Praia Leaks – IX. Um contrato para champanhe a dois
Ponto de Vista

Praia Leaks – IX. Um contrato para champanhe a dois

Tenho falado até aqui apenas de negócios obscuros envolvendo terrenos em torno da cidade da Praia, alguns quase roçando questões de soberania, dada a extensão dos mesmos e o facilitismo com que a Câmara Municipal da Praia os entrega a pessoas amigas, sem qualquer respeito pela lei, como se houvesse em Cabo Verde duas leis diferentes: uma para certas pessoas, outra para outras.

Neste capítulo, como em alguns outros, iremos ver a corrupção fundiária em marcha na sua vertente diretamente urbanística, com consequências que a olho nú todos comprovaremos: vamos analisar um dos negócios que estão por detrás da tristeza urbana chamada Cidadela.

Para isso, importam breves esclarecimentos de coisas evidentes, falando como se estivessemos em 2000, tendo em conta a legislação urbanística então vigente, que era uma lei de 1993 e seus decretos de regulamentação e o Estatuto dos Municípios:

Toda a pessoa que seja proprietária de terrenos em área urbanizável tem o chamado direito de urbanizar, que consiste em elaborar um plano urbanístico detalhado e apresentá-lo à Câmara Municipal para aprovação, com certos documentos como seja um projeto de regulamento. Depois de aprovado esse plano é submetido ao Governo para homologação do membro do Governo que seja tutela da área de ordenamento do território e então são publicados no Boletim Oficial a planta legal aprovada e o respetivo regulamento, já homologados.

Um plano urbanístico detalhado (PUD) é um documento gráfico onde se localizam os lotes a edificar, as ruas e diversos espaços públicos como as praças, pulmões verdes, campos de desporto, estabelecimentos hospitalares e escolares, estacionamentos, enfim, os chamados “terrenos dotacionais”, isto é, para espaços públicos.

O regulamento do PUD estabelece a altura dos edifícios, a tipologia (unifamiliar, multifamiliar, etc.) o uso (habitação, comércio e serviços, misto...) zonas industriais, a intensidade de ocupação, enfim, uma série de regras necessárias ao funcionamento, à beleza e conforto dum centro urbano, incluindo obviamente os espaços públicos e sua localização.

Esse regulamento é importante, pois o promotor da urbanização, como dono do terreno, muitas vezes só pensa no lucro pelo que, deixado a seu bel´prazer, vai construir só prédios de vários andares sobre o máximo de lotes possível.

A lei urbanística, de 1993, estabelecia que o promotor da urbanização cedia gratuitamente ao município todos os terrenos dotacionais constantes do PUD aprovado e homologado e mais 20% da edificabilidade dos lotes. Quanto aos custos de urbanização, o promotor suportava-os na proporção da área dos seus terrenos deduzida das áreas dotacionais.

Pois bem, vejamos agora uma proeza de Jacinto Santos em 2000:

O novo edil (Felisberto Vieira) saído das eleições de 20 de fevereiro de 2000, veria pouco depois, no Boletim Oficial, II Série, n.º 10, de 6 de março, que o Plano Urbanístico Detalhado (PUD) de Cidadela fora aprovado, bem como o seu Regulamento, pela Câmara Municipal da Praia (CMP) em sessões de 22 de dezembro de 1999 e 10 de janeiro de 2000.

Mas quem vê esse BO apercebe-se logo de coisas estranhas, a revelar a precipitação e pouca seriedade em que tudo foi feito, em sangria desatada:

Primeiro, o BO em causa limita-se a publicar um edital com o Regulamento do PUD, mas o título, a negrito, a que se submete esse edital nada tem a ver com o assunto. É: “Desenvolvimento da Tabela de despesas para 1992”. Lapso normal quando se trabalha à pressa e na contramão, num assunto tão importante como esse de criar uma urbanização que irá afetar a todos os munícipes!

Segundo, o que está publicado não é o PUD, isto é, a planta legal, mas só o regulamento dum PUD não publicado. O que é contra a lei e não faz sentido nenhum, pois quando o regulamento faz referência a certo lote ou quarteirão é na planta desenhada, ou PUD, que vão ser localizados.

A gravidade desta “falha” (que, tanto quanto me parece, nunca foi colmatada até que em 2016 o foi sorrateiramente a pretexto duma revisão do PUD, que na verdade nem existia leglmente), é tão simples como isto: Quando eu compro um apartamento frente a um praça com vistas para o mar poderei pagar o dobro do que pagaria para o mesmo espaço numa rua estreita. Daí o meu direito urbanístico a que a Câmara não construa um prédio de andares em vez da praça no local, pois poderei embargar. Se não se publica a planta legal, reina o arbítrio.

Terceiro: Quem publica o plano aprovado e seu regulamento é o Governo, na I.ª Série do BO, depois de o homologar, e não a Câmara Municipal, na II.ª Série.

A consequência dessa “falha” é poder-se afirmar que o PUD de Cidadela, que depois circulou pela Câmara Municipal entre os arquitectos, nunca teve aprovação legal, nunca existiu legalmente. Chamá-lo-ei doravante, aqui e em outros capítulos, “Plano Sovaco”, tendo em conta que Jacinto Santos, ou a sociedade promotora, tê-lo-ão levado debaixo do braço para entregar ao novo edil e aos funcionários camarários, arquitetos em especial.

