A Microgeração Distribuída (MD) a partir de fontes renováveis tem chamado atenção atualmente tendo em conta as políticas energéticas adotadas pela maioria dos países direcionadas à “limpeza das suas matrizes energéticas”. Medidas necessárias para o cumprimento dos objetivos de desenvolvimento (ODS) que constam na agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável da ONU (Acessível neste link). Em um total de 17 objetivos que compõem esta agenda destaco a ODS07 que trata especificamente das questões de energia limpa e sustentável e que tem como propósito (sic): “Assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todos e todas”.
A energia elétrica é, sem dúvida, um dos recursos indispensáveis nas sociedades modernas. Trata-se de uma das mais versáteis formas de energia. Ela é facilmente transformada em outras formas de uso final de energia em residências (iluminação, refrigeração e aquecimento, força motriz, etc) e indústrias em geral e assume um papel extremamente importante de transformação social e de desenvolvimento humano.
A energia elétrica é produzida a partir da transformação de diversas fontes primárias de energia. Algumas dessas fontes primárias são renováveis (hidrelétricas, solar, eólica etc) e outras não renováveis (termoelétrica a base de combustíveis fosseis, etc). Vale salientar que mesmo a energia produzida por fontes ditas renováveis (no sentido de não emitir GEE, aquecimento global e mudanças climáticas) têm algum tipo de impacto ambiental seja no momento da construção, citando aqui o exemplo das hidrelétricas de grande porte; seja no processo de fabricação ou de descarte de equipamentos (em final de vida útil), por exemplo.
Tradicionalmente, a energia elétrica tem sido produzida de forma centralizada em grandes usinas hidrelétricas - que é a maior parcela ou percentual de energia consumida no Brasil, por exemplo. Ou em centrais termoelétricas a diesel ou fuel de grande ou médio porte como é o caso de Cabo Verde, por exemplo. Uma vez produzida de forma centralizada essa energia é transmitida em linhas de transmissão até os centros de consumo, em diversos níveis de tensão, e distribuída aos consumidores finais. Com o aumento da demanda cada vez mais crescente nos grandes centros de consumo, essa forma de produção centralizada esbarra em implicações de carácter técnico-econômicas e/ou ambientais que devem ser ponderadas. Algumas delas pontuadas na sequência:
1. A escassez ou esgotamento das fontes primárias próximas aos grandes centros de consumo levam a necessidade de exploração de recursos energéticos distantes e/ou em locais com de elevado impacto ambiental. No Brasil, por exemplo, as reservas hídricas com potencial de geração de energia estão na região Amazônica, uma importante reserva ambiental que dispensa comentários em relação a sua importância à nível mundial. Explorar recursos longe de grandes centros consumidores envolve investimentos de grande porte de recursos financeiros para construção de novas centrais de produção e de grandes linhas de transmissão para o transporte de energia até os centros de consumo, com implicações no aumento nas perdas técnicas e de impactos ambientais importantes.
2. Na hipótese de haver aumento da oferta, as atuais infraestruturas de distribuição podem não ser suficientes para fazer chegar a energia produzida até os consumidores finais. Quer por questões de limites técnicos às quais foram projetadas, ou por questões de envelhecimento e obsolência, ou por falta de espaço físico para ampliação em grandes centros de consumo.
3. Um terceiro fator importante relaciona-se com o montante, o preço, a volatilidade e/ou intermitência das fontes primárias que devem ser consideradas nesse cenário para um planejamento de curto ou longo prazo.
Uma alternativa ao que chamamos aqui de forma tradicional de geração de energia centralizada é a geração descentralizada ou distribuída. Mas o que é exatamente isso?
De forma resumida a geração distribuída é um conceito que define a produção de energia de médio e pequeno porte, em termos de potência instalada, próxima ao consumidor final. No Brasil, por exemplo, a geração distribuída (GD) é dividida em duas categorias distintas: a microgeração distribuída que se caracteriza como uma central geradora com potência instalada até 75 kW e a minigeração distribuída com potência instala superior a 75 kW e menor ou igual e 5 MW.
