Amarelo, verde, laranja, azul, vermelho, rosa... figuras geométricas e abstratas, grandes personalidades da música, rostos conhecidos de cada bairro. Santa Maria, ilha do Sal, foi invadida por cores vibrantes e muita beleza. Arte d’Zona junta moradores, voluntários e artistas para renovar as fachadas das casas e muros das ruas da cidade mais turística de Cabo Verde. Mas, o projeto vai muito além do embelezamento: de um lado pretende resgatar a história e o verdadeiro sentido da vida em comunidade, e por outro quer integrar as crianças em atividades recreativas e desenvolver microeconomias para os moradores.
Há nove meses, quando a ilha do Sal enfrentava pela primeira vez a paralisação brusca do Turismo, quando o desemprego e a desesperança devolviam para as suas ilhas e países centenas de trabalhadores dos hotéis, quando nas ruas de Santa Maria, antes movimentadas por turistas, apenas se escutava o silêncio, a italiana Ariana Casaburo desenhava em sua mente uma cidade mais colorida, mais viva. A designer queria devolver positividade à capital do turismo.
Juntamente com alguns amigos nacionais e estrangeiros, Ariana Casaburo lançou o projeto Arte d’Zona.
Container, o começo de tudo
Ariana Casaburo reside em Santa Maria há quatro anos. É designer de moda, mas trabalha como instrutora de kitesurf. Durante a pandemia a italiana, que já não tinha alunos, dividia o seu tempo entre idas furtivas à praia e passeios pelas ruas solitárias de Santa Maria. Foi então que reparou que a cidade estava “triste”. E não era uma tristeza por causa do fraco movimento. Faltava-lhe limpeza, reabilitação e cor.
“As ruas vazias revelam muito de si. Depois de muitos anos vivendo aqui, percebi que eram cinzentas, sem cor, sem vida. Percebi que as casas estavam degradadas, com fachadas desbotadas. Pareciam abandonadas, mas sabia que ali viviam muitas pessoas, muitas crianças principalmente”, lembra.
A italiana pensou então em levar algo que alegrasse estas ruas. Um contentor na travessa Patrice Lumumba, conhecida como Rua d’Caca, era o ponta pé de saída para o projeto. E conquistou de imediato um aliado, um morador bastante conhecido da rua, o ator Victor Silva. O contentor, sujo e enferrujado, ganhou a cor azul oceano e o desenho de uma água viva... e a rua uma obra de arte.
A reação dos moradores foi imediata. Em uma semana mobilizaram-se e, junto com a Ariana, fizeram uma campanha de limpeza, pintaram as fachadas, criaram espaços verde, construíram bancos, reciclaram pneus e objetos que recolherem do próprio lixo, e fizeram da Rua d’ Caca um jardim colorido e alegre de se estar.
“Foi incrível o que aconteceu na Rua d’Caca. Todos os moradores, inclusive as crianças uniram-se para melhorar a imagem da rua. Acordavam às 6h00 para limpar, pintar e plantar. Fizeram um trabalho lindo em apenas uma semana. Eles deram um grande exemplo de cidadania, mostraram que com a união é possível resgatar a dignidade e contribuir para o desenvolvimento de uma comunidade”, frisa Ariana.
Desde então a tarefa de cuidar da pequena travessa deixou de ser da responsabilidade exclusiva da Câmara Municipal do Sal. A cada semana um morador se responsabiliza para regar e tratar dos jardins e outro deve recolher o lixo numa lixeira construída por eles e onde as crianças costumam deitar cada pedaço de papel ou plástico que encontrarem no chão.
“A nossa rua passou a ser a mais verde e uma das mais bonitas e atrativas de Santa Maria. Antes ninguém circulava por aqui. Agora as pessoas fazem questão de passar pela Rua d’Caca, aproveitam para tirar fotos, descansar nos nossos bancos feitos com paletes, conversar com os mais idosos e ver as crianças a brincarem”, orgulha um dos mentores do projeto, Victor Silva.
Hoje a Rua d’ Caca, após todas estas intervenções, já recebeu iluminação pública, uma antiga reclamação dos moradores.
