Dissonância demagógica
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Dissonância demagógica

O maior perigo da demagogia, é que ela traz na bagagem a intolerância, o autoritarismo disfarçado de coragem e, por vezes, uma boa dose de messianismo de feira. Tudo embrulhado no selo da vontade popular. Aos que assistem a este teatro com indiferença, recordo: quando a demagogia se senta à mesa, a democracia é empurrada para o banco de trás. E quando dermos por isso, já não será uma questão de "quem nos representa", mas de "o que nos resta". O povo, esse, continuará a existir apenas como o cenário de fundo de uma tragédia anunciada. Cuidado com o que aí vem! Mô ki nu sta, nu ka podi fika.

Há quem acredite que o maior perigo da política é a corrupção, outros dizem que é o nepotismo. Mas poucos percebem que o mais insidioso dos venenos atende pelo nome de “Demagogia”.

Demagogia, para quem ainda não se deu ao trabalho de destrinçar a palavra, é a arte de manipular os sentimentos populares com discursos inflamados, promessas fáceis e soluções mágicas,  sem nunca explicar como se paga a factura. É fazer política com emoção e vaidade, em vez de razão e responsabilidade. É liderar com o ego e não com a ética.

Na Europa, a demagogia anda de saltos altos, disfarçada de patriotismo, e avança com bandeiras tremulando e slogans simples o suficiente para serem repetidos por qualquer indignado de ocasião. O crescimento de personagens como André Ventura em Portugal, ou os resultados recentes das votações europeias, não são um acidente de percurso, mas sintomas de uma epidemia. O eleitor cansa-se da verdade crua, rejeita a política honesta por ser complexa, e entrega-se ao conforto da ilusão, vendida em fascículos populistas.

E como sabemos, os ventos de fora nunca passam pelas ilhas sem deixar pô di terra. Por cá, o terreno está fértil. Não só porque os discursos inflamados começaram a brotar nos palanques, nas redes sociais e nos bastidores com sede de holofote, mas também porque o governo actual, com a sua letargia institucional e amor platónico por planos estratégicos que nunca descem à rua, tem deixado um enorme vazio de políticas públicas reais, consistentes e visíveis.

Fala-se muito de "resiliência", "sustentabilidade", "inovação", "diáspora", "juventude", "digitalização"... e no entanto, há bairros inteiros sem acesso digno à água, há crianças que vão para a escola de barriga vazia enquanto se gastam milhares em conferências com nomes em inglês.

Os relatórios são bonitos, mas os resultados práticos ou visíveis são inexistentes. E é nesse abismo entre a promessa e a prática que os demagogos se instalam sorridentes, indignados, e prontos para “salvar” o povo.

Começa sempre da mesma forma: alguém que se diz "povo", mesmo tendo passado metade da vida entre gabinetes, eventos e bastidores. Fala-se em "ruptura", em "novo tempo", em "libertação", mas ninguém especifica de quê, nem com quê, nem a troco de quê.

Palavras bonitas, frases-feitas com prazo de validade até às próximas eleições.

A demagogia é, por natureza, preguiçosa. Não gosta de programas estruturados, nem de orçamentos que envolvam contas. Gosta é de palanques, de palmas e de polémicas cuidadosamente fabricadas. E sobretudo, gosta de um povo exausto, porque cansaço político é terreno fértil para o discurso fácil.

Enquanto isso, os verdadeiros problemas: habitação, saúde, educação, e justiça, continuam a pedir soluções concretas, que não cabem em frases feitas e nem em vídeos de campanha de 30 segundos.

Mas quem se importa com a realidade quando a ficção é mais sedutora?

O maior perigo da demagogia, é que ela traz na bagagem a intolerância, o autoritarismo disfarçado de coragem e, por vezes, uma boa dose de messianismo de feira. Tudo embrulhado no selo da vontade popular.

Aos que assistem a este teatro com indiferença, recordo: quando a demagogia se senta à mesa, a democracia é empurrada para o banco de trás. E quando dermos por isso, já não será uma questão de "quem nos representa", mas de "o que nos resta".

O povo, esse, continuará a existir apenas como o cenário de fundo de uma tragédia anunciada.

Cuidado com o que aí vem! Mô ki nu sta, nu ka podi fika.

FORTE APLAUSO

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Comentários

  • jcf, 29 de Mai de 2025

    Any Delgado, que texto delicioso de se ler! Uma rajada lúcida no meio da pasmaceira habitual — daqueles que fazem cócegas no cérebro e azia no estômago dos demagogos de plantão. Concordo com cada vírgula cuspida com estilo. E já agora, falando em estilo... essa tua foto está mesmo on fire! Da próxima vez que fores escrever sobre tragédias políticas, faz o favor de usar biquíni — porque se vamos afundar nesta distopia populista, ao menos que o cenário seja digno!

    • jcf, 29 de Mai de 2025

      Agora, voltando ao texto: usaste a palavra exacta — "messianismo de feira" — que define metade do que anda a circular por aí com bandeira na mão e frases feitas nos dentes. Gente que fala de ruptura mas nunca cortou sequer um raciocínio pela raiz. Gente que grita "libertação!" enquanto amarra o povo à ilusão. E no fim, tudo se resume à velha fórmula: ruído em vez de conteúdo, emoção em vez de contas, like em vez de leitura.

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