Quem apoia o atual projeto de urbanização da Câmara Municipal do Sal ou desconhece os impactos negativos da asfaltagem descontrolada, ou defende interesses alheios ao desenvolvimento sustentável da ilha. Esta posição, além de desinformada, revela uma desonestidade intelectual, pois até agora não foram apresentados argumentos técnicos ou sociais válidos que sustentem tal intervenção. O projeto em curso viola os Objectivos do Desenvolvimento sustentáveis e o Decreto-Lei nº 20/2011, afastando a ilha de um futuro inclusivo e sustentável e empurrando-a para um claro retrocesso urbano e ambiental.
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) não foram criados para decorar murais institucionais, muito menos para enfeitar discursos políticos. Foram concebidos como um compromisso global sério e urgente, como uma bússola ética e estratégica para enfrentar os maiores desafios do nosso tempo: a pobreza, as desigualdades, a exclusão, a degradação ambiental e as alterações climáticas.
Cabo Verde, ao assinar a Agenda 2030 das Nações Unidas, comprometeu-se a alinhar as suas políticas e ações com os 17 ODS. Mas, quando olhamos para o que se está a passar atualmente na ilha do Sal, percebemos que esses compromissos estão a ser tratados como letra morta.
Enquanto outros países avançam, o Sal recua. Enquanto cidades pelo mundo apostam em inovação, sustentabilidade e inclusão, o Sal insiste num modelo antigo, cinzento e excludente disfarçado de modernidade.
“Quando urbanizar é sinónimo de apagar a natureza e excluir pessoas”
Nas cidades de Espargos e Santa Maria, os recentes projetos de asfaltagem revelam uma visão míope e ultrapassada de urbanização. Ruas inteiras estão a ser asfaltadas sem qualquer planeamento para arborização, zonas de sombra ou espaços verdes. A prioridade parece ser o alcatrão, como se uma cidade fosse apenas feita de estradas.
Mais grave ainda, é a total negligência em relação à acessibilidade universal. O Decreto-Lei n.º 20/2011, que regula as condições mínimas de mobilidade para pessoas com deficiência, idosos e cidadãos com mobilidade reduzida, está a ser simplesmente ignorado.
Este tipo de intervenção urbana fere frontalmente vários ODS, entre os quais:
ODS 3 – ao comprometer a saúde e o bem-estar dos cidadãos, expondo-os a temperaturas elevadas e má qualidade do ar;
ODS 6 – ao impermeabilizar o solo e agravar o risco de inundações e erosão;
ODS 10 – ao excluir pessoas dos espaços públicos por falta de condições de mobilidade e conforto térmico;
ODS 11 – ao promover cidades desumanas, sem resiliência, sem sustentabilidade, e sem visão de futuro;
ODS 13 – ao agravar ativamente os efeitos das alterações climáticas e a vulnerabilidade urbana.
Asfaltar tudo pode parecer um sinal de progresso. Pode agradar, no imediato, sobretudo a quem não conhece as consequências silenciosas deste tipo de intervenção. Mas é um progresso de fachada, um “avanço” que empurra os verdadeiros problemas para debaixo do tapete… ou, neste caso, para debaixo do asfalto.
Sem árvores, as cidades tornam-se fornos a céu aberto. Sem espaços verdes, perde-se qualidade de vida, bem-estar e saúde mental. Sem acessibilidade, expulsam-se pessoas dos seus próprios espaços. E quando vierem as chuvas, a água, sem para onde escoar, trará consigo cheias, lama, caos urbano e prejuízos que serão pagos com dinheiro público. Dinheiro que poderia estar a ser investido em educação, habitação ou cultura.
Enquanto cidades como Paris removem o asfalto para restaurar o solo, criar zonas verdes e combater o calor urbano, na ilha do Sal a lógica parece ser inversa: cobre-se tudo com asfalto, como se o futuro fosse feito apenas de carros e superfícies duras. Paris é hoje um dos maiores exemplos de urbanismo regenerativo, com metas concretas de remover até 40% do asfaltado até 2030, criando espaços mais frescos, permeáveis e inclusivos. Estes projetos de depaving (remoção de asfalto) permitem a retenção da água das chuvas, reduzem as temperaturas e criam habitats para a biodiversidade urbana, tudo aquilo que o Sal está a perder.
Se as cidades de Espargos e Santa Maria continuarem este modelo de “urbanização cega”, centrado no alcatrão e na exclusão da natureza, o futuro será um deserto urbano: quente, impermeável, excludente e hostil à vida. Todo este esforço de requalificação urbana que hoje se apresenta como modernidade, na verdade está a acelerar o desaparecimento da biodiversidade, a empobrecer o ecossistema urbano e a comprometer seriamente a resiliência ambiental da ilha. O urbanismo do futuro não pode continuar a ser pensado com ferramentas do passado. É urgente mudar o rumo, antes que seja tarde.
O que está a acontecer na ilha do Sal não é apenas um erro técnico ou uma omissão ocasional. É um retrocesso urbano disfarçado de obra pública. Um retrocesso que se executa com maquinaria pesada, calado por discursos feitos e pelo silêncio cúmplice das instituições, incluindo o Ministério do Ambiente, JORNALISTAS, ORDEM DOS ENGENHEIROS E DOS ARQUITECTOS, cuja missão deveria ser garantir precisamente o contrário. Todos mencionados anteriormente são cúmplices dessa negligência institucional.
Os ODS não são só para os grandes centros urbanos nem para apresentações internacionais. São para todas as cidades. Para todas as autarquias. Para todas as ruas onde vive um cidadão.
Precisamos de um novo modelo de cidade. É tempo de parar, pensar e recomeçar com consciência. Cabe à oposição, como obrigação, esclarecer a sociedade, indo às escolas, por exemplo. Se necessário, deve inclusive apresentar queixa-crime ou providência cautelar para impedir a estagnação.
É tempo de incluir a natureza no desenho urbano, de colocar as pessoas no centro do planeamento, e de lembrar que desenvolvimento sem justiça, sem inclusão e sem sustentabilidade… não é desenvolvimento é ilusão.
A ilha do Sal, e Cabo Verde como um todo, não podem continuar a ignorar os compromissos que assumiram com o mundo e com o seu próprio povo.
Porque as cidades são para as pessoas. Todas elas. Sem exceção..
Comentários