Ao contrário da geração centralizada, este tipo de geração é feita no local de seu consumo (residências, condomínios, indústrias, bancos, etc), ou seja, dispensa infraestrutura de transporte (linhas de transmissão) o que resolve grande parte das implicações técnicas para atendimento de demanda de energia através de geração centralizada. A GD tem uma série de vantagens em relação à tradicional geração centralizada unidirecional:
1. Redução das chamadas perdas técnicas pela ausência de infraestrutura de transporte de energia.
2. O custo de implantação é menor tanto do ponto de vista financeiro como de impactos ambientais, pelo porte e pelo viés de opções por fontes renováveis.
3. Eventual alívio do carregamento máximo das infraestruturas de transporte existentes nos grandes centros evitando novos investimentos em reforços.
4. Versatilidade. Podem ser projetadas para consumo próprio sem conexão à rede elétrica (sistemas off-grid) em locais remotos ou conectadas à rede elétrica (sistemas on-grid) em sistema de compensação financeira ou desconto na fatura de energia elétrica, como é o caso do Brasil sob regulamentação em vigor desde de 2012 (Res. ANEEL 428/2012) revisada em 2015.
5. Aliada às recentes e promissoras pesquisas por fontes de armazenamento de energia, a GD pode contribuir sobremaneira para aumentar a disponibilidade, a autonomia e a independência energética. Tudo isso pode contribuir para um melhor casamento entre demanda e oferta de energia ao longo dia, com um melhor custo-benefício ao consumidor final.
Cabo Verde é um dos estados membros da CEDEAO que tem se destacado em relação à produção e promoção de uso das energias renováveis. O país é dotado de condições excelentes em termos de potencial de geração de energias renováveis, mais especificamente, a solar e a eólica. Além disso, as politicas públicas têm sido direcionadas à exploração desses recursos energéticos em detrimento dos combustíveis fósseis e, por exemplo, de menções ventiladas no passado ao uso de usinas nucleares flutuantes como alternativas (sobre esse assunto escrevi um artigo de opinião no Jornal ASEMANA Intitulado “Agora a moda é: Usina Nuclear Flutuante!” em 23/08/2007 onde opinava a favor dos que defendiam as renováveis). Naquela época o país sofria com recorrentes cortes de energia elétrica. Discutiam-se alternativas para contornar além dos cortes, a dependência externa, o aumento e a volatilidade dos preços dos combustíveis fósseis.
De lá para cá, discursos acertados do então Governo do primeiro ministro José Maria Neves e politicas energéticas ambiciosas de 100% de penetração de energias renováveis colocaram Cabo Verde no caminho certo em que se encontra hoje. Em declarações à rádio ONU aquando da sua participação na COP21 (30/11 a 11/12/2015), em Paris, o então primeiro ministro José Maria Neves já defendia energicamente a ambiciosa meta de 100% de penetração de energias renováveis na matriz de energia elétrica nacional até 2030 (Acessível neste link).
Mais recentemente seguindo na mesma linha, em seu discurso proferido à 27 de Setembro de 2019 na assembleia geral da ONU (Acessível neste link), o atual primeiro ministro de Cabo Verde, Ulisses Correia e Silva reiterava a ambição do país de atingir 100% de penetração de energias renováveis para suprir demanda de energia no país até 2040 (com alguma atualização na data final de entrega). Pouco importa se em 2030 ou 2040, essa estratégia tem dado muito certo, pelo menos na questão da promoção e aumento da taxa de penetração das renováveis.
O marco regulatório no setor das renováveis em Cabo Verde remonta ao ano de 2011, segundo dados da Direção Geral de Energia de Cabo Verde (DGE), com alterações em 2018. A regulamentação do setor estabelece as figuras do Produtor Independente e de Microprodutor como os novos atores no mercado de energia elétrica renovável no país. A legislação em vigor prevê incentivos fiscais, aduaneiros e regime remuneratório/kWh de valor fixo para os novos agentes do mercado. Elementos que servem como forma de atração de investidores para o setor das energias renováveis. Além disso, um ambiente de facilitação do processo de licenciamento ambiental para empreendimentos concessionados e locados nas ditas Zonas de Desenvolvimento de Energias Renováveis (ZDERs) criadas no âmbito do Plano Estratégico Setorial das Energias Renováveis (PESER), previsto no mesmo diploma.
