É consabido que o fenómeno criminal é relativamente complexo, não só quanto aos fatores que lhe estão na origem, mas igualmente nos impactos nefastos que agrega à própria dinâmica de uma comunidade, de uma sociedade e de um país. Por conta disso, e apesar de fazer parte da “agenda comum” dos cidadãos em geral, poucos são os que, verdadeiramente, têm uma exata compreensão deste fenómeno. E por isso, é nossa pretensão modesta, através de reflexões simples, porém embasadas em análises criteriosas, contribuir para a “democratização” do conhecimento e da compreensão deste fenómeno.
Recorrendo a um exercício comparativo, vamos estimular a razão, por forma a simplificar o complexo e, assim, “desmascarar” a ineficácia das sucessivas políticas criminais, afinal, erróneas, porque propostas, infelizmente, com base em emoções e crenças ideológicas desacertadas.
Quando uma floresta está tomada, irremediavelmente, por chamas não restarão outras alternativas senão acionar todos os mecanismos de combate à disposição, para a reposição da “normalidade”. Outrossim, mesmo que outras alternativas houvesse, dado a emergência da situação, não seria possível fazê-las valer em tempo útil. E, claro, para se evitar danos maiores, a atitude sensata e aconselhável será sempre, com os meios de combate disponíveis, reagir para se extinguir o fogo.
Porém, os tempos atuais permitem-nos, a partir dos conhecimentos já adquiridos, à força das várias experiências com situações de fogo florestal, por exemplo, atuar na prevenção, para se anular os fatores, que, confluindo, amiúde, dão origem a grandes incêndios, por vezes incontroláveis. Contudo, é evidente, natural e compreensível que não se pode, devido a circunstâncias aleatórias e que fogem ao controlo humano, impedir, só com as ações preventivas, diga-se, todos os incêndios do tipo. Mas a verdade incontestável é que, com esta forma de agir - na prevenção - reduz-se grandemente esses incêndios e, por conseguinte, os danos que lhes estão associados.
Não obstante esta preocupação e ações preventivas, é óbvio, outros tipos de incêndios acontecerão, porquanto resultados da própria dinâmica do dia-a-dia e da interação do homem com o seu ambiente e com as “coisas”. Neste caso, em dimensão e com níveis de impacto e de preocupação menores e, portanto, suscetíveis de serem resolvidos com os aparatos de combate instalados e preparados para responderem, em tempo útil e eficazmente, nestas situações que, sendo temporalmente imprevisíveis, são, no entanto, sempre expectáveis, pelas dinâmicas já aludidas.
Fazendo um paralelismo com os fenómenos da violência e da criminalidade, a lógica de compreensão e de atuação não difere muito.
Há quem, no entanto, acredita convictamente que persistindo no erro, lá mais à frente, terá, finalmente, um resulto positivo – o resultado desejado, entenda-se. São esses indivíduos que Albert Einstein apelida de “insanos”. Esses que acreditam piamente que fazendo repetidamente as mesmas coisas, tendo as mesmas atitudes, conseguem resultados diferentes à que têm tido até então. E é preciso muita atenção!
O crime, diga-se, desde logo, é uma realidade inerente à própria condição social da humanidade, impondo a todos a sua inconfortável presença. Entretanto, ao longo dos tempos, como escreveu Cândido da Agra, Professor Catedrático de Criminologia, o crime tem sofrido múltiplas transformações e, atualmente apresenta características de um verdadeiro e preocupante fenómeno social. Pelo que, e porque, também, está cada vez mais imbricado na trama da nossa vida quotidiana, o seu enfrentamento não se compadece com meios e medidas simples, expeditos, emergenciais, estribados, inadmissivelmente, em emoções e convicções, estritamente, ideológicas.
Afinal, “fazemos parte, ou não, de uma sociedade de conhecimento”? Se sim, de fato o é, não se pode aceitar que não estejamos a fazer o devido uso desta nobre “arma” (o conhecimento), como enfatiza Agra, para se fazer face ao fenómeno criminal, que se agudiza dia-a-dia, nas nossas principais urbes, e à insegurança, que lhe está atrelada.
“Outros tempos, outros costumes”. Ou seja, a “atitude-bombeiro” de se contrapor a este fenómeno não se coaduna e nem é admissível pelas razões supra. Pois, e felizmente, a ciência tem-nos permitido estudá-lo, para se lhe conhecer os fatores na origem e atuar, atempada e preferencialmente, na prevenção. A prevenção que constitui, aliás, desde o início do século XIX, um dos princípios “sagrados” e orientadores das autoridades no enfrentamento ao crime e a desordem – e a violência por arrastamento.
Por estas bandas, e não se pode aceitar outra conclusão, já são sobejamente conhecidas as causas e entendido os fatores que estão na base da violência e da criminalidade violenta, mormente as urbanas, que grassam nas nossas ilhas. Aliás, são as “nossas” autoridades a sublinhar e a vangloriar deste fato. Então, não sendo uma fatalidade a realidade criminal que se vive por cá, por que, ainda, não foram desenvolvidas medidas corretivas e acertadas, para o debelar e, assim, pôr cobro a onda de insegurança sentida e experienciada pelos caboverdianos? Infelizmente, e para o nosso desespero (como tenho dito), as “soluções”, até então encontradas, não surtiram os efeitos desejados. Porque, como já se disse, não se combate um fenómeno tão complexo como meios e medidas simples, expeditos, emergenciais e, essencialmente, repressivas.