Cores e boas vibrações
Da Rua d’Caca para a Travessa Fundo d’Mar, depois para a Rua d’Traz e agora a Rua das Salinas. Santa Maria tomou-se de cor.
Hoje, várias artérias estão enfileiradas por belíssimas residências, lindamente coloridas e por jardins verdejantes e floridos. Por outro lado, os muros servem de telas para obras de arte modernas e tradicionais.
Perfeitamente harmônicas com o clima de praia e tropical da região, estas diferentes tonalidades dão um charme irresistível e apresenta um cenário urbano colorido e vibrante, graças às fachadas que parecem ter saído direto de ilustrações de livros infantis.
E como cada cor tem o seu significado, Arte d’Zona leva boas vibrações a cada rua de Santa Maria. Laranja é alegria, vermelho é paixão, preto é força, amarelo é otimismo, lilás é sabedoria, branco é paz...
Para cada rua um tipo de intervenção. Na travessa Fundo d’Mar, onde residem muitos pescadores e peixeiras, a aposta foi em tons azuis e em pinturas que remetem ao mar, à vida marinha e à pesca. Mas também levaram brincadeiras para as ruas, através de pinturas no chão, para que as crianças possam ocupar os tempos livres.
“Aqui nas salinas, que é composta por duas pequenas ruas, apostamos de um lado no moderno e contemporâneo e de outro na recuperação da história das salinas e no tradicional. Tudo isso com muita cor”, descreve.
O próximo bairro a ser contemplado é o de São Paulo, onde Ariana Casaburo pretende deixar ainda mais cor e beleza.
Elevar a autoestima dos moradores e o espírito de comunhão
A iniciativa, entretanto, não se restringe a levar cores para Santa Maria. O movimento Arte d’Zona quer reforçar a mensagem de positividade. O combate à degradação de áreas promove alegria, descontração e, o mais importante, promove a cidadania.
Para Ariana, a alegria e o bem-estar vêm de coisas muito simples. Principalmente quando nascem de boas intenções e grandes atitudes. É o que está acontecendo em Santa Maria. “Mudar a pintura de uma casa pode parecer algo corriqueiro. Mas, dependendo da proporção da ideia, além de deixar as paredes bonitas, acaba tendo um alcance maior, que chega ao interior das pessoas”, sublinha.
O projeto une moradores: “é incrível como eles têm se unido. Todos contribuem com alguma coisa. Aqueles que não pintam oferecem alimentos ou fazem comida. Todos querem o bem comum. Estamos juntos todos os dias a trabalhar desde as 10h00 às 19h00. Nós comemos juntos, conversamos, brincamos e partilhamos”.
Por outro lado, estimula o voluntariado e ações de solidariedade. As empresas têm doado tintas e todo o material necessário para o trabalho. A execução da pintura depende do engajamento da própria população de Santa Maria, que tem mobilizado numa grande onda de voluntariado.
“Temos contado com o apoio de pessoas que vêm de outras zonas para dar mão à empreitada. Além disso, as próprias casas comercias e pessoas individuais nos têm ajudado com materiais de construção, tintas e até alimentos. Isso sem contar com a grande parceria da Câmara Municipal do Sal”, diz Ariana.
E, em uma grande onda de pintura e conservação das ruas, todos se unem criando um ciclo sustentável que resulta no aumento da autoestima e na qualidade de vida das comunidades.
Uma janela aberta para as crianças e moradores
Arte d’Zona tem um espectro amplo. Engloba aspetos culturais, sociais, educacionais e económicos.
O projeto está dividido em três partes: a pintura das fachadas e preservação e recuperação do património arquitetónico, a integração infantil em atividades artísticas e a criação de pequenas economias para os moradores.
“Ao reabilitar as ruas, dando mais vida e beleza, é possível levar as ações para as ruas”, palavras de Ariana, para quem fazem muita falta as atividades recreativas e educacionais para as crianças. “Percebemos que em cada casa existem meninos e meninas sem muito o que fazer, sem acesso às atividades que os ajudam a desenvolver-se”, lamenta.
O que se pretende é envolver artistas de diferentes áreas como a música, a dança, a pintura, o desenho, a fotografia, o artesanato, entre outras. Ariana quer levar arte às comunidades através de aulas e pequenas demonstrações, envolvendo os meninos diretamente nessas atividades.