Atualmente, segundo dados estatísticos do DGE (Acessível aqui) o país conta com uma taxa de penetração de 18,4% (93GWh) de renováveis do total gerado e consumido no país. Desse total, 33,6 MWp de potência instalada é de propriedade de Produtores Independentes e 4,4 MWp de Microprodutores. Acima da média dos 18,4% estão as penetrações nas ilhas do Sal (27,6%); São Vicente (27%). No limite da média está a produção na ilha de Boa Vista (18,3%); Abaixo da média está a produção nas ilhas de Santiago (15%) e Santo Antão (8,6%). As ilhas de São Nicolau, Maio, Fogo e Brava ainda sem nenhuma participação de energias renováveis na sua matriz de energia elétrica. Um longo caminho ainda rumo à ambiciosa e saudável meta dos 100%.
O retrato atual mostra um acerto das políticas públicas na promoção e criação de um ambiente de negócios em torno de um consenso de promoção das energias renováveis em detrimento das fontes primárias baseadas em combustíveis fósseis. Os impactos ambientais, a dependência externa, o aumento e a volatilidade de preços formaram as âncoras desse consenso. Os números falam por si. O marco regulatório foi um importante passo dado nessa ambição positiva dos 100% de renováveis no país. Mas também aponta para novos e importantes desafios:
1. O primeiro e mais importante deles é de alinhar as politicas públicas no sentido de promover não só sustentabilidade energética e ambiental, mas também social e econômica a partir da exploração socialmente responsável do potencial energético renovável do país. A sustentabilidade na sua concepção mais ampla não se resume apenas à promoção e intensificação de uso das energias renováveis, mas também no seu impacto social (bem-estar) e prosperidade econômica do povo das ilhas. Neste sentido, as ações devem ser pautadas não só pela ambição dos 100% mas também por critérios objetivos e transparentes de defesa do interesse público tanto na concessão da exploração, quanto no controlo de retorno efetivo da exploração desses recursos à favor das populações. Sempre na perspectiva de que os recursos energéticos são bens públicos que não pertencem a esse ou àquele governo, seja de que partido for, mas sim ao povo das ilhas. E consequentemente sua exploração deve trazer os devidos benefícios (económicos, sociais e ambientais) à população do país não apenas o acesso como meros consumidores, mas como atores participativos na construção das soluções e beneficiários das mesmas.
2. Ainda neste sentido mais amplo de sustentabilidade, cabe uma reflexão sobre a necessidade de eventual descentralização das decisões. Necessidade de uma maior e efetiva participação de representantes da sociedade civil na forma de acesso à publicidade, audiências e licitações públicas; eventualmente sob o olhar crítico também dos órgãos de defesa dos consumidores, nas etapas dos concursos de concessão de novos empreendimentos nas ZDERs. Concursos esses que não podem ser tão simplificados, mas sim criteriosos. Essa medida talvez seja necessária tanto por questões de transparência e de comprovação da defesa do interesse público previstas em lei, ainda mais se levada em consideração o prazo das concessões (licenças operacionais) que giram em torno de 30 anos. Ou seja, são decisões que impactam praticamente uma geração. É salutar que tais decisões sejam tomadas de forma descentralizada, com participação da população, e de forma menos monocrática possível. Na legislação em vigor percebe-se uma preocupação legítima com a organização e desburocratização do processo com a criação das ZDERs, processo simplificado de concurso, mas isso não pode servir de brecha para eventuais especulações, falta de transparência, de abertura à ampla concorrência e de defesa do interesse público. Nesta perspectiva a defesa do interesse público deve sobrepor à questão da pressa de se chegar aos 100%. É preferível chegar aos 100% com os recursos energéticos públicos revertidos à favor da população de forma efetiva, do que gerando riqueza para os mesmos já ricos empresários de sempre (alguns só visam apenas o lucro sem se importar com o bem-estar do povo). Aqui vale fazer um paralelo com o que acontece com as nossas ditas ZTEs (Zonas Turísticas Especiais) em outro setor importante para o país, o do turismo. Será que o modelo de entrega das nossas ZTEs para turismo de massas e explorada por poderosas redes internacionais é deveras um modelo sustentável de turismo, com foco em sustentabilidade social e geração de prosperidade e bem estar para o povo das ilhas? Essa mesma reflexão vale para o setor das renováveis.
