Exmo. Senhor Ministro de Administração Interna de Cabo Verde
Exmo. Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde
Senhor Diretor Nacional de Policia Nacional
Senhora Presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos e Cidadania
Exmo. Senhor Embaixador da Republica da Guiné-Bissau em Cabo Verde
Senhora Representante da Agência das Nações Unidas para as Migrações
Relato circunstanciado
Eu, Jorge Mário Fernandes, guineense, Cientista Social e professor Universitário, venho, pelo presente, relatar as circunstâncias da minha detenção (ou rapto) no aeroporto Internacional Nelson Mandela na Cidade de Praia em Cabo Verde nos dias 1 e 2 de outubro do corrente ano.
Por volta das 13:45 (hora local), aterra no supra aeroporto o voo da TRANSAIR, onde eu me encontrava, descendo do avião fomos encaminhados para o saguão onde fica a parte do controle, Serviços de Emigração e Fronteiras cabo-verdianos. Chegando a minha vez de ser atendido, dirigi-me ao guichet onde se encontrava o agente de nome José Maria António Tavares, entreguei todos os documentos e informei-lhe que estava de passagem (em trânsito) para o Brasil para tratar dos assuntos finais do meu doutoramento. O referido agente mal recebeu os meus documentos começou a questionar várias coisas (inclusive sobre a veracidade dos meus documentos da residência no Brasil), até aí tudo normal, tendo em conta o papel de ser a polícia da lei, embora senti que ele estava procurando algo em mim que não estava encontrando no meu documento porque estava tudo em conformidade com a lei. Entretanto, quando ele me questionou sobre a validade do meu passaporte (que tem a data de validade para o dia 29 de janeiro de 2020), repostei que a minha viagem é para o Brasil- onde tenho residência permanente e estou em trânsito por Cabo Verde só por horas.
O supracitado agente continuou a sua saga em busca de alguma coisa que pudesse impedir o seguimento da viagem a um jovem (padrão daquilo que julgam não prestar), rasta, de ténis e calça jeans slim e, para piorar, portando o passaporte da Guiné-Bissau. Disse-me que teria que voltar a Bissau para ir renovar o meu passaporte (que só vence em 29 de janeiro de 2020), repostei que não precisava, tendo em conta que estou fazendo uma viagem para o Brasil onde tenho a minha residência permanente e, mesmo que o passaporte tivesse um dia de prazo, ainda dava para entrar no Brasil e poder renovar por lá, porque sou residente nesse (tenho documentos da minha residência que já estava com ele, o agente), mesmo com a chamada de atenção do colega dele- um outro agente que estava do lado, de que o documento da minha residência permanente no Brasil ainda estava com validade para o dia 21 de dezembro de 2021 o que anularia o argumento do prazo de passaporte, mas ele não deu ouvidos. Disse-me que o agente era ele, sabia o que estava fazer e que dispensava a minha opinião, repostei-lhe que só estava a responder às suas (dele) perguntas e que não via nenhum embasamento jurídico-legal para impedir-me de prosseguir a minha viagem. Daí veio a sentença, num tom ameaçador “Xinta la bu spera, bu ta odja kuze ki embazamentu…” ou seja, disse-me pra ir esperando, que iria mostrar-me o que seria, para ele, embasamento jurídico-legal.
Dali seguiram-se sessões de humilhações, mandaram-me para o Raio-X com comprovar que não carregava nada ilegal comigo, depois do nada consta da máquina, mandaram-me sentar num quarto lá do aeroporto a espera do…nada. Depois de mais de duas horas sentado, veio uma outra agente de nome Ângela (não consegui reter o sobrenome), começou a fazer-me várias perguntas e fui respondendo, por último perguntou-me o que eu fazia da vida, disse-lhe que era professor universitário e ela em tom de deboche, disse-me que também era professora, a família toda era e que não existia nada que eu poderia dizer que ele não sabia, aí falei, que bom. Então qual a razão da minha permanência aqui nesta sala há mais de duas horas? Perguntei a ela e ela ”não sei, vim substituir o agente Tavares e ele não me passou a sua ocorrência, pelo que vais ter que aguardar o chefe chegar”, respondeu-me. Questionei mais uma vez, se estava preso? Disseram que não, mas que precisaria tirar os cadarços dos sapatos e todos os acessórios para eles guardarem. Pedi um telefone para ligar à pessoa que viria apanhar-me no aeroporto e estava fora à minha espera, disseram que não, que o telefone era para uso interno deles e que não poderiam atender ao meu pedido, contra argumentei que era o meu direito, disseram que eu não tinha esse direito em Cabo verde. Portanto, falei que não iria entregar as minhas coisas até porque não estava sendo preso e nem tinha motivos para tal…neste momento, entrou em cena um outro agente (não consegui reter o nome), disse-me que se não fizer o que a agente estava a ordenar, ele mesmo o faria à força. Vendo o rumo em que a nossa conversa estava, saquei o meu telefone no bolso e comecei a registar a ação deles contra mim…mal comecei a filmar, vieram os dois pra cima de mim, numa ação brutal deram-me um grampo e retiraram o meu telefone celular e me jogaram na cela, passado uns 20 minutos voltaram pra cela e obrigaram-me a desbloquear o meu telefone para apagar o vídeo das agressões verbais e físicas que tinham feito contra mim, o que recusei na hora, mas sob ameaça de deletarem tudo o que tinha no telefone, fui obrigado e desbloquear e apagar o vídeo...mas apaguei o vídeo, num ato de força tiraram-me o telefone da mão e começaram a abrir e assistir os meus vídeos privados, rindo da minha cara, assim levaram o meu telefone desbloqueado, sabendo só a Deus o que fizeram com ele, sim, tenho toda a minha vida por lá.
Depois de dois dias na cela, jogado feito um animal, sob humilhações e coisas de baixo nível, sem o conhecimento da embaixada e muito menos da minha família e amigos que estavam todos aflitos sem saber do meu paradeiro, veio uma nova equipa, de duas policiais do bem, uma de nome Aleida Mendes, não me lembro o nome da segunda, estranharam a minha presença por lá, perguntaram o porquê de eu estar lá, quando comecei a fazer o relato, logo mandaram-me sair de lá, contrariadas com toda aquela situação, pediram-me desculpas e ligaram para o Dr. Cláudio Furtado que era a pessoa que iria receber-me na Praia. Perdi o meu voo, que era no dia seguinte para ilha de Sal e perdi o meu voo seguinte que era para o Brasil, até o momento, ninguém se responsabilizou pelo ocorrido, fora as desculpas pelo mal-entendido e nada mais.
Faço esse relato, não só por mim, mas pelos irmãos africanos que diariamente passam pelos mesmos constrangimentos, humilhações e desrespeitos à dignidade humana só por estarem a viajar em busca de condição de vida melhor ou por motivos académicos, como é o meu caso, ou, simplesmente, a trabalho.
Termino esse relato com algumas frases timbradas que consegui captar na cela:
We are not animals!!!
Respect the human rights!
Be good with your brothers!
We are one people, we are one Africa!!!
Anós i un son, fidjus di Cabral no pega n´ghutru no mama (minha adaptação).”
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