeta”).
Em alternativa ao poema “Permanência”, publicou-me a revista Ponto & Vírgula, para muito orgulho meu e, pelos vistos, no seu derradeiro número, o 17, de Dezembro de 1987, o poema “Acaso”, atribuído ao meu nome literário Alma Dofer e dedicado a Milan Kundera, escritor muito badalado na altura em razão do impacto político-literário e do sucesso editorial do seu romance A Insustentável Leveza do Ser.
Revista de intercâmbio cultural, como a si própria se classificava, a revista Ponto &Vírgula viria a demonstrar-se como uma espécie de importante elo de ligação entre integrantes e contemporâneos das antigas gerações claridosas e nova-largadistas de todas as vagas, como António Aurélio Gonçalves, Baltasar Lopes da Silva, Félix Monteiro, António Carreira, Rendall Leite (com traduções de poemas de Jorge Barbosa e de trabalhos de Bentley Duncan e do Capitão Georges Roberts sobre os passados tempos das ilhas), Manuel Pereira Serra, Teobaldo Virgínio, Luís Romano (também na qualidade de estudioso da vida e da obra de Eugénio Tavares), Nho Djunga (nome por que era mais conhecido o fotógrafo, cronista, dramaturgo e filantropo João Cleofas Martins, importante personalidade mindelense recordada e homenageada pela revista, à semelhança também do mítico artista do violão Luís Rendall e do então vivíssimo violinista António Travadinha), Arnaldo França, Yolanda Morazzo e Augusto Mesquitela Lima; das novas gerações revelados no período colonial e fugaz ou amplamente consagrados no período pós-25 de Abril de 1974 e pós-independência, como Oswaldo Osório, Arménio Vieira (tanto na sua conhecida pele ortónima como nas suas novas vestes de Silvenius), Henrique de Oliveira Barros, Pedro Gregório (enquanto ensaísta), João Lopes Filho (enquanto ensaísta e como entrevistador de importantes personalidades da cultura caboverdiana, como António Aurélio Gonçalves, Baltasar Lopes da Silva, Manuel Lopes, Henrique Teixeira de Sousa, Luís Romano, Nuno Miranda, João Rodrigues), Manduca Didite (pseudónimo literário de Armando Lima, Jr., que também assina versos em português na mesma revista) e Francisco Fragoso; e, finalmente, das novíssimas gerações em processo de afirmação nesses miraculosos anos oitenta do século passado, como o linguista Eduardo Cardoso, o historiador Daniel Pereira, o jurista Rui Araújo, o arquitecto António Jorge Delgado, os ensaístas culturais José Vicente Lopes (também aí revelado como ficcionista), T. V. da Silva, Vasco Martins, Leão Lopes, Luís Gouveia e Luís Araújo, os poetas e aprendizes de poeta Sukre d´Sal (pseudónimo literário de Francisco Tomar, que também assina um texto sobre o mítico Luís Rendall), Kaká Barboza (nominho e nome literário de Carlos Alberto Barbosa para a escrita de poesia em crioulo), Vera Duarte (com alguns dos seus muito conseguidos “Exercícios Poéticos”), Mário Lúcio Sousa, Djuzé Kamporta (igualmente ficcionista), Jacques Jael, Canabrava (pseudónimo literário de Pedro Vieira, também articulista em prosa), Dina Salústio, (José) Cabral, Luís Silva, Manuel Delgado, Paula (Vasconcellos), Luís d´Arsolmar, BL, ML, Kissanje, Lopes Talaia, Alma Dofer e outros então (in)decifráveis pseudónimos e nomes literários, os contistas/cronistas Romualdo Cruz, Filinto Barros, Binga (pseudónimo literário de Alberto Ferreira Gomes), João Tavares, Júlio Correia, Nicolau de Tope Vermelho (nome literário de José Maria Ramos), Jorge Tolentino, Deodato Delgado, Jocara e Luís Martins, os artistas gráficos e plásticos Jorge Cardoso e Leão Lopes (responsável gráfico da revista que também entrevista uma recém-ressuscitada Cesária Évora e assina textos em prosa). Sublinhe-se ainda a colaboração de autores estrangeiros, como Alfredo Margarido (em texto polémico sobre Pedro Cardoso), Jean-Michel Massa, Michel Laban, Teixeira da Mota, Boaventura de Sousa, Pires Laranjeira, James H. Kennedy (sobre a poesia afro-brasileira), e G. Martin/A, Mayeux (sobre plantas oleaginosas).