3. Outro desafio importante é a criação de um ambiente de negócios e de investimentos, aos poucos e cada vez menos dependente de tecnologia e mão de obra externa. O aproveitamento das fontes primárias de energia renovável no país não deve criar uma nova dependência, agora tecnologia, que também tem impacto na volatilidade de preços. Este ponto também depende de politicas públicas e envolvimento das instituições de ensino, pesquisa e de promoção de ciência, tecnologia e inovação do país. O incentivo do empreendedorismo jovem com a criação de politicas efetivas de acesso ao crédito por parte de investidores nacionais é primordial. É um caminho longo, mas que deve ser traçado e alinhado com as dimensões sociais e econômicas das energias renováveis. O know-how adquirido no país com a criação de um ambiente de negócios em torno das energias renováveis deve ser encarado como valor agregado importante. O CERMI tem tido um papel de destaque neste sentido, na formação de mão de obra qualificada para projetos, instalação e manutenção de infraestruturas voltadas às energias renováveis e segue no caminho de sucesso. A UNICV e outras instituições públicas e privadas do país devem assumir naturalmente o papel de criação desse ambiente voltado à geração de mão de obra qualificada e de promoção do empreendedorismo jovem voltadas á criação de soluções para a cadeia produtiva necessária para a geração energia renovável.
4. Pelos números atuais de geração renovável percebe-se que existe um desafio de promoção e de popularização da microprodução residencial. Percebe-se que do ponto de vista de impacto social a microprodução residencial trás mais benefícios reais ao bolso dos consumidores locais. Este talvez seja um dos maiores desafios da atualidade que se impõe: a popularização de acesso a microprodução. Os investimentos iniciais para a produção própria de energia renovável podem ser impeditivos à maioria das famílias em situação de vulnerabilidade social e econômica. As politicas públicas devem atentar-se para este importante desafio que além de contribuir com o papel social da energia, tem reflexos na redução de preços e promoção do consumo de toda a caixa de insumos para geração de energia, e consequentemente no preço final do kWh ao consumidor final.
Pode-se concluir, pelo exposto, que a geração distribuída renovável, regulamentada, mostra-se vantajosa e uma importante aliada no caminho a percorrer para atingir os objetivos de desenvolvimento sustentável. A ideia foi apresentar de forma objetiva o conceito de geração distribuída (GD), comparando-a com a chamada geração centralizada tradicional. Pelas vantagens econômicas, ambientais e sociais deste tipo de tecnologia e adequação às nossas ambições e potencial fica evidente a importância da GD como fator de desenvolvimento não só para Cabo Verde mas também para região (CEDEAO). Principalmente quando vem com valor agregado à utilização de energias limpas.
Foi muito proveitoso e gratificante verificar durante a etapa de levantamento de referências para a elaboração deste artigo, o trabalho que vem sendo desenvolvida pelas autoridades cabo-verdianas, na promoção, criação, atualização de marcos regulatórios, e no desafio de consolidação de um ambiente de negócios em torno das energias renováveis no país. Espero que as reflexões contribuam de forma positiva para o debate na construção de caminhos que façam com que a população de Cabo Verde seja de facto a maior beneficiária do patrimônio público precioso, que lhe é devido, que é o potencial energético renovável do país. Finalizo enviando um grande abraço virtual em tempos pandêmicos a todas e a todos e desejando que este momento muito difícil para a nossa geração seja superada, mais urgente possível e com menor impacto possível em vidas humanas, e que possamos seguir a caminhada.
Feira de Santana/Bahia, Junho de 2020
(*) Engenheiro Eletrotécnico (USP/São Carlos, 2002). MSc (2005) e PhD em Energia Elétrica (Unicamp, 2010). Desde 2012 é Professor Universitário no Departamento de Tecnologia/UEFS onde atua também como pesquisador com interesses e projetos nas seguintes linhas de atuação: Desempenho Transitório de Redes Elétricas Inteligentes (SmartGrids); Mini e Microrredes de Geração de Energia Elétrica Fotovoltaica Residencial.
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