9. Somos uma sociedade profundamente contaminada pelo Medo. E esta é uma das mais tristes marcas destes 45 anos de Independência. Temos medo de ser livres. Temos medo de exercer plenamente a cidadania. Crescemos em calculismo e em astúcia. Permitimo-nos estar amarrados por censuras e auto-condicionamentos os mais diversos. Antes de exprimir o que nos vai na alma fazemos mil e uma contas. Encolhemo-nos. Apavora-nos a ideia de desagradar o chefe, de cair em desgraça. Para compensar, fazemos bravata em espaços mais ou menos privados. O exercício da liberdade e da cidadania não é, entre nós, um impulso natural. Por exemplo, as redes sociais, essas, vieram trazer-nos a ilusão da participação e do debate. A verdade é que os que genuinamente participam e exprimem opiniões são uns poucos. Há, isso sim, uma enorme plateia de ‘voyeurs’, aqueles que nunca se comprometem, os que nunca botam sequer um simples ‘gosto’ num post (em cujo conteúdo se reconheçam) porque isso poderá suscitar desaprovação desta ou daquela chefia, pôr em risco o emprego, fazer tremer a relação serviçal. São a actualização ou o ‘rebound’ do ‘toda a gente fala sim senhor’. Até parece que colocaram a coluna num pé-d’tarafe a apanhar vento. Esse tipo de ‘cidadania’ foi crescendo, melhor, foi-se engordando ao longo dos anos, abrangendo conterrâneos que estudaram, que se formaram, que deviam ser livres e ajudar outros a ser livres, mas não conseguem. Acomodaram-se, optaram pelo egoísmo do conforto. O seu contributo para a instalação do Medo é enorme. Aliás, precisam dele, não saberão sobreviver sem ele. Construíram, assim, toda uma argumentação para as covardias, grandes e pequenas, diárias e permanentes. Ao desgaste das disputas democráticas preferem colher na mansidão os frutos e, desta forma, quem quer que seja o chefe, estão sempre em cargos cimeiros. É só analisar o Quadro dos Estáveis da República... Fazem-se ‘indispensáveis’, proclamam-se ‘competentes’ e, por preguiça ou inércia, ninguém questiona a patranha. Fazem desdém dos Partidos Políticos mas anseiam pelas suas migalhas. Não admira, por conseguinte, que não exista no país uma classe de Independentes, reconhecida, idónea, sólida. Os que o têm pretendido ser só o são quando lhes dá jeito, em determinados momentos históricos. Ora, o oportunismo nunca poderá ser um definidor da ‘independência’. Sê-lo-ão sim a liberdade de pensamento, a coerência e constância nos posicionamentos, a intrepidez do verbo, a luta por aquilo em que se acredita independentemente (!!) e apesar de quem esteja no Poder. Igualmente, não admira que seja difícil a construção de alternativas credíveis no espectro político nacional. O miolo é bolorento.
10. Tenho que uma pesada mancha no balanço destes 45 anos de Cabo Verde Independente é a inexistência de uma Administração Pública verdadeiramente autónoma e ao serviço do interesse nacional. De uma agenda de Estado, afinal! Pelo contrário, a sua estabilidade e o seu amadurecimento são prejudicados pela sazonalidade das opções e lideranças. Ou seja, ela é ainda perversamente marcada pelos ciclos eleitorais e pela oscilação na escala de Qualidade dos titulares dos cargos políticos. Comportamo-nos nas alternâncias como se em mudança de regime. Dito por inteiro: a chamada ‘partidarização da Administração Pública’ (e esta é a primeira vez que uso tal expressão) é um dos piores serviços prestados à Nação, nestes 45 anos. Infelizmente, a condenação tem ficado por isso mesmo. Pois que o cinismo político manda substituir o mal identificado... pelo seu clone. Avançamos e regredimos com a maior descontracção, alheios às perdas e aos custos. Investimos no aparato tecnológico mas não somos coerentes na capacitação e garantia de condições de estabilidade e enriquecimento profissional e humano aos Servidores do Estado. Perigosamente a experiência e os saberes específicos são desautorizados por assessorias politico-partidariamente ‘legitimadas’, mas imberbes e incultas desde o ponto de vista do Sentido de Estado e da Cultura Institucional. Promovemos a subserviência; incomoda-nos a palavra competente e franca. Poucos, muito poucos têm sido os Titulares Políticos que perceberam (e, percebendo, foram coerentes) a Administração como um Valor da Nação, um Património de todos. Tardamos a entender que, para um país pequeno, arquipelágico e dependente, uma das condições de resiliência é, tem de ser, precisamente a existência de uma Administração Pública com os pés bem fincados na terra.
11. Também por essa razão de há muito defendo o dever de relato por parte dos titulares de cargos políticos, particularmente dos Governantes. É salutar e fundamental submeter-se ao escrutínio público. Num país de recursos exíguos, é inaceitável que tais titulares entrem calados e saiam mudos. Importa saber ao que vieram e o que fizeram. Que ganhos a sua prestação significou para o país. A tal ‘accountability’! Bem sei que nas nossas ilhas existe uma indisponibilidade congénita para fazer balanço, para admitir falhas ou fazer ‘mea culpa’. Preferimos a fumaça do tudo está bem, do amanhã é outro dia. Volvidos quarenta e cinco anos, é legitimo e necessário avaliar a prestação dos Titulares. Tivemo-los já às largas dezenas. Qual o comprometimento de uns e outros com o bem comum? Que contributo trouxeram para a nobilitação do cargo e o engrandecimento do país? Que marcas deixaram? Que ensinamentos reter? Onde e como fazer melhor? Ou seja, o discurso de exaltação não deve ofuscar o sentido critico e a necessidade colectiva de superação e avanço nos próximos... 45 anos.
12. O desdobramento mais insidioso desse Medo é a sua utilização nas campanhas eleitorais para o condicionamento dos mais pobres, maxime, para a compra do seu voto. O despudorado aproveitamento da fragilidade alheia. Há seguramente uns dez anos escrevi contra isso. Continuo a entender que há uma profunda indignidade no fenómeno da compra de votos. Os fins são nobres também pelos meios para os alcançar. Na mesma linha, parece-me que a Juventude cabo-verdiana deveria ter como bandeira, neste marco dos 45 anos de Cabo Verde independente, o combate sem tréguas a essa prática que envergonha a nossa Democracia. Claro está que, muito antes disso, a Juventude terá de poder ver o país para lá dos coletes partidários... Outrossim, convém que este assunto seja igualmente atacado pelo ângulo dos Direitos Humanos, designadamente do incondicionado exercício de direitos fundamentais, e da consolidação do Estado de Direito Democrático.
*Artigo publicado pelo autor no facebook
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