A revista Ponto & Vírgula pôde assim tornar-se emblemática, comprovando-se indubitavelmente como uma lufada de ar fresco cultural, muito acarinhada pelos cultores das artes e das letras, pelos críticos do regime socializante de partido único então vigente (acrescente-se que de mitigado autoritarismo revolucionário, se bem que com esporádicas, se não regulares, explosões totalitárias como se evidenciou ostensiva e inequivocamente nos eventos de 31 de Agosto de 1981, em Santo Antão, e nas suas muitas sequências e sequelas repressivas, violadoras dos mais elementares direitos humanos dos seus protagonistas/vítimas) e por todos os que nessa altura demandavam uma sociedade mais aberta e tolerante, culturalmente mais amadurecida, mais cultivada do ponto dos direitos universais dos seus cidadãos e mais ciente de si mesma e do seu lugar no mundo, mais preocupada com as questões ambientais e as problemáticas sociais, e, erigidos em estátuas móveis ou semoventes do nosso quotidiano, se riam de si próprios e das muitas peripécias ecoando desses dias também assaz esquizofrénicos.
A revista Ponto & Vírgula celebrou, como sabem com muito bem-humorada e vaidosa antecipação, o seu quinquagésimo aniversário, exactamente em 1987, o ano da aparição do seu derradeiro número, o 17, acima referido, e um ano depois das grandiosas celebrações homólogas da revista Claridade e marcantes da reconciliação oficial entre os proclamadores da independência política de Cabo Verde e os proclamadores da independência literária do arquipélago crioulo.
Muitos dos antigos novíssimos escritores vindos do período colonial e alguns dos candidatos a escritores nesse já longínquo antanho situado nos anos oitenta do século passado, de vigência ainda do regime revolucionário nacional-democrático de partido único, são hoje escritores consagrados, Prémios Camões e/ou íntimos ou públicos postulantes a esse galardão máximo atribuído a autores das literaturas de língua portuguesa.
Por outro lado, muitos dos que não quiseram, não souberam e/ou não puderam atinar-se (suponha-se, com a devida benevolência, que a longo prazo e na esfera pública) com os respectivos afazeres literários e prosseguir nas lides culturais, alicerçando, de modo mais consequente e perene, as geralmente bem conseguidas experiências literárias então encetadas, e, por isso, não se consagraram de modo inequívoco na literatura e nas artes, viram as suas ambições de realização pessoal e de eventual grandeza social se concretizar na política, na diplomacia, no professorado, na magistratura, na advocacia, no jornalismo, na vida empresarial, na investigação, na academia, no desporto, entre outras áreas relevantes.