A explicação da “falha” pode ser procurada no facto de que Jacinto Santos estava em guerra aberta com o Governo e teria dúvidas se este lhe aprovaria algo. Mas parece que é isso e algo mais profundo e problemático: um projeto de Jacinto de alterar o PUD aprovado pela Câmara, por ignorada razão.

Com efeito, a 4 de fevereiro de 2000 Jacinto Santos assinou com a entidade promotora da urbanização, a Sociedade de Desenvolvimento de Achada Palmarejo, Sarl. (representada no ato por Tamburini Raffaele e Maioli Mario), que tinha comprado o terreno em FS-NANÁ (o leitor já conhece esta abreviatura) um acordo a que as duas partes deram o nome pomposo de “contrato-programa”, pelo qual ficava estipulado o seguinte:

a) A CMP devolvia ao Promotor 32,6% dos terrenos dotacionais constantes do PUD e que, com a aprovação, teriam passado, por lei, para Câmara;

b) A CMP devolvia ao Promotor 15,5% da edificabilidade de 20% recebida, idem;

c) O promotor custeava toda a urbanização (e não apenas na percentagem da lei, acima referida).

Para além de ser ilegal pelo seu conteúdo, esse contrato-programa não encontrava qualquer base na lei, com esse ou outro conteúdo qualquer. A lei só o previa (ainda hoje assim é) em caso de intervenção de certas outras entidades interessadas (como empresas concessionárias de serviços públicos), para harmonizar os interesses, o que não era o caso.

É grave, gravíssima a ilegalidade de prescindir de 32,6% das áreas dotacionais constantes do PUD aprovado, quando a lei diz que tais áreas vão a 100% para o Município. Ofende a lei e prejudica a cidade e os munícipes: 32,6% de praças, campos de futebol e outros espaços públicos que a urbanização iria ter a menos em relação ao plano aprovado pela Câmara.

O mesmo se dirá da edificabilidade, de que 20% deviam ir para a CMP e só foram 4,5%, pois isso significa que o Município teria muito menos disponibilidade de terrenos para edificar e teria de comprar os de que necessitasse.

A alínea c) – a referência aos custos - parece um alibi para o edil simular uma justificação do seu ato ilegal: sabendo que a lei dizia que os proprietários participavam nos custos da urbanização na proporção da área dos respetivos prédios, deduzida da área dotacional, Jacinto Santos, sem apresentar cálculo nenhum, quis deixar subentendido que o Município saía a ganhar se o promotor suportasse todos os custos da urbanização.

O leitor não ingénuo nota logo que essa diligência ilegal de boa vontade, dum edil que dentro de 16 dias deixaria de o ser, pois não tinha concorrido à sua própria sucessão e agora iria fazer vida privada, haveria de ser melhor explicada, até porque é difícil ver um empreendedor a fazer um negócio para perder ou apenas incorrer em risco de ilegalidade, perante um edil que não vai continuar a sê-lo.

Note-se que o promotor iria infraestruturar em menos terrenos dotacionais. Sem pretender entrar em áreas de Matemática, em que não pesco nada e mesmo sabendo que o assunto não era de pura matemática, vem-me à mente uma sugestão simples, partindo da ideia de que 100% de 80 é igual a 80% de 100: com a redução em 32,6% das áreas dotacionais, suportar 100% dos respetivos custos até poderia ser menos dispendioso que suportar só uma percentagem das áreas dotacionais totais.

Mas a verdade é que tendo o promotor mais 15,5% em edificabilidade (lotes para vender) do que a lei autorizava e 32,6% dos terrenos dotacionais para lotear e vender, ganharia enormemente com tais ilegalidades; e depois, claro, faria repercutir tudo no preço dos lotes.

Um contrato a merecer um champanhe a dois!

A urbanização viria depois a ficar a cargo da Tecnicil, que comprou a sociedade promotora. Estaria isso planeado desde o início, como se ouve dizer? Não sei, nem interessa muito. A verdade, porém, é que sendo Tecnicil a empresa nacional de longe mais acarinhada, com uma enorme discriminção positiva em relação à IFH (ou o inverso, IFH discriminada negativamente, como veremos adiante), temos hoje uma urbanização chamada Cidadela que, a olhos até dum leigo em urbanismo, parece um dormitório aborrecido, onde era suposto verem-se plataformas sobranceiras atlanticando mornas e batucos para o mar oceano.

Mas não, nem uma coisa nem outra e antes pelo contrário! - tem-se um asfalto esburacado, caminhos de pedra meio solta e água canalizada nem por isso! Não há tubagem de esgoto (creio que não era exigência do Regulamento), mas ao menos há fossas séticas para a “vileza”.

Um contraste chocante: Tecnicil a conseguir tudo, do Estado e dos municípios, num estalar de dedos e a oferecer em troca isso que acima está referido em termos de construção – aliás como sinal de marca por todo o país - e a IFH a conseguir, só depois duma longa e desesperante espera de vários anos, como havemos de ver, a aprovação duma urbanização – a de Palmarejo Grande, coisa “de outro level” logo ali a seguir a Cidadela, realçando o abismo da diferença em termos de qualidade... e até de respeito pelo munícipe.

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