A Binter Cabo Verde acaba de capturar o Estado de Cabo Verde. O anúncio público de que a Agência Reguladora da Aeronáutica Civil decidiu rever a fixação da tarifa máxima das passagens aéreas domésticas com base nas ameaças daquela companhia aérea em suspender os voos, veio mostrar que o Estado de Cabo Verde já não controla todas as pedras da máquina social, económica e política nacional, e que o país está prestes a passar para o outro lado da barricada – o lado do descrédito, da indecência e da vergonha.
Verdade. A partir deste momento, já ninguém consegue controlar a Binter Cabo Verde. Com esta jogada acabou capturando o Estado, que terá que fazer aquilo que ela quer, senão ninguém voa entre as ilhas.
Desde o início que muitos cabo-verdianos, avisados e distraídos, manifestaram as suas reservas em relação a este negócio entre o Governo, que faz a gestão dos recursos do Estado, e esta empresa estrangeira, chamando a atenção para os perigos que a transmutação de um sistema de monopólio público para um sistema de monopólio privado podem representar para os interesses dos cabo-verdianos.
Quando essas dúvidas, esses receios, vieram a público, o Governo veio a terreiro acusar a oposição de estar por detrás dessas críticas, com mimos de que esta é contra os investimentos estrangeiros, e acusações de que estaria – a oposição - a incitar a desinformação e a desordem na sociedade.
É público e notório que as ligações aéreas inter-ilhas são deficitárias. Várias razões podem justificar este défice, porém há uma que salta à vista de qualquer um – a pequenez do mercado. Somos pouco mais de 500 mil habitantes, grande parte com fraco poder de compra, ou porque o salário é miserável, ou porque é desempregado. O colapso social em Cabo Verde é evidente e é dramático. O fosso entre quem tem e quem não tem, ou tem muito pouco, é cada dia mais abismal.
São factos, e contra factos, não há argumentos. E não há sinais de melhoria. O Governo, que é quem gere os recursos do país, declarou-se, há muito, amigo das empresas, e logo, do capital. Assim, o povão - este que nunca viu capital na vida e nem há de ver - que aguente os solavancos, pagando o pato que não comeu, e jamais comerá, mesmo que seja a prestações.
E a Binter Cabo Verde já se apercebeu disso. Já viu que está a lidar com um grupo complexado, submisso quando o assunto é dinheiro, investimento directo estrangeiro, sector privado, entre outras terminologias que ganharam significados mágicos nos últimos tempos, aqui neste arquipélago de brandos costumes, onde a palavra de ordem da maioria é “sem djobe pa ladu” e “gosi é nós ki sta manda”.
A Binter já se apercebeu que está perante um grupo malabarista, jogador e imediatista. Um grupo sem qualquer compromisso com o futuro. Um grupo para quem os fins justificam os meios, e vice-versa, pelo que o interesse colectivo pode ir parar para as calendas gregas, a todo o tempo e em qualquer momento. Enfim, um grupo hipócrita, para quem o Estado é uma espécie de latrina, só serve para ser usado, com as instituições se cagando em relação aos interesses colectivos.
Por isso, neste momento, a Binter tem Cabo Verde nas mãos. Ou o Estado e as suas instituições satisfazem as suas necessidades e caprichos, ou não há voo para ninguém. E isto, num país arquipelágico, pode ser mais grave que todas as secas cíclicas que fustigaram as ilhas ao longo destes cinco séculos de história, juntas.
Sim! Em pleno século XXI, um país, um povo, uma nação, capturados por uma empresa de capital estrangeiro, que jamais viria aqui por causa dos lindos olhos dos cabo-verdianos. Jamais, porque foi pensado e concebido para gerar lucro, para criar riquezas.
Tudo porque, alguém, a quem foi incumbido o poder de gerir os recursos nacionais, resolveu fazer o que bem entender com eles, sem prestar contas a ninguém. E hoje os incumbentes, ou seja, o povo, assiste, impotente, ao desbaratar dos seus bens, aguentando o escárnio de uma empresa estrangeira que sequer lhe passa um olhar, mesmo que breve, só para vislumbrar esta tristeza colectiva que está a consumir a autoestima da nação.
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