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A (Re)construção do cânone literário caboverdiano pelo olhar das antologias - Terceira Parte
Cultura

A (Re)construção do cânone literário caboverdiano pelo olhar das antologias - Terceira Parte

Creio que já é tempo e, por isso, urge a organização (de preferência pela Academia Cabo-Verdiana de Letras em eventual parceria com o Instituto da Biblioteca Nacional, com as Universidades e as muitas editoras caboverdianas privadas actualmente existentes no país e na diáspora) de uma antologia de poesia caboverdiana em língua caboverdiana bem como de duas novas antologias temáticas da poesia caboverdiana, desta feita com propósitos verdadeiramente antológicos no sentido da consagração dos melhores exemplos dos vários paradigmas ou cânones que marcaram e vêm marcando a história literária caboverdiana: i. uma primeira abrangente dessa mesma poesia dos primórdios até à obtenção da independência nacional de Cabo Verde (independentemente de os poemas referentes a esse período, obviamente colonial, terem sido dados a conhecer e publicados até essa memorável data); ii. Outra, a segunda, abrangente da poesia caboverdiana da independência nacional até à actualidade.

TERCEIRA PARTE

III
A NOVA LARGADA DA LITERATURA CABOVERDIANA

1. Saudados por Amílcar Cabral nos seus “Apontamentos sobre a Poesia Cabo-Verdiana”, ensaio publicado, em 1952, no Boletim Cabo Verde, numa óptica neo-realista e nacionalista de apreensão e de percepção do que os claridosos tinham genuinamente de comunhão da sua escrita literária com os problemas mais candentes do povo caboverdiano, aquele intelectual caboverdiano também chamara a atenção para a necessidade de “transcender” a mensagem claridosa, sobretudo no que ela tinha de resignativo e evasionista, vendo no “Poema de Amanhã”, de António Nunes, e no “Poema”, de Aguinaldo Fonseca (aliás, companheiro de tertúlias literárias, camarada de luta e amigo pessoal de Amílcar Cabral), exemplos plausíveis,  pertinentes  e fecundos do conseguimento dessa desejada superação da claridosidade e a ser impreterivelmente seguida pelas novas gerações de literatos caboverdianos, na medida em que o primeiro poema citado se referia a “estas leiras de terra que se estendem,/ quer sejam Mato Engenho,  Santana ou Dàcabalaio” , “frutos do nosso suor, filhas do nosso esforço” que “um dia serão nossas”, inundando-se o poema, depois de descrito o  quadro marcado pela  aridez  das paisagens físicas e pelo desalento e pelo desânimo das criaturas humanas das ilhas, de um optimismo esfusiante sustentado no sonho e na esperança de novos e melhores dias para os filhos das ilhas, doravante alimentados por “novas seivas brotando da terra dura e seca”. Mais esparso e parcimonioso em palavras consubstanciadoras de eventuais delírios oníricos de utópica e salvífica redenção dos homens e das mulheres das ilhas e  da sua mãe-terra caboverdiana, o segundo poema, do afrocrioulista e nova-largadista Aguinaldo Fonseca (aliás, companheiro, camarada e amigo pessoal de Amílcar Cabral), conclama o povo das ilhas  (na feliz expressão inventada e usada em primeira mão pelo também afro-crioulista e novo-largadista Manuel Duarte) a “construir uma outra terra dentro da nossa terra”.

Do ponto de vista da compreensão identitária do arquipélago caboverdiano e antecipando o opúsculo Cabo Verde Visto por Gilberto Freyre, de Baltasar Lopes da Silva, que, como já referido, racionaliza e  propugna  a diluição de África na cultura caboverdiana, Manuel Duarte analisa e interpreta o caso político-cultural de Cabo Verde no seu ensaio  “Cabo-Verdianidade e Africanidade”, publicado em 1951, na revista coimbrã Vértice, situando-o no tempo histórico das emancipações políticas africanas e compreendendo-o como tendo matrizes europeias e africanas, mas pugnando por um seu entendimento como um caso  de regionalismo político-cultural mais africano do que europeu por razões atinentes à geografia, à origem étnica da grande maioria da sua população e ao seu destino político imediato, marcado pela libertação dos povos africanos do jugo colonial europeu.

Nessa sequência, surge o opúsculo Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, um verdadeiro opus magnum  da tomada de consciência político-cultural da Geração da Nova Largada (aquela “que não vai para Pasárgada”) e um seu verdadeiro manifesto,  por se caracterizar como a mais contundente crítica da claridosidade, acusada de inautêntica, elitista, evasionista, resignativa, barlaventista, seminarista, ocultadora da presença no arquipélago meso-atlântico da matriz negro-africana da cultura caboverdiana e, ademais, premeditadamente indutora da  diluição nessa mesma cultura arquipelágica da dimensão cultural crioula de matriz negro-africana.

2. Tendo tido importantes consequências no processo de reafricanização dos espíritos (expressão cunhada, segundo Mário de Andrade, pela primeira vez por Amílcar Cabral), aqui entendido enquanto processo de catarse cultural de resgate da dimensão africana da cultura caboverdiana, o livrinho maldito (no expressivo dizer do novo-largadista e neo-claridoso Gabriel Mariano) não afectaria todavia grandemente o estatuto literário canónico dos claridosos e da estética por eles fundada e seguida, dos pontos de vista estético e estético-ideológico, nas várias vagas seguintes de neo-claridosos.

É o que atesta o primeiro volume da antologia No Reino de Caliban - Antologia Panorâmica da Poesia Africana de Expressão Portuguesa, de Manuel Ferreira, e dedicado a Cabo Verde e à Guiné-Bissau (estando este último país representado por um único poeta, designadamente Baticã Ferreira), publicado em 1975 e consagrando-se de imediato como a mais importante antologia até hoje organizada e editada sobre a poesia caboverdiana, não só pela abrangência dos poetas e dos poemas compilados e seleccionados, como também pelas argumentações constantes das suas notas introdutórias para a fundamentação das escolhas feitas e para a explicação do caso antropológico de Cabo Verde, considerado  especial enquanto sociedade crioula supostamente superadora e doravante livre de conflitos raciais.

