Língua cabo-verdiana: desconstruindo mitos – Mito 6/12
Cultura

Língua cabo-verdiana: desconstruindo mitos – Mito 6/12

1. Introdução

Persiste ainda, na nossa sociedade, um sistema articulado de conceções equivocadas sobre o crioulo de Cabo Verde[1] (e os crioulos de um modo geral). Apesar de não terem bases científicas, esses equívocos estão profundamente registados no senso comum e infiltrados em alguns de nós. Por isso, têm desempenhado um papel impeditivo importante na concretização de medidas de política linguística favorecedoras do desenvolvimento da língua cabo-verdiana[2] como sejam a sua oficialização e o seu ensino. Tendo em conta o papel do conhecimento na desconstrução dos mitos, discutem-se 12 dessas ideias,[3] mostrando evidências científicas que as contrariam, tendo em vista contribuir para a construção de uma comunidade mais harmonizada em que as línguas de Cabo Verde se possam expandir livremente.

2. Mitos sobre a língua cabo-verdiana[4]

Esses mitos, que menorizam a língua cabo-verdiana (LCV), são produtos de uma configuração sociocultural dominada por uma ideologia linguística colonial que exigia e impunha o domínio da língua do império, apresentada como o modelo ideal de língua e, como contraponto, o aniquilamento das outras, entendidas como símbolo da inferioridade dos seus falantes, para, assim, impor a sua cultura e o seu projeto político. Por isso, esses equívocos foram amplamente difundidos, naturalizados e inculcados na mente dos cabo-verdianos, determinando as suas atitudes face à sua própria língua materna, a ponto de alguns, cada vez menos, felizmente, admitirem que não falam uma língua ou falam algo que ainda não o é.

Assim, na sequência da discussão do Mito 1: O crioulo não é língua, do Mito 2: O crioulo cabo-verdiano é um dialeto do português, do Mito 3: O crioulo é uma deturpação, corrupção do português, português malfalado, do Mito 4: O crioulo é pobre, não tem regras nem gramática (própria), prosseguimos com o mito 6.

      Mito 6. O crioulo não corre risco de desaparecimento

Muitos afirmam que se a língua cabo-verdiana sobreviveu a séculos e séculos durante os quais não foi ensinada e usada na escrita e em contextos mais formais, é porque o risco de descrioulização e de desaparecimento já está ultrapassado.

Na verdade, os cabo-verdianos, hoje, de um modo geral, admitem um contínuo crioulo que pode ser associado à descrioulização: um crioulo leve (mais próximo da língua portuguesa, a que os linguistas chamam variedade acroletal) e um crioulo fundo (mais distante da língua portuguesa, a variedade basiletal), com variedades intermédias.

Esta aproximação ao português que hoje se observa é o resultado de um longo percurso. As mudanças nas línguas podem levar séculos a acontecer e determinadas circunstâncias sociais podem acelerá-las. É o que se verifica na situação atual: quanto mais tempo passar e, naturalmente, maior for a duração do contacto com o português, quanto mais falantes do português houver, quanto mais a forma de falar próxima do português for divulgada na rádio e na televisão, e for adotada mesmo pelos falantes menos escolarizados, mais a descrioulização tenderá a acentuar-se. De ressaltar ainda que a adoção da variedade mais próxima do português (acroletal) como mais prestigiante e a sua difusão e transmissão intergeracional, de pais para filhos, como língua materna é um fator acelerador da descrioulização.

Então, a oficialização e consequente padronização da língua cabo-verdiana são a melhor forma de preservar esse património histórico e cultural que recebemos dos nossos antepassados e de deixá-lo às gerações vindouras.

Os crioulos que não são reconhecidos oficialmente, não são usados em todos os lugares e circunstâncias e não são escritos nem ensinados acabam por definhar ou por se afastarem tanto da sua forma inicial, que perdem a sua essência e desaparecem.

 *Linguista

[1] A expressão crioulo de Cabo Verde/ crioulo cabo-verdiano será usada para referir à língua cabo-verdiana em situações históricas ou para tipificar a língua.

[2] Conservo a escrita da palavra ‘cabo-verdiano(a)’ com hífen, que é sustentada por duas regras: i) a que manda colocar hífen nos gentílicos dos compostos onomásticos; e ii) a que indica –iano como o sufixo nominativo que exprime o sentido “natural de…”. Além disso, impõe-se a coerência com a posição assumida por Cabo Verde ao ratificar o Tratado (internacional) do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Se essa circunstância, por um lado, põe em relevo o facto de a ortografia (de qualquer língua) ser uma convenção, evidencia, por outro, que, tendo sido aprovada tal convenção, nenhum indivíduo, isoladamente, se pode arrogar o direito de a modificar de acordo com critérios próprios. Com efeito, esta é a forma constante do VOCALP: Vocabulário Cabo-Verdiano da Língua Portuguesa, aprovado pelo Governo e, portanto, o instrumento que fixa, legalmente, a ortografia da língua portuguesa em Cabo Verde. O VOCALP é parte integrante do Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, instrumento previsto no Tratado do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. O VOC segue, adequando, os critérios ortográficos comuns definidos na ‘Sistematização das Regras de Escrita do Português’, discutida e validada pelo Corpo Internacional de Consultores do VOC e aprovada pelo Conselho Científico do IILP em 2016 e foi validado e aprovado politicamente na mais alta instância da CPLP. O VOC e o VOCALP podem ser consultados no Portal do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP).

[3] Agradeço aos membros da extinta Comissão Nacional para as Línguas as observações, os comentários e as sugestões. As falhas restantes são da minha inteira responsabilidade.

[4] Os contra-argumentos dos números 1 a 5 e 7 foram redigidos com base em Pereira, Dulce. O Essencial sobre os Crioulos de Base Portuguesa. Lisboa. Editorial Caminho. Pp. 13-15. 2006. e os restantes com base em Lopes, Amália Melo. As línguas de Cabo Verde: uma Radiografia Sociolinguística. Praia. Edições Uni-CV. 2016.

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