Mais do que discursos de ocasião ou de medida interventivas, que já se provaram insanas (entendida a partir do diálogo com o senhor Einstein), precisa-se de uma política criminal e de segurança pública que sejam assertivas e consistentes, como já sublinharam alguns especialistas nacionais. E que não são tidos e nem achados…
Políticas assentes em dados objetivos, cuja garantia de medir com rigor a dimensão, as tendências e, porque não, o significado desta criminalidade não seja posta em causa. Por conseguinte, não políticas estribadas apenas em dados estatísticos da Polícia Nacional (PN), pois que estes, reconhecidamente limitadas, não nos garantem respostas eficazes e sustentáveis.
É preciso recorrer-se a outras grandes fontes de dados, designadamente aos inquéritos de delinquência auto-revelada e de vitimização (que não se faz ou nunca se fez por cá). Do cruzamento desses dados resultará, por um lado, uma análise mais sólida do fenómeno e permitirá, por outro lado, a identificação e compreensão das variações de curto prazo, cujo reflexo se antecipará nos segmentos temporais mais longos, conforme realçam André Kuhn e Cândido da Agra, dois renomados especialistas na matéria.
Entretanto, não é isso, nem de perto nem longe, que acontece entre nós. Daí, infere-se naturalmente, a inexistência “material” de uma política criminal e de segurança. Também, por conta da ausência de um método, de sistematicidade e de uma “sede” interpretativa que lhe serviria de um consistente fundamento, traduzido em eficácia das medidas e nas ações de respostas ao crime e à insegurança.
E este quadro de insuficiente e/ou ineficaz política criminal e de segurança pública é o resultado direto, indubitavelmente, da não-valorização e do não-aproveitamento “daqueles” que produzem o conhecimento na ciência do crime da segurança pública, por parte dos (nossos) decisores. Estes que, ao invés de se preocuparem convenientemente em se esclarecerem sobre as relações objetivas que governam estes fenómenos e, deste modo, agir em consonância, estão mais preocupados em debates políticos (também necessários, na sua exata medida), as mais das vezes, com base em emoções, ideologias e interesses outros, que não têm qualquer validade científica. Por isso, inférteis nos resultados.
Nos países onde existe uma sincera e responsável preocupação com a segurança e bem-estar dos seus cidadãos, os “Senhores” que se debruçam sobre estes dois fenómenos, não só estão nos departamentos de criminologia das respetivas universidades, como são integrados nos ministérios da Justiça e da Administração Interna. E, mais do que auxiliar no exercício de descrever, de explicar e de interpretar os fenómenos criminais e da segurança, são co-responsáveis na elaboração e monitorização das políticas que visam controlá-los e/ou combatê-los.
Estes países, como a França e o Reino Unido, cultivam verdadeiramente a ciência do crime e da segurança e, por isso, “sabem”, com alguma exactidão, responder ao volume e as tendências da criminalidade e da violência nos respetivos territórios. Tudo porque articulam o conhecimento científico e as políticas de ação nesta matéria.
E o que salta da análise da nossa realidade atual é que, primeiro, as ações empreendidas para se contrapor ao aumento da violência e da criminalidade urbana, mormente na capital do país, embasam em dados que, pese embora objetivos, são fragmentados e, fica evidente, não obedecem os métodos científicos de análise. Quando assim é, não é possível uma leitura aproximada da real evolução do fenómeno da violência e da criminalidade. Até porque, as análises feitas, até então, têm recaído, invariavelmente, sobre segmentos temporais curtos (6 meses, e 1 ano).
Segundo, as políticas positivadas nos sucessivos programas de governação, as estratégias operacionais e as técnicas de ação, através das quais de pretende controlar o fenómeno criminal e da insegurança, não são resultados de uma permanente observação científica. Pelo que as intervenções preventivas são (quase) inexistentes. O que se vê, de forma notória, são intervenções com base em emoções e pressões políticas, sociais ou morais, permeio a um desconcerto entre os vários atores, com responsabilidades na matéria, e uma confusão de papel somado a uma busca, desmedida, incompreensível e individualizada, por protagonismo… com os resultados de todos, sobejamente, conhecidos.
É hora de mudar! Vamos, ainda, a tempo! Como dizia, poeticamente, Fernando Pessoa, “é preciso saber quando uma etapa chega ao final”.
De fato, às vezes, o sensato é “fechar a porta, mudar o disco (e de rostos), limpar a casa, sacudir a poeira”...
Em suma, é preciso “desapegar-se… renovar… libertar-se de tudo quanto não tem sido feito bem”. É preciso dar aos caboverdianos uma “nova oportunidade de viverem com a paz social merecida e em segurança.
E é possível… com novos atores… e novas abordagens.
José Luís Vaz
Licenciado em Criminologia e Segurança Pública
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