Algumas questões relevantes ressaltam desde logo na poesia e nos poetas antologizados  para esse primeiro volume de No Reino de Caliban, dedicado a Cabo Verde e à Guiné-Bissau:  

i. A inclusão dos poetas anteriores aos claridosos somente na sua dimensão de cultores de poesia lavrada em crioulo, como nos casos de Eugénio Tavares e Pedro Cardoso, ficando excluída a sua poesia lusógrafa, tal como ficaram excluídos os poetas caboverdianos lusógrafos Guilherme da Cunha Dantas, Januário Leite, Guilherme Ernesto  ou José Lopes,  bem como as muito activas poetisas desse importante período histórico-cultural Gertrudes Ferreira Lima, chamada A Humilde Camponesa ou, também, A Obscura Paulense, e Maria Luiza de Senna Barcelos, chamada A Africana,  mas somando-se aos dois grandes poetas nativistas bilingues anteriormente referenciados os poetas Luís Romano, Corsino Fortes, Jorge Pedro Barbosa, Arménio Vieira e Virgílio Pires, todos também bilingues, mas alguns deles igualmente antologizados nas suas facetas lusógrafas, aliás, tidas por mais relevantes no conjunto da sua obra literária. Especial parece ter sido o caso do poeta mindelense bilingue Sérgio Frusoni, cujos poemas em crioulo foram incluídos conjuntamente com a sua (dele, Sérgio Frusoni) versão em português dos mesmos poemas.

ii. A inclusão de António Pedro Costa, todavia não como inventor do modernismo poético cabo-verdiano e precursor do modernismo teluricista claridoso, que efectivamente foi com o livro Diário, publicado na cidade da Praia, em 1929, mas como mero antecessor dos claridosos. Essa inclusão é assaz significativa, pois que António Pedro não foi incluído na antologoa Modernos Poetas Cabo-Verdianos, de Jaime de Figueiredo, por este (que, aliás, é o autor da capa do Diário, livro de poemas de António Pedro) não considerar o poeta luso-caboverdiano nascido nos arredores da cidade da Praia de pai português e mãe branca crioula oriunda da ilha do Fogo (e, por isso, na irónica expressão de Dionísio de Deus y Fonteana denominado luso-djarfogo-badio branco), como inteira e/ou autenticamente caboverdiano.  

iii. A inclusão da poesia de João Vário constante do livro Horas sem Carne, publicado , em 1958, em  Coimbra,  e por ele próprio renegado e retirado do mercado por alegada falta de qualidade e supostamente oriunda do estro de “um poeta neófito”, e de excertos de alguns livros integrantes de  Exemplos, designadamente o primeiro,  intitulado Exemplo Geral, e o segundo, intitulado Exemplo Relativo, já então dados à estampa, apesar da sua classificação também por Manuel Ferreira como poesia inautêntica e desfasada de realidades estritamente caboverdianas.

iv. A inclusão (tal, como, aliás, ocorreu com João Vário), na secção final reservada a “Poetas das Sete Partidas do Mundo”, da poesia de temática caboverdiana do poeta luso-caboverdiano Daniel Filipe, autor de livros versando temas caboverdianos, como, por exemplo, A Ilha e a Solidão, mas também de livros de temática portuguesa, como, por exemplo, Pátria-Lugar de Exílio, ou de temática universal, como A Invenção  do Amor. Essa inclusão é tanto mais relevante porque Daniel Filipe, apesar de ter nascido em Cabo Verde, na ilha da Boavista, e de uma parte da sua obra versar temáticas caboverdianas, também não foi  incluído na antologia Modernos Poetas Cabo-Verdianos, de Jaime de Figueiredo, por razões provavelmente idênticas às que levaram à exclusão de António Pedro Costa da mesma antologia inaugural da moderna poesia caboverdiana. 

v. A exclusão de poemas e de poetas assumidamente negritudinistas, afro-crioulistas, pan-africanistas e/ou anti-claridosos, como o Kaoberdiano Dambará (pseudónimo de Felisberto Vieira Lopes) do livro clandestino de poemas anti-coloniais Noti, publicado em 1964, pelo Departamento de Informação e Propaganda do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC), redigidos maioritariamente em crioulo fundo (basilectal) do interior rural da ilha de  Santiago; João Henrique de Oliveira Barros (este último por vontade própria por não concordar com os critérios adoptados pelo antologizador, alegada e necessariamente muito condicionado pela ferozmente vigente censura colonial-fascista); Timóteo Tio Tiofe, que, entretanto tinha já publicado excertos do seu futuro O Primeiro Livro de Notcha na revista-folha Nôs Vida, de Roterdão; Kwame Kondé (pseudónimo do médico-guerrilheiro Francisco Fragoso) que, publicou, em Paris, em 1974, já depois do 25 de Abril de 1974, o livro Korda Kaoberdi, ou ainda e, por exemplo, o poema “Eis-me aqui, África”, de Mário Fonseca.

A publicação do primeiro volume de No Reino de Caliban viria a ter repercussões, não só na duradoura afirmação do cânone claridoso, esteticamente seguido no seu modernismo teluricista pelas novas gerações literárias nova-largadistas e nacionalistas, mesmo se veementemente contestado nos seus pressupostos estético-ideológicos alegadamente resignativos e evasionistas e na fundamentação eminentemente luso-tropicalista da sua compreensão do Cabo Verde colonial.

Abrangendo, como já se viu, a poesia modernista lusógrafa e alguma poesia em crioulo publicada até à independência de Cabo Verde, a antologia panorâmica  da  poesia caboverdiana contemporânea compilada pelo estudioso Manuel Ferreira seria amplamente utilizada no ensino secundário caboverdiano e nas universidades de todo o mundo. Deste modo, manteve-se por longo tempo o status quo criado com o surgimento do modernismo teluricista inventado pelos claridosos e aprofundado e alargado pelos sequentes poetas, contistas e ensaístas das várias vagas neo-claridosas e nova-largadistas,  mantendo-se no esquecimento a, bastas vezes grande, poesia lusógrafa cultivada pelos poetas nativistas, republicanos, clássico-românticos e parnasianos anteriores aos claridosos  e seus directos predecessores, antecessores e antepassados.