Numa óptica quase semelhante, e fenecido o frémito inicial que, confesse-se, a todos - os agora consagrados, os desistentes e os porventura somente adiados cultores das letras- assolara, entusiasticamente inoculado pelas promessas geracionais de afirmação (quiçá, até, de celebridade) literária germinadas nos auspiciosos anos setenta e oitenta do século passado, para sempre documentadas nas revistas Raízes, Ponto & Vírgula, Fragmentos e Sopinha de Alfabeto, nas páginas literárias e nos suplementos culturais dos jornais Voz di Povo (com destaque para o suplemento literário Voz di Letra), Terra Nova e Tribuna, nas páginas literárias de revistas do partido então no poder e das organizações de massas suas satélites, bem assim dos Secretariados Administrativos de alguns municípios, tais as revistas Unidade e Luta (do PAIGC/CV-PAICV), Mudjer (da OMCV), Seiva (da JAAC-CV), Dja d´Sal (do município do Sal) e Magma (do município do Fogo), em inúmeros boletins e folhas estudantis, impressos ou mimeografados, e mais ou menos adstritos à JAAC-CV, tais os boletins mimeografados Cafuca, de jovens escribas do Tarrafal de Santiago, e Despertar, de jovens aprendizes de escritores de São Vicente, e a folha impressa Aurora, de jovens plumitivos do Liceu Domingos Ramos da Praia, na antologia poética juvenil Canto Liberto, editado pela JAAC-CV e integrando poemas dos fundadores e dinamizadores da AJEC (Associação dos Jovens Escritores Cabo-Verdianos, fundada em 1982 na cidade do Mindelo), vindo toda essa promissora colheita resultante da faina literária e da safra poética das duas décadas acima referidas a ser arquivada na colectânea panorâmica de poesia, a um tempo mirabílica e miserabílica, intitulada Antologia dos Novíssimos Poetas Cabo-Verdianos - Mirabilis de Veias ao Sol (organizada em 1987 pelo autor das presentes linhas, editada em 1991 pela portuguesa Editorial Caminho e, depois de devidamente revista, reimpressa em 1998 pelo cabo-verdiano Instituto da Promoção Cultural, mas mantendo na íntegra o elenco desigual dos poetas seleccionados e editados em 1991, e, assim, optando pela total fidelidade à muito polémica, controversa e latamente panorâmica escolha inicial), muitos dos revelados nos anos setenta e oitenta do século transacto (alguns, aliás, de comprovado talento na escrita literária), deixaram-se perder na marginalidade e no estranho e relativo, porque fictício, anonimato das ilhas e diásporas.
Ademais, e infelizmente, algumas dessas promessas literárias, reveladas e/ou firmadas nas duas décadas finais do século XX, deixaram-nos para sempre, deslocando-se definitivamente, e para nunca mais, para um lugar situado algures na eternidade e a que, mantendo-nos estritamente no campo literário e no domínio da compaixão cristã, se poderia, sem qualquer prurido e sem pejo de espécie alguma, também chamar Pasárgada.
O momento que ora vivemos nesta histórica casa que é a antiga Casa de Cabo Verde e actual Associação Caboverdeana de Lisboa, também ela protagonista de importantes efemérides narradas por Germano Almeida, parece corroborar o juízo de José Osório de Oliveira, consabidamente muito enaltecedor dos literatos e dos letrados caboverdianos.
Nos livros de Germano Almeida os tempos parecem ser concomitantemente idênticos a esses antigos tempos de veneração e celebridade dos nossos poetas, descritos por José Osório de Oliveira, e a eles diametralmente opostos.
Idênticos a esses tempos se nos ativermos, por exemplo, à intriga de O Fiel Defunto, o seu mais recente romance e em cujo enredo personalidades políticas, Homens de Estado e, até, altíssimas entidades religiosas, à cata de protagonismo político-social, notoriedade mediática e visibilidade pública, aproveitam-se dos inusitados circunstancialismos conexos com a morte súbita e inesperada e com os funerais de Estado do "nosso muito insigne escritor" para mais e melhor darem nas vistas, como diria um meu antigo professor do Liceu Domingos Ramos, curiosamente em flagrante, se bem que involuntária, violação das disposições previamente estabelecidas pelo próprio escritor para serem estritamente cumpridas pela sua companheira, temporariamente ausente nos Estados Unidos da América.
