Crítica e “ser patriota” neste tempo
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Crítica e “ser patriota” neste tempo

Existe um debate nas ciências sociais sobre se a verdade e a qualidade das instituições de uma dada sociedade se conhecem melhor em situações de normalidade, de funcionamento corrente, ou em situações excepcionais, de crise

1. Esta frase é da autoria do investigador e pensador Boaventura de Sousa Santos e foi retirada do seu livro, intitulado, “A cruel pedagogia do vírus” (1), lançado agora, neste mês de abril. Um dos valores desta frase está no facto de chamar a nossa atenção sobre a melhor “hora” para se conhecer – e nós consideramos também, para se avaliar, a “verdade” e a “qualidade das Instituições” de uma determinada sociedade. Seguindo o raciocínio de Sousa Santos, há duas hipóteses que se levantam quanto à “melhor hora” para se fazer essa avaliação: em tempos de normalidade ou em situações de crise?

2. Enquanto o debate nas ciências sociais prossegue, o facto é que há sociedades onde o conhecimento e a avaliação estão a ser efetuados agora, em plena situação de crise. É o caso da Escócia onde a ministra da saúde foi fortemente criticada pelo facto de ter desrespeitado duas vezes a medida de confinamento social e, em plena pandemia, se ter deslocado até à sua casa de campo para arejar a cabeça. Face ao vertiginoso aumento de tom das críticas, ela pediu a sua demissão. Nos Estados Unidos a deputada democrática, Ayanna Presley, critica o Governo pela falta de testes com base na raça dos indivíduos! (2) No Brasil, o governador do Estado de São Paulo criticou o Presidente da República pela forma como tem liderado o processo de combate ao corona vírus, tendo afirmado que estariam a lutar contra dois vírus, o coronavírus e o Bolsonarovírus.(3) Em Portugal, o médico Jerónimo Fernandes, é bastante crítico quando afirma o “falhanço deste governo durante o surto epidémico de Covid-19(4); Eduardo Rodrigues, Presidente da Câmara Municipal de Gaia, criticou de “andar a passo de caracol” a forma como estão a ser realizados os testes (5) pelo Governo no seu município; e o líder da oposição, Rui Rio, critica a medida do Governo em atribuir um aumento salarial para os funcionários públicos em plena pandemia!(6) Ele que já tinha deixado bem claro: nunca iria “passar cheque em branco(7) ao governo, ou seja, estaria ali para pedir contas!

3. Escócia, Estados Unidos, Brasil e Portugal, citando apenas estes quatro casos. A verdade é que, por esse mundo fora, há uma convivência normal e democrática com críticas formuladas aos governos pelas estratégias adotadas no enfrentamento do COVID! Já em Cabo Verde, seguindo uma linha contrária, assiste-se a tentativas de silenciamento de todas as vozes e de eliminação de todas as formas de crítica. Essa estratégia de tentativa de silenciamento assume cinco formatos de filosofia popular: (i) Apelo “pa dexa Governo trabadja”; (ii) Criação de uma espécie do “manual das horas” que serve só para sustentar a ideia de que “agora não é hora de fazer críticas”; (iii) Invocação da ideia ridícula de “politiquice”, utilizada quando não se tem argumentos nenhuns; (iv) Assumpção do “não bater palmas ao Governo” como indicador de falta de patriotismo. Quando, na verdade, anti-patriota é aquele que vê falhas na condução do seu país e remete-se ao silêncio conivente, ao deixar andar; e, por fim, (v) a invocação do conceito altamente subjetivo de “sentido de Estado” na formulação de críticas. São estas as contribuições para o conhecimento da verdade e da qualidade das instituições que a sociedade caboverdeana traz neste momento? Mais mitos?! São estes os princípios com que queremos construir o Cabo Verde pós-Covid 19?

4. Mas, antes do futuro, é preciso que se tenha consciência de que o direito à crítica se enquadra dentro da liberdade de expressão, um dos pilares fundamentais da democracia. Bolsonaro, no Brasil, ao participar de uma manifestação para fechar a Assembleia da República e implantar a ditadura é a prova de como a barbárie está permanentemente à espreita – é a democracia que está em risco! Por estas ilhas, não tem faltado quem já esteja a defender limites à liberdade de expressão, fazendo-a depender de interpretações subjetivas e dúbias, condenando publicamente jornalistas “pelo tom de voz” com que cometeram o sacrilégio de fazer perguntas a um ministro e dirigente nacional!