A mesma situação se manterá com a publicação, em 1977 e 1978, das duas “antologias temáticas de poesia africana de expressão portuguesa”, Na Noite Grávida de Punhais e Canto Armado, de Mário Pinto de Andrade. Estas duas antologias incluem os mais importantes poetas modernistas e teluricistas caboverdianos, à semelhança e no desenvolvimento  de outras antologias organizadas, desde 1958, pelo mesmo autor, em contraste com o caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, organizada por ele e por  Francisco José Tenreiro, e que excluiu os poetas caboverdianos, alegadamente por se tratar no caso caboverdiano de um caso à parte no quadro das colónias africanas integrantes do império colonial português em razão da mestiçagem cultural e biológica de que Cabo Verde foi palco privilegiado, em inequívoca e confessa adesão às teses de diluição de África na cultura caboverdiana propugnadas por Baltasar Lopes da Silva e claramente à revelia da realidade textual de poemas, por exemplo de Aguinaldo Fonseca (cujo livro Linha do Horizonte foi dado à estampa em 1952 pela Casa dos Estudantes do Império), de Amílcar Cabral (por exemplo, dos poemas “Rosa Negra” ou “Naus Insulares”) e, até mesmo, de Jorge Barbosa (de vários poemas de conotação ou com referências raciais negristas caboverdianas (como, por exemplo, “Baile”), e exótico-africanistas (como, por exemplo, “África”) publicados na imprensa portuguesa e na imprensa caboverdiana, mesmo até anteriormente à eclosão do movimento claridoso com a edição do livro de poemas Arquipélago, do mesmo  Jorge Barbosa).

Embora ostentando um teor político-ideológico mais indubitável e inequivocamente contestatário da ordem colonial e das crassas injustiças sociais dela advenientes, a antologia Na Noite Grávida de Punhais, organizada por Mário Pinto de Andrade, é assaz abrangente, se bem que em menor grau que a antologia No Reino de Caliban, de Manuel Ferreira, em razão dos poemas escolhidos em função de temáticas previamente estabelecidas e relativas à infância, à mãe-terra, ao contrato para as roças de S. Tomé e Príncipe, à emigração livre para vários países da África, da Europa e das Américas,  à Mãe-África, etc., etc..

Por seu lado, a antologia/colectânea Canto Armado, do mesmo Mário Pinto de Andrade e integrado primacialmente por poemas de luta e protesto, bastas vezes de teor panfletário, alarga o seu âmbito a letristas de canções de luta, grande parte das vezes escritas em crioulo nos casos de  serem oriundos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau os seus autores (como nos casos de Abílio Duarte e José Carlos Schwarz), mas tem também  o grande mérito de trazer ao conhecimento do grande público alguns poetas de referência na língua caboverdiana, como o Kaoberdiano Dambará do pordemais  influente livro Noti e do poema “Dibatisan pa Anílkar Kabral” ou o Emanuel Braga Tavares dos icónicos poemas “Kabral ka More” e “Bingansa`l Kadabra”.

É o que também ocorre com a antologia bilingue Contra-Vento (isto é, de poemas originalmente escritos em crioulo e traduzidos para o português em grande parte pelo próprio antologizador, o romancista e também poeta e ficcionista bilingue Luís Romano, que, para além de poemas em crioulo dos poetas acima referidos e amplamente reconhecidos e/ou consagrados em livro como poetas lusógrafos, como, por exemplo,  Corsino Fortes,  Arménio Vieira e o próprio  Luís Romano, publica  poemas em crioulo de outros poetas, não integrantes das  antologias de poesia No Reino de Caliban e Canto Armado, como  Viriato Gonçalves, Artur Vieira, Kwame Konde, João Henrique de Oliveira Barros e David Hopffer Almada.

As antologias a que acima se fez referência são as mais importantes no que respeita à poesia caboverdiana modernista e teluricista escrita e/ou produzida no período colonial e no período imediato que se seguiu à independência política de Cabo Verde.

Como já referido, a grande divulgação pública da antologia panorâmica da poesia caboverdiana contemporânea No Reino de Caliban, de Manuel Ferreira, e a sua ampla utilização no ensino em Cabo Verde, tanto secundário como superior, muito contribuiu para que (e enquanto designação da estirpe e da corrente literárias cultivadas por várias gerações de escritores realistas e teluricistas caboverdianos, mesmo se bastas vezes  severamente desafiadas, contrariadas  e postas em causa, nos seus pressupostos político-culturais e estético-ideológicos pela Geração  da Nova Largada, nos anos sessenta, setenta e inícios dos anos oitenta  do século XX) a claridosidade  se construísse, se sedimentasse e se consolidasse como o cânone literário da caboverdianidade, erguendo-se como uma espécie de monocultura literária e identitária (para utilizar parcialmente uma expressão muito cara a José Luís Tavares), em defesa de cuja exclusividade eram rechaçadas quaisquer veleidades, antepassadas, contemporâneas ou posteriores, de desvio ou de diferenciação.

 IV

A RECEPÇÃO DOS POETAS VINDOS DO PERÍODO COLONIAL, A GERAÇÃO LITERÁRIA DE OITENTA DO SÉCULO XX E OS NOVOS PARADIGMAS DE PLURALISMO ESTÉTICO E ESTÉTICO-IDEOLÓGICO DA NOVA POESIA  CABO-VERDIANA DO PERIODO PÓS-COLONIAL

1. A partir dos anos oitenta do século XX assiste-se a uma nítida e audível mudança de paradigma na percepção e na valorização da poesia caboverdiana anterior à poesia claridosa.

Sintomático a esse respeito é o Prefácio que Manuel Ferreira escreve para a sua edição fac-similada da revista Claridade (com a chancela da ALAC (África. Literatura, Arte e Cultura, por ele fundada, dirigida e dinamizada), para assinalar o cinquentenário desse marco fundamental do modernismo literário caboverdiano e intitulado “O Fulgor e a Esperança de uma Nova Idade”.

Para além da canonização literária definitiva dos claridosos e da revista Claridade, a par da sua consagração oficial por parte do poder político nacional-democrático-revolucionário (denominação oficial do regime de partido único, então vigente na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, desde o III Congresso do PAIGC, realizado em 1977, em Bissau, e, depois consagrado na Constituição da República de Cabo Verde, de Setembro de 1980/Fevereiro de 1981), que considera e incensa a publicação da mesma revista como a proclamação da independência literária de Cabo Verde, alçando, assim, os claridosos ao estatuto de precursores e imediatos antecessores deles, os proclamadores da independência política do povo das ilhas, assiste-se à reabilitação literária e cívico-política dos escritores ditos pré-claridosos, descobrindo-se finalmente e desvendando-se que, afinal, eles também abordaram temas candentes com que secularmente se vinha confrontando o povo caboverdiano, como as secas, a emigração (tanto a livre como a forçada), as fomes, o racismo colonial, as prepotências, as arbitrariedades e os abusos das autoridades coloniais, etc., etc..