“A arte é encantadora. Ela suaviza as dores, as preocupações e angústias e proporciona uma visão de um futuro melhor. É isso que queremos levar às crianças. Queremos que elas tenham esperança. Também procuramos apoios através de doações de materiais escolares, brinquedos e vestuários”, diz.
Para Ariana Casaburo, a criança é a parte fundamental deste trabalho: “Para mim não é só desenvolver um projeto de desenho ou de pintura. Elas fazem parte de tudo, de todo o processo e acompanham todo o trabalho de embelezamento e de troca. E a zona passam a ser o seu orgulho. Eles estão a aprender a importância de união de ajuda e apoio mútuo”.
Arte d’Zona pretende também resgatar velhos costumes: “os idosos têm participado muito no projeto porque há muitos anos não viam mudanças nas suas ruas. Queremos recuperar o antigo hábito de se sentar à porta de casa para ouvir histórias contadas pelos mais velhos”.
Criar oportunidades de negócio
No entender de seus promotores, Arte d’Zona pode servir de gás aos moradores que precisam dar uma nova direção às suas vidas.
“Estou dedicando todo o meu tempo e toda a minha energia nisso. Eu sou o fulcro, e esta minha motivação, acaba por motivar mais pessoas. Eu tento fazer tudo, desde a limpeza, a massa de cimento, e tento mostrar às crianças e aos moradores que podem aprender a fazer muitas coisas e podem fazer tudo e que podem ser o que quiserem”, sublinha.
O plano é, futuramente, buscar parcerias junto das instituições locais e nacionais e, quem sabe, junto das organizações internacionais para apoio na criação de pequenas atividades geradores de rendimento.
“Estas ruas, passando a ser mais atrativa, vão conquistar visitantes. Os moradores terão oportunidades de criar pequenos negócios e tirar proveito de tudo isso que está a ser feito”, almeja.
Fazer de Santa Maria um cartão postal
Além de aumentar a autoestima dos moradores o projeto é um estimulante ao turismo. A mescla de cores por várias artérias da cidade ajuda a colocar Santa Maria na rota da arte urbana e cultural.
O emaranhado de casas coloridas pode ser atrativo para turistas, fazendo com que saiam dos hotéis e façam um turismo mais voltado para a comunidade. “Passeando pelas ruas de Santa Maria, os turistas terão oportunidade de observar mais de perto a rotina dos moradores, as crianças a brincar, etc. É uma possibilidade de ter um contato mais aprofundado com as nossas vivências” acredita Victor Silva.
Para o ator e um dos mentores do projeto, as “novas” ruas coloridas impulsionam o turismo comunitário e cultural: “cada uma destas ruas guarda a sua história, as vivencias de seus habitantes. Passear por cada uma delas, aproveitando para fazer fotos e falar com os moradores podem ser uma grande oportunidades de aprender muito mais sobre nós, sobre os nossos hábitos e sobre a nossa cultura”.
Arte d’zona” além fronteira
Arte d’Zona despertou o senso de cuidados nas ruas por onde passa e busca dar o exemplo para outras vizinhanças também cuidarem de seus espaços. Daí a ambição de levar o projeto a outras paragens.
“Não queremos ficar apenas nas ruas de Santa Maria. Queremos expandir o projeto para toda a ilha do Sal, quem sabe chegar a outras cidades e aldeias do país. Este é um projeto de longo prazo”, diz Ariana.
Mas para isso, querem contar com ajudas tanto nacionais como estrangeiras: “Vamos precisar de parcerias, principalmente das câmaras municipais. Já lançamos uma campanha através da plataforma Gofundeme e ainda queremos que nosso projeto tenha altos patrocínios de organizações como a Unesco, por exemplo”.
Arte d’Zona está a levar cor para a alma das pessoas, está a mudar o modo de viver em comunidade. O projeto consegue fazer com que os moradores acreditem mais na vida, sobretudo num momento em que o mundo é assolado pela pandemia do novo coronavírus.
“Arte d’ Zona é mais do que um projeto. É uma ambição, um sonho”, finaliza Ariana Casaburo.
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