5. Aqueles que ordenam que se adotem “tons conciliadores” à semelhança dos utilizados pela figura histórica de Pedro Pires, só lhes peço que nunca mais tentem insinuar qual é a parte deste meu herói nacional que eu devo guardar na memória que é minha! Não se atrevam! Eu guardo de Pedro Pires o gesto decisivo de abandonar o conforto e ir juntar-se a mais camaradas, entre os quais Amílcar Cabral, porque ele tinha de ir fazer parte da construção do futuro, de armas na mão e pensamento livre, revolucionário e libertador na cabeça!

6. Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia da República de Portugal, interpretou bem os sinais deste tempo e os perigos que as defesas de ideias populistas e superficiais representam para a democracia e para o futuro das sociedades. Face à desistência do Partido Popular em participar na cerimónia de comemoração do 25 de Abril de 1974, marca indelével da construção da democracia em Portugal, face ainda a um abaixo assinado com um dito mais de 15 mil assinaturas, Ferro Rodrigues tem sido cristalino: esta crise não pode parir “qualquer alternativa antidemocrática”! (8)

7. Entre nós, cabe agora ao Presidente da República de Cabo Verde a decisão se quer, ou não, fazer algo de útil para esta nossa frágil democracia. Se, de facto, quer deixar um legado memorável, esta é a hora de, no seu próximo discurso, deixar de eufemismos com essa frase feita de que a democracia não foi suspensa e dirigir-se à Nação, em “sampadjudo” e “badiu”, à semelhança do uso que fez há dias num spot televisivo, e diga aos caboverdeanos que a “política não foi, nem pode ser suspensa”; a “politiquice” não existe e a liberdade de expressão e de crítica são intocáveis. Esta seria a maior influência da sua magistratura!

(1) Sousa Santos, Boaventura (2020), A cruel pedagogia do vírus, Coimbra: Edições Almedina

https://drive.google.com/file/d/12tD1AYu1hg243WkSqxTqOftZfh8q_YKq/view?fbclid=IwAR3lGwAFBjskyWbUjTcacFzui1zRdR8ghC7vRn9I-FdjBKQMZ1UKI-Dpofc

(2) Democratic lawmakers call for racial data in virus testing, 1 de abril de 2020, NBC News 

https://www.nbcnews.com/news/nbcblk/democratic-lawmakers-call-racial-data-virus-testing-n1172931?fbclid=IwAR2pwVptHVP5KUI9Ee1hZpqWoRaRNTh2vuXXxhyy0VBfw_6rXL6gF4NEIug

(3) Estamos lutando contra o coronavírus e o 'Bolsonarovírus', diz Doria, 16 de abril de 2020, UOL https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/04/16/estamos-lutando-contra-o-coronavirus-e-o-bolsonarovirus-diz-doria.htm

(4) O falhanço deste governo durante o surto epidémico de Covid-19, 8 de abril de 2020, Observador https://observador.pt/opiniao/o-falhanco-deste-governo-durante-o-surto-epidemico-de-covid-19/?fbclid=IwAR3SXxVPcJ41B7qBipSce1X8TnBfeHw8hAW_mFpFr6o4BfBle9VWgjd_iU0

(5) Eduardo Vítor Rodrigues acusa Administração Regional de Saúde de "andar a passo de caracol", 19 de abril de 2020, O Gaense

https://web.facebook.com/ogaiense/posts/3158560544163322?_rdc=1&_rdr

(6) Rui Rio critica aumentos na função pública: “Não podiam acontecer” , 20 de abril de 2020, Jornal Económico

https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/rui-rio-critica-aumentos-na-funcao-publica-nao-podiam-acontecer-578222

(7) Rui Rio: "O governo que vier será de salvação nacional", 29 de março de 2020, Diário de Notícias https://www.dn.pt/poder/rui-rio-o-governo-que-vier-sera-de-salvacao-nacional-12003089.html

(8) Ferro Rodrigues ao PÚBLICO: “Celebrar o 25 de Abril é dizer que não sairá desta crise qualquer alternativa antidemocrática”, 18 de abril de 2020, Público https://www.publico.pt/2020/04/18/politica/noticia/ferro-rodrigues-publico-celebrar-25-abril-dizer-nao-saira-crise-qualquer-alternativa-antidemocratica-1912892

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