As condições para tal mudança de paradigma na recepção das obras dos escritores ditos pré-claridosos foram sendo criadas a par e passo com um conhecimento cada vez mais amplo que se ia ganhando da obra lusógrafa desses grandes letrados caboverdianos.

Tal processo iniciou-se com o “achamento” e a publicação por Félix Monteiro na rubrica “Páginas Esquecidas” da revista Raízes, fundada em 1977, na cidade da Praia, e dirigida por Arnaldo França,  de poemas de Guilherme Dantas e Eugénio Tavares e culminaria na publicação já nos anos noventa da obra (quase) completa de Eugénio Tavares, na organização e na prefaciação por Arnaldo França da obra de Guilherme Dantas, na re-edição e prefaciação também  por Arnaldo França das Poesias, de Januário Leite, na prefaciação da obra Montes Nevados, de  Guilherme Ernesto (pseudónimo de Félix Lopes da Silva) por Baltasar Lopes da Silva bem como na re-edição com prefácio de Alfredo Margarido do Folclore Caboverdeano,  de Pedro Cardoso, e na reedição por Manuel Ferreira do romance O Escravo, de José Evaristo de Almeida, considerado o primeiro romance de temática caboverdiana, publicado pela primeira vez em 1856.

Marcante nessa mudança de paradigma é certamente a publicação de 50 Poetas Africanos, de Manuel Ferreira, por incluir a poesia lusógrafa de Eugénio Tavares, José Lopes e Pedro Cardoso, mas ainda excluindo outros importantes poetas ditos pré-claridosos como Guilherme da Cunha Dantas, Januário Leite, Guilherme Ernesto,  Luís Medina de Vasconcelos, João José Nunes, Joaquim Augusto Barreto ou João Mariano, e a sua contra-parte feminina representada pelos estros poéticos e pelos rostos femininos de Gertrudes Ferreira Lima  e Maria Luiza Senna Barcelos.

Desde então, muita coisa mudou e, por vezes, de forma assaz radical. Para além de passarem a ser matéria de vários estudos académicos, como, por exemplo, por parte dos Professores universitários Gabriel Fernandes, Alberto Carvalho ou José Marques Guimarães, a obra dos chamados nativistas ou pré-claridosos tem sido objecto de re-edições, ademais ocupando quase todos eles o seu justo lugar de Patronos da Academia Cabo-Verdiana de Letras e ostentando-se os mais icónicos e célebres de entre eles nas denominações de artérias urbanas, praças, largos, bibliotecas, cátedras, livrarias, escolas secundárias, editoras, restando saber se são devidamente ensinados nas escolas, nesta época em que, a par do inegável florescimento da literatura caboverdiana, também grassa impune a mediocridade com a velocidade e a imediaticidade proporcionadas pelas novos meios de comunicação telemáticos e pelas redes sociais.

Já ninguém acusa os nativistas de falta de autenticidade, procurando antes situar a sua autenticidade no lugar que lhes foi adstrito pela História e pelos meios estéticos e estético-ideológicos de que dispunham na sua época e na literatura-mundo que lhes era e foi acessível no seu tempo.

2. Como também ninguém mais ousa acusar João Vário de inautenticidade em relação às suas matrizes culturais caboverdianas e de que a ilustração paradigmática foi o aproveitamento excludente desse gigantesco vate da literatura caboverdiana pelos corifeus da monocultura identitária da expressão negro greco-latino, a um tempo irónica e fraternalmente  cunhada pelo poeta Corsino Fortes na sua “Carta de Bia d'Ideal” para se referir à poesia de teor ocidentalizante de João Vário, teor esse, aliás, assumido pelo próprio poeta nas suas  produtivas relações com grandes vultos da poesia ocidental, desde Homero, Horácio e  Virgílio a Dante, Quasimodo, Ezra Pound, T. S. Eliot, Saint-Jean Perse, Pablo Neruda, Leopold Sédar Senghor, Aimé Césaire,  entre muitos grandes poetas ocidentais ou de matriz ocidental incorporados e valorados como incontornáveis referências e referidos na sua entrevista a Michel Laban.

Aliás, a percepção e a recepção das obras atribuídas ao nome poético maior de João Manuel Varela constituem ilustrações flagrantes de como as coisas evoluíram em Cabo Verde. Exigente e severo consigo próprio, mandou retirar do mercado a sua primeira obra, Horas sem Came, publicada  em 1958, por considerar que era um livro de má factura escrito por um poeta neófito. Não obstante isso, poemas colhidos no livro foram inseridos nas duas mais importantes antologias históricas de poesia caboverdiana, a de Jaime de Figueiredo e a de Manuel Ferreira.

Autor do maior poema épico de temática caboverdiana e de teor afro-crioulista e pan-africanista até então escrito e publicado em livro, O Primeiro Livro de Notcha ( a que se seguiu no ano 2000 O Segundo Livro de Notcha, integrado num único volume com os dois Livros de Notcha, mantendo-se ainda inédito o anunciado - aliás, pelo próprio autor- O Terceiro Livro de Notcha) foi estranha e completamente ignorado, tal como não podia deixar de ser o seu sósia e duplo João Vário, por Manuel Duarte no seu, senão abrangente, ensaio escrito em 1981 e publicado postumamente em 1984 na revista Raízes e incidente sobre as novas tendências pós-claridosas da poesia caboverdiana.

Sistematicamente acusado por estudiosos, críticos e confrades da sua geração da Nova Largada da literatura caboverdiana de inautenticidade por escrever uma poesia complexa na sua linguagem literária, ademais  assumidamente cosmopolita e andarilha por variegados mundos e de teor ostensivamente ontológico-metafísico, João Vário foi autor de livros que numera e a que atribui sucessivamente o título Exemplo, tais Exemplo Geral - Primeiro Livro, Exemplo Relativo - Segundo Livro, até perfazer nove livros (e que ficaram aquém dos doze Exemplos previamente anunciados por mor do prematuro falecimento, em 2007,  de João Manuel Varela, apesar de ter publicado no caderno Lavra e Oficina da União dos Escritores Angolanos um excerto do que seria Exemplo Cheio, o Livro Doze de Exemplos), publicados entre 1966 e 1998 em volumes avulsos, pouco acessíveis ao grande público em razão de terem sido dados à estampa em edições de autor e escassamente abordados pela crítica, e finalmente reunidos no ano de 2001 num único volume de centenas de páginas.  Nas suas próprias palavras lavradas pela pena do ensaísta Timóteo Tio Tiofe, Vário quis utilizar as armas miraculosas da cultura ocidental, tal como Senghor ou Césaire “para elaborar a partir de coisas nossas, de raízes específicas, uma poesia de interpretação ontológica ou uma poesia caboverdiana de vigor novo”,  para concluir de modo inequívoco e peremptório  a propósito da obra de Vário: “o esforço de Vário, quando escreve, consiste em ter presente, tanto quanto possível, no seu espírito ou na sua poética, toda a poesia (ou as técnicas significativas) da poesia universal”.

Na nossa opinião, tal como acontecera com o nativismo literário, epocalmente superado pela claridosidade, e esta pela Nova Largada), a publicação do primeiro livro de Exemplos, o Exemplo Geral, significaria a invenção de um novo paradigma (ou cânone, se quiserem) num novo período histórico portador de novos e mais exigentes pressupostos nas suas formulações ontológicas e estético-formais, em razão não só da sua temática cosmopolita ou universalista, mas também da sua abordagem metafísica e da sua linguagem complexa (quase opaca).

Segundo o exegeta, seria característico desse período uma poesia da qual “dimana um tom novo” que nada tem a ver com “os problemas específicos de Cabo Verde” e que “começa a pensar Cabo Verde, não mediante interpretações limitadas a dados geopolíticos restritos, circunstanciais ou locais, mas no seio da cadeia de peripécias ontológicas, que fazem o homem universal pelas pulsões gerais, que não pela veracidade transitória, imposta pelas conjunturas, mesmo inóspitas e falazmente definidoras de individualidade ou de identidade” (“Artefactos Poéticos e Arte Poética na Poesia Cabo-Verdiana. Reflexões sobre os Últimos Cinquenta Anos de Poesia Cabo-Verdiana”, Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1984),

Esse novo paradigma, que ele denomina de inefável identidade, teria nele João Vário, supomos nós, o seu grão-mestre, mas teria outros representantes na poesia caboverdiana contemporânea, como Arménio Vieira, Jorge Carlos Fonseca, Pedro Gregório e Vera Duarte, todos constantes da antologia Jogos Florais 1976 (que todavia não constitui para o desassombrado ensaísta um livro de referência para efeito da eventual consideração como necessariamente inovadores de  todos os poetas nele incluídos), e depois presentes  na revistas Raízes, para os casos de Arménio Vieira, Oswaldo Osório e Jorge Carlos Fonseca, e na revista Ponto & Vírgula, para os  casos de Arménio Vieira e Oswaldo Osório, acrescidos do caso de Vera Duarte, com os seus poemas em prosa denominados “Exercícios Poéticos”, publicados na revista sanvicentina e que parecem ter chamado a atenção do conferencista João Manuel Varela. 

Como se pode deduzir da referência bibliográfica à mesma, a afirmação supra-referenciada foi pronunciada no âmbito de uma importante Conferência Internacional sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 1984, na cidade de Paris, ainda as coisas estavam num estado de vegetação quase idêntico àquele que caracterizou os anos setenta do Cabo Verde pós-colonial e cujas novidades mais evidentes foram ilustradas pela revelação, em Maio de 1974, do grande poeta crioulógrafo Emanuel Braga Tavares no “Ariópe” (suplemento cultural do semanário independentista Alerta, onde, aliás, foi publicado o único poema em crioulo conhecido de Oswaldo Osório intitulado “Konde Lienason Tava Mandá na Gente” e se revelou o poeta David Hopffer Almada, com um poema muito conforme aos ventos independentistas que então predominavam em Cabo Verde); pelo majestoso metaforismo redondo e afro-crioulista do Corsino Fortes do livro Pão & Fonema, escrito na sua maior parte em Angola e publicado em Lisboa em 1974, no imediato pós-25 de Abril; pela inovadora épica telúrica e afro-crioulista do Timóteo Tio Tiofe de O Primeiro Livro de Notcha, concluído antes do 25 de Abril de 1974 e publicado pela Gráfica do Mindelo em 1975, e pela poderosa, gerundiva e contestatária poesia de Gabriel Mariano desfraldada com a negra bandeira da fome do Capitão Ambrósio, publicado em livro em  1976, depois de a primeira parte ter sido escrita em 1956 e a segunda parte ter ultimada em 1966, na ilha de Moçambique, para onde tinha sido transferido enquanto funcionário público colonial como represália por uma sua defesa do  ensino do crioulo numa palestra  feita na vila de Assomada na presença de altas entidades coloniais.

A esses relevantes eventos histórico-literários, seguiram-se  como também sumamente marcantes:

i. A poesia intransitiva de Arménio Vieira constante do conjunto “a Noite e a Lira”, com o qual arrecadou o primeiro lugar do Prémio Nacional dos Jogos Florais 1976 e publicado, em 1977,  no livro homónimo e, mais tarde, integrado no seu primeiro livro intitulado Poemas, de 1981; 

ii.  O cantalutismo e o universalismo militante de ampla e perfeccionista burilação da palavra poética de Oswaldo Osório, constante dos seus livros Caboverdeamadamente Construção, Meu Amor (publicado em 1975) e Cântico do Habitante Precedido de Duas Gestas (publicado em 1977);

iii. O surrealismo construtivista e anti-claridoso de Jorge Carlos Fonseca;

iv.  A indagação de teor existencialista e metafísico de Pedro Gregório Lopes e Vasco Martins, a militante vociferação, por vezes de teor panfletário, e a lamentação  choralutista de Vera Duarte e o teluricismo saudosista de João de Deus Lopes da Silva e de Pedro Delgado, todos integrantes da colectânea/ antologia Jogos Florais 12 de Setembro de 1976, publicada em 1977, pelo recém-criado Instituto Cabo-Verdiano do Livro, dirigido pelo jurista  e ensaísta  Manuel Duarte.

Neste contexto, cremos ser importante abrir um pequeno parêntese para realçar (em razão do pluralismo estético e estético-ideológico que representa e simboliza num país recém independente onde vigorava um regime de partido único e um sistema político-social de cariz socializante e, onde, ademais proliferava, de forma desinibida e sem qualquer freio,  uma poesia mensageira de teor ufanista da independência nacional e do encetado processo de reconstrução nacional) o facto de todos os poetas e de todas as diversas estirpes poéticas acima referidos terem integrado a antologia/colectânea Jogos Florais 12 de Setembro de 1976. Parece-nos ainda de suma importância a circunstância de ter sido exactamente a poesia considerada desencantada e ontologicamente pessimista, da autoria de Arménio Vieira, a vencer por unanimidade esse pleito literário, ficando e consagrando-se em primeiro lugar. Tenha-se ademais em conta que essa mesma poesia foi confrontada com as poesias pós-coloniais de reconhecido mérito estético-formal e de teor assumidamente construtivista e  vanguardista de Oswaldo Osório e Jorge Carlos Fonseca, bem assim  com a poesia existencialista de Pedro  Gregório Lopes e Vasco Martins, com o militantismo poético de Vera Duarte e com a poesia de saudosismo telúrico de João de Deus Lopes da Silva e de  Pedro Delgado. Outrossim, não se pode deixar de interpretar tais factos e circunstâncias como indiciários e, até,  demonstrativos  de ter sido o mérito literário o critério mais relevante tido em consideração para a avaliação por parte de um júri notoriamente plural do ponto de vista estético-ideológico, num contexto em que esses primeiros Jogos Florais de Poesia Cabo-Verdiana Pós-colonial foram organizados, patrocinados e editados por uma entidade oficial, ademais de natureza monopolista e  com função preponderante na edição do livro de natureza não político-partidária.

A este propósito e a culminar, cabe ainda fazer  referência ao poema “Ilha a Ilha”, de Ovídio Martins, publicado na revista Raízes, por o mesmo indiciar uma provável reconversão do célebre poeta e militante anti-fascista e anti-colonial a afazeres poéticos novos mais em sintonia com os ditames e as exigências da nova fase pós-colonial, a da reconstrução nacional do novo país, certamente “Devagar é certo. Ilha a ilha, dor a dor, amor a amor”. Relembre-se que a  revista Raízes foi a primeira revista literária e cultural do Cabo Verde soberano e independente, tendo sido fundada em 1977, na cidade da Praia, por um grupo de intelectuais caboverdianos residentes na cidade-capital do país (com excepção de Mário Fonseca, na altura radicado em Dacar e, depois, na Mauritânia). Publicada até ao ano de 1984 e dirigida por Arnaldo França, a revista Raízes contava com um amplo e pluralista elenco de colaboradores nas áreas da poesia, da ficção e do ensaio, integrantes de todas as gerações literárias caboverdianas vivas, as quais se faziam presentes com a diversificada panóplia de correntes estéticas e literárias actuantes na sociedade caboverdiana pós-colonial, acrescidas das páginas esquecidas de Eugénio Tavares e Guilherme da Cunha Dantas, providencialmente organizadas pelo neo-claridoso Félix Monteiro. 

E feche-se o necessário parêntese para se retomar, ainda em tempo oportuno e devido, o fio à grandiosa meada variana:

 Interessante é que, instado pelo jornalista Filipe Correia de Sá, numa entrevista concedida à página “Cultura” do jornal Voz di Povo, a elencar aqueles poetas que considerava serem os melhores poetas caboverdianos de sempre, João Manuel Varela (falando  expressamente pelos seus pseudo-heterónimos todos, designadamente João Vário, Timóteo Tio  Tiofe e G. T. Didial) nomeou  os seguintes: Jorge Barbosa, Osvaldo Alcântara, João Vário, Timóteo Tio Tiofe,  Corsino Fortes e Mário Fonseca. De fora ficaram não só todos os nativistas (impropriamente denominados pré-claridosos, incluindo Eugénio Tavares), diga-se que,salvo erro, na altura ainda sem obra visível e marcante re-editada, mas também Arménio Vieira, para muitos e durante muito tempo considerado o verdadeiramente icónico poeta modernista caboverdiano, a par ou a seguir a João Vário, desses tempos retintamente anti-claridosos, mais do que pós-claridosos.                               

3. Desde então, muitíssima coisa mudou.

3.1. As poéticas de Timóteo Tio Tiofe, Corsino Fortes, Arménio Vieira, Oswaldo Osório, Mário Fonseca e Jorge Carlos Fonseca consolidaram-se como paradigmas fortes e relevantes num panorama literário caboverdiano marcado pelo pluralismo estético, estético-ideológico e linguístico e no qual o teluricismo, o existencialismo e o cosmopolitismo convivem sem problemas de maior, até na obra de um mesmo e  único poeta, transfigurado ou não em um ou mais nomes literários ou pseudo-heterónimos.

Constitui certamente excepção a esse optimista cenário de feição pluralista, a poética de João Vário, que, mesmo que  continuamente enriquecida  com novos Exemplos, publicados em pequenas e quase clandestinas tiragens em edição de autor, permaneceu todavia largamente desconhecida do público caboverdiano, mesmo  o mais informado, continuando a ser vítima predilecta do ostracismo a que vinha sendo sujeita desde os anos sessenta do século XX, o que, como é sabido, teria obrigado João Manuel Varela a escrever pela mão de T. Thio Thiofe (depois grafado Timóteo Tio Tiofe) o livro que a geração nacionalista e nova-largadista da literatura caboverdiana dele esperava, isto é, O Primeiro Livro de Notcha (como, aliás, se  pode ler no Prefácio do autor a este mesmo livro). É, por isso, sintomática a ausência de João Vário e, estranhamente, também do seu sósia/duplo Timóteo Tio Tiofe,  das revistas caboverdianas Raízes e Ponto & Vírgula, comparecendo Timóteo Tio Tiofe na revista África, dirigida por Manuel Ferreira, somente como autor  de uma “Epístola ao meu Irmão António”, designadamente a Primeira, de abordagem e análise crítica do processo de criação, da substância discursiva e das incidências estético-ideológicas e estético-formais d´O Primeiro Livro  de Notcha. Essa mesma situação de ostracização do grande escritor caboverdiano contemporâneo (ou, melhor, do seu nome literário João Vário, que não Timóteo Tio Tiofe, em regra referenciado de modo positivo (por exemplo, pelo crítico e Professor universitário norte-americano  Russel Hamilton, apesar de algumas considerações suas consideradas imprudentes, inadequadas e impertinentes pelo poeta visado), por alegadamente responder de forma plena aos critérios e exigências epocais do teluricismo e do nacionalismo literário nova-largadistas, ademais feito em registo épico) perdurará durante todos os anos setenta e oitenta do século XX, vindo a atenuar-se paulatinamente com os seguintes eventos: a publicação em dois números da revista Ponto&Vírgula de um ensaio do jornalista José Vicente Lopes no qual João Vário/Timóteo Tio Tiofe são considerados como dos principais fautores  da mudança pós-colonial de paradigma na literatura caboverdiana, a par de Arménio Vieira, Oswaldo Osório e Jorge Carlos Fonseca; com a plena aparição na praça pública caboverdiana de G. T. Didial (novo pseudo-heterónimo de João Manuel Varela para a escrita da prosa de ficção e, posteriormente anunciada, de poesia épica pan-africanista) com a  publicação, em 1989, pelo Instituto Cabo-Verdiano do Livro do por demais inovador e instigante romance de teor bíblico e cariz ontológico-metafísico intitulado O Estado Impenitente da Fragilidade  e dos dois volumes dos Contos da Macaronésia, igualmente de teor bíblico e cariz ontológico-metafísico, e, já depois do seu regresso a Cabo Verde, no ano de 1998, com uma grande entrevista, assumida em nome próprio por todos os pseudo-heretónimos literários de João Manuel Varela e concedida ao jornalista angolano Filipe Correia de Sá do semanário Voz di Povo (ressalte-se,neste circunstancialismo, que foi, aliás, neste mesmo jornal que se tinha publicado na sua página cultural, coordenada  na altura pelo poeta Arménio Vieira, alguns textos de João Vário, no âmbito de uma polémica literária visando a obra de João Vário e a poesia mensageira de teor panfletário que então grassava em Cabo Verde, polémica essa protagonizada pelos dois icónicos poetas caboverdianos contemporâneos); com a publicação pela Spleen-Edições do nono volume de Exemplos intitulado Exemplo Coevo; com a fundação por João Manuel Varela da Academia de Estudos de Culturas Comparadas e  da sua revista Anais, todas sediadas na cidade do Mindelo; com a reunião e a publicação em volumes unitários pela editora Pequena Tiragem (criada pelo próprio João Manuel Varela para expressamente se encarregar da edição da sua obra literária) de todos os nove volumes até então publicados de Exemplos e de O Primeiro Livro e o Segundo Livro de Notcha, integrando a versão completa (incluindo o célebre “Discurso V”) de O Primeiro Livro de Notcha, o até então inédito Segundo Livro de Notcha, de que, aliás, tinham sido publicados alguns excertos nas Revistas Fragmentos e Pré-Textos); e, finalmente, com a entrevista concedida a Daniel Spínola, Director da revista Pré-Textos, e a publicação pela mesma revista praiense de vários ensaios e artigos sobre a obra literária multifacetada do autor mindelense no âmbito de uma homenagem póstuma prestada pela Associação de Escritores Cabo-Verdianos (AEC) ao grande e por demais notável homem de letras caboverdiano. Sublinhe-se neste contexto que também foram integradas na edição de O Primeiro Livro e o Segundo Livro de  Notcha, e devidamente assumidas e assinadas por Timóteo Tio Tiofe  algumas das também parcialmente inéditas “Epístolas ao Meu Irmão António” (designadamente a Primeira - respeitante a´ O Primeiro Livro de Notcha-, a Segunda - incidente sobre o livro Pão&Fonema, de Corsino Fortes-, e a Terceira - de incisiva e desassombrada resposta aos críticos das obras de João Vário e de Timóteo Tio Tiofe, tendo a “Primeira Epístola ao meu Irmão António” sido publicada pela revista África, de Manuel Ferreira, mas (des)merecendo a “Segunda Epístola ao meu  Irmão António” a censura da mesma prestigiada revista África bem como da revista Ponto & Vírgula, segundo testemunho e versão do próprio autor  constante da “Terceira Epístola ao Meu Irmão  António”.  

3.2. Uma nova geração fez a sua aparição num quadro geracional de diversidade estética e pluralismo estético-ideológico e cujas feições, a um tempo mirabílicas e miserabílicas, mais ou menos fiéis ao panorama literário  dos anos setenta e oitenta do século XX, ficaram patentes nas revistas Raízes, Ponto & Vírgula (1984-1987), Arquipélago (com sede em Boston, nos Estados Unidos da América), Sopinha de Alfabeto (1986-1987, dois números) e Fragmentos (1987-1998), nos dois  jornais caboverdianos pós-coloniais existentes à época, designadamente o  oficioso semanário Voz di  Povo e o depois oposicionista quinzenário católico Terra Nova, na  colectânea Jogos Florais 12 de Setembro de 1976, em folhas juvenis mimeografadas e, até impressas, como Semente, Podogó, Despertar, Aurora, etc., e por muita poesia mantida inédita até à altura da  realização no Lar da Terra Branca do  Primeiro Encontro Pró-Cultura por iniciativa do Núcleo Pró-Cultura fundado por Kaká Barboza (Carlos Alberto Lopes Barbosa), Nhelas Spencer (Daniel Brito Spencer) e Fátima Brito Monteiro e José Luís Hopffer Almada e, em parte, da publicação, em 1990, na, para os efeitos da presente análise, fundamental   colectânea Mirabilis - De Veias ao Sol (Antologia Panorâmica dos Novíssimos Poetas Cabo-Verdianos). Relembre-se que essa mesma colectánea de poesia dos novíssimos poetas cabo-verdianos foi  organizada  em 1987 por José Luís Hopffer C. Almada, tendo  sido publicada em 1991 pela Editorial Caminho e mandada reimprimir em 1998 pelo Instituto Cabo-Verdiano do Livro (ICL) como  um dos mais importantes projectos culturais produzidos pelo Movimento Pró-Cultura para valer enquanto testemunho e selo da autenticidade dos caminhos da poesia nesses recuados anos oitenta do século XX, de encontros e desencontros, em suma, de comunhão dos sessenta e seis poetas e promessas de poetas dela constantes e  revelados entre o imediato pós-25 de Abril de 1974 na folha “Ariópe” (suplemento literário e cultural do jornal independentista Alerta) até à publicação da revista Fragmentos, cujo primeiro número é datado de Setembro de 1987.  

 Muitos dos integrantes dessa colectânea panorâmica  revelados nos eutusiásticos,  auspiciosos e dinâmicos anos oitenta do século XX e nos quais se depositou, quiçá um tanto ingenuamente, as mais das vezes com bastante convicção, a esperança do desvendamento de novos trilhos na poesia caboverdiana, faleceram fisicamente, assim, interrompendo abruptamente  o seu, quem sabe?, fecundo percurso literário (e de que os exemplos mais flagrantes parecem ser Deodato José da Silva, Kaliostro Fidalgo, Eurico Barros e Alírio Kinóru) e/ou adiaram-se (como parecem ser os casos, esperremos ue temporários,  de Marino Verdeano (pseudónimo literário de Aristides Raimundo Lima), Eurico Correia Monteiro, Jos+é Vicente Lopes, Orlando Rodrigues,  Mito ou Naiz d´Itanta), morreram e/ou nem sequer nasceram verdadeiramente como poetas. E são estes últimos que parecem construir a face miserabílica dessa colectânea que, talvez, de forma demasiado eufórica e por demais  imprudente, quis reunir num único livro todos os poetas e/ou aprendizes de poetas portadores de um mínimo de qualidade na factura poética num contexto da existência de um jovem e pujante movimento cultural que se propôs como  um dos seus principais objectivos a sedimentação  e o encorajamento do pluralismo estético e da diversidade estético-ideológica e temática na literatura e nas artes caboverdianas.

 Anote-se ademais que todos os antologizados foram revelados no período que vai de 1974 a 1987, isto é, depois da publicação da mais importante antologia panorâmica da poesia modernista caboverdiana revelada no período colonial que é o  volume I de No Reino de Caliban, de Manuel Ferreira.  Assim, alguns dos poetas seleccionados para a colectânea panorâmica Mirabilis - De Veias ao Sol  (Antologia dos Novíssimos Poetas Cabo-Verdianos) constaram igualmente  do volume integrante dos poetas premiados ou agraciados com menções honrosas nos Jogos Florais 12 de Setembro de 1976,  d´A Noite Grávida de Punhais e do Canto Armado, de Mário de Andrade, e de Contra-Vento, de Luís Romano, para além da juvenil colectânea Canto Liberto, da JAAC-CV (Juventude  Africana Amílcar Cabral-Cabo Verde), de  adolescentinos e incipientes aprendizes de poetas. Admite-se que tal acto possa ter sido uma clara expressão de atrevimento ou ousadia geracional, por um lado, e, por outro lado, um inequívoco, ousado e  muito audível clamor contra a crise editorial e o consequente grande buraco da não-edição então reinantes no país e característicos dessa época, localizada, como já referido,  na segunda metade dos anos oitenta do século XX desses tempos pós-coloniais.

Outros, pelo contrário, e são eles verdadeiramente a face mirabílica da última grande (do ponto de vista da sua extensão) antologia/colectânea panorâmica  de poesia caboverdiana, comprovaram-se ab initio, como genuinamente inovadores, dos pontos de vista estético-formal e temático,  uma parte deles perfazendo  e constituindo (-se)  na actualidade como vozes absolutamente incontornáveis e imprescindíveis da poesia caboverdiana contemporânea. Inventores de novas linguagens, grande parte deles cultores tanto da língua portuguesa como da língua caboverdiana e, até, eventualmente, de outros idiomas, como línguas de labor literário, senhores de modos vários de expressão, desde a coloquial até à mais elevada e solene em língua portuguesa, artesãos no versilibrismo e/ou na arte do soneto, escavadores da História em longos poemas narrativos ou em sequências poemáticas cerzidas pela unidade temática da obra, líricos entristecidos ou mordazes indagadores das incongruências do quotidiano e do destino e dos seus tecelões, esses poetas permitem com as suas obras que seja fácil o estabelecimento de pontes entre as várias gerações de poetas caboverdianos sem que a afirmação de um paradigma ou cânone estético e/ou estético-ideológico signifique necessariamente a morte, a ocultação ou a ostracização de outros anteriores paradigmas e cânones, mas implique a necessária afirmação na História e na nossa contemporaneidade de várias estirpes poéticas e literárias. É o que, aliás, fez oportunamente sobressair o Manifesto do Primeiro Encontro de Escritores Cabo-Verdianos, do já  longínquo ano de 1992, publicado  na revista Pré-Textos da AEC (Associação  de Escritores Cabo-Verdianos), que tive a honra de redigir para ser a síntese das discussões e conclusões do mesmo Encontro, realizado na sequência e no contexto das mudanças políticas ocorridas em 1990/1991/1992. 

3.3. Muitas outras antologias de poesia caboverdiana, de maior ou menor dimensão, têm sido organizadas no Brasil, em Portugal, em França, nos Estados Unidos da América e em Cabo Verde (neste último caso, com intuitos assumidamente selectivos da melhor poesia caboverdiana escrita durante roda a história literária caboverdiana e/ou no seu período pós-colonial, outros preferindo,  a contrario ou em contra-mão, assumir-se como postulantes da afirmação de novos poetas do ponto de vista geracional, outros ainda cingindo-se a poetas e escritores de géneros definidos, oriundos de determinadas ilhas ou de determinados lugares de uma ilha ou, ainda, caracterizando-se como circunscritos a restritos círculos de confrades e amigos da/na poesia).

Em algumas delas divisa-se e perdura  nítida a preocupação de preservação da qualidade na selecção  dos textos a par da divulgação dessa mesma poesia, em especial nos meios universitários, como são os casos das antologias organizadas por Simone Caputo Gomes, Ricardo Riso ou Rui Guilherme Silva.

Nas antologias organizadas por esses estudiosos da literatura  caboverdiana,  o olhar parece ser assaz lato