Muito diferentes e situados, até, nas antípodas dos tempos nobilitantes da poesia e da literatura descritos por José Osório de Oliveira parecem ser os tempos dos livros de Germano Almeida, especialmente se nos debruçarmos sobre o enredo de O Meu Poeta, A Morte do Meu Poeta e de outras intrigas romanescas da sua lavra, nas quais, e apesar das ilusórias aparências de uma fama prematura, artificiosa e falsamente construída, se bem que delineada e prosseguida de forma coerente e perseverante na sua ambiciosa teimosia (ou teimosa ambição) parasitária e manipuladora da sua Isba e do seu escriba/ biógrafo/secretário particular (eles também, diga-se, consumados parasitas e manipuladores da meteórica ascensão social e política do depois embaixador itinerante da cultura /embaixador político e poeta/presidente da república, o mérito literário, mínimo que fosse, parece não bastar-se a si próprio e ao desejo de celebridade que parece habitar o ego de todos os cultores das artes e letras, sendo o fraudulento “poeta” do livro obrigado a praticar uma infinidade de actos oportunistas por forma a solidamente atrelar-se a outros por ele considerados ainda mais prestigiantes e compensadores títulos, cargos e funções, sempre sinónimos, sempre significativos de mais substanciosos e compensadores laços comestíveis com o Estado, como imaginativamente e em outro lugar diria o próprio Germano Almeida.
É esse desejo de celebridade, a nossa muito glorificada e auto-compassiva egolatria, a que também se tem designado como a bazofaria caboverdiana moldada para os letrados e os artistas nossos, islenhos, que igualmente se detecta no realmente talentoso se bem que assaz moroso maestro de O Fiel Defunto e no muito bazófio personagem-prosador de As Memórias de um Espírito, o autoproclamado primeiro escritor profissional de Cabo Verde que, todavia, tem dificuldades em editar os seus livros e, por isso, os acumula na gaveta (isto é, nos arquivos do seu computador), vivendo a expensas da esposa-rica herdeira Aninhas, e cujos nome Romualdo Cruz e pseudónimo Rualdo Cruz (popularmente conhecido por Caga-Vírgulas e circunstancialmente auto-figurado como escriba perito em discursos/orações/elogios fúnebres) titulam um discurso oral quase que plasmado no discurso escrito, muito elaborado, por isso por demais arrevesado e grandiloquente e em tudo diferente da prosa escorreita e acrioulada do verdadeiro Romualdo Cruz, primeiro e verdadeiro pseudónimo publicamente assumido e conhecido do próprio Germano Almeida, que, deste modo demolidor, se enreda numa auto-ironia muito próxima do tom cáustico e satirizante que tanto flagelou e, depois, em certa medida redimiu “o meu poeta”, mesmo se nas condições atrozes de um “poeta-presidente barbaramente assassinado (digo, despedaçado) por um tubarão-martelo”, quiçá instruído e telecomandado por potência inimiga, interna ou externa.
Acredito que a asserção de Baltazar Lopes da Silva acima referida aplica-se com plena justeza também à obra escrita de Germano Almeida.
Com efeito, e sendo embora esmagadoramente literária, a obra de Germano Almeida espraia-se por campos e domínios vários, sendo poucas as problemáticas fundamentais atinentes à sociedade caboverdiana pós-colonial que nela não são abordadas, nela encontrando respaldo, projecção, adequação e lugar de referência. Mas a obra literária de Germano Almeida consagra-se ademais como assaz abrangente, pois que a sua temática é reconhecidamente pan-arquipelágica e trans-diaspórica. Tendo embora o seu foco principal na ilha da Boavista, a ilha fantástica da natalidade do escritor, e a omnívora cidade do Mindelo e os seus habitantes, mormente os das classes sociais pequeno-burguesas e burguesas (as classes médias de diferentes extractos sociais, como se tornou hábito dizer-se hoje), os romances e novelas de Germano Almeida disseminam-se também por várias outras ilhas, como Santiago (como nos casos dos romances "Os Dois Irmãos" e "A Morte do Ouvidor") e Santo Antão (como em "O Dia das Calças Roladas") e pelas nossas muitas diásporas, quais sejam Angola, Portugal e Estados Unidos da América.
Sendo neo-claridosa, no sentido de cumprir o desiderato de Baltasar Lopes da Silva de comunhão literária total com a terra caboverdiana e a sua nação crioula, agora soberana e plenamente democrática, ela também o é na permanente indagação da identidade caboverdiana, mesmo se todavia despojada, ou, pelo menos, simplesmente indagadora dos muitos tabus afro-fóbicos e de algumas reservas de teor luso-crioulistas induzidos no passado pelo sistema colonial e pelas suas políticas de assimilação cultural.
É a indagação e a interrogativa perscrutação da identidade caboverdiana que leva Germano Almeida a fazer muitas e produtivas incursões à História de Cabo Verde, quer no emblemático Viagem pela História das Ilhas, quer no romance A Morte do Ouvidor, quer ainda nas variegadas vozes dos narradores e nas múltiplas e contraditórias falas das diversas personagens dos seus muitos livros.
É nessas incursões históricas, nessas narrações, nessas falas, a mais das vezes pejadas e investidas de humor e ironia e revestidas de muita sátira do verbo sempre livre, intrinsecamente pluralista e bem-humorado do escritor, que se vaza, se entretece e se mostra em toda a sua plenitude sociocultural e político-ideológica e no seu cativante esplendor literário o olhar policlínico de Germano Almeida.
Creio que, na situação específica de Cabo Verde, com um campo académico ainda em titubeante formação nos fins do século passado, e, depois, em especial a partir dos inícios deste século, em consolidação, ainda que, felizmente, de forma acelerada e pujante, a asserção de Engels aplica-se inteiramente à obra de Germano Almeida. E porque nos situamos no período pós-colonial e nos encontramos nesta casa histórica, que é a antiga Casa de Cabo Verde, depois transmutada em Associação de Cabo-Verdianos e Guineenses e, finalmente, culminando na actual denominação Associação Caboverdeana de Lisboa, basta lerem, por exemplo, Dona Pura e os Camaradas de Abril, O Meu Poeta e A Morte do Meu Poeta para se inteirarem da ambiência existente em Lisboa no imediato pré e pós-25 de Abril e da atmosfera circundante da sociedade caboverdiana do regime de partido único nas vésperas da abertura democrática de 1990 e da correlativa e, para alguns, (in)esperada alternância política de 1991 e da ambiência político-social emergente dessa mudança, mesmo se vista pelos imaginativos e implacáveis olhos de um ficcionista, diga-se, aliás, de grande gabarito e comprovado espírito crítico.
Deste modo muito particular, e para nosso grande agrado, o caboverdiano bilingue primacialmente lusófono, o “bom gigante” (ou será antes o “gigante bon ki bali”?) fica também definitivamente reconhecido como um Gigante das literaturas (em especial das literaturas africanas) de língua portuguesa e, assim, como um ficcionista e romancista lusógrafo de grande e visível peso em dimensão quantitativa e qualitativa da obra já dada à estampa, e um escritor “contador de estóreas” de grande envergadura, como supõe, pressupõe e exige o título de Prémio Camões 2018.
Lisboa, 16 de Junho de 2018, revisto e aumentado entre 17 e 23 de Junho de 2018
Nota do autor: constitui o presente texto a versão escrita da intervenção feita por ocasião da realização pela Associação Caboverdeana de Lisboa do jantar literário de homenagem a Germano Almeida, Prémio Camões 2018, na presença do galardoado e de seus familiares, do Embaixador e da Embaixatriz de Cabo Verde em Portugal, do Presidente da Direcção da Associação Caboverdeana, dos membros dos órgãos sociais da mesma Associação e dos numerosos participantes da mesma sessão gastronómica e cultural
*Poeta, ensaísta, jurista e comentador radiofónico, Vice-Presidente da Direcção e responsável do departamento da cultura da Associação Caboverdeana (de Lisboa)
* Título da responsabilidade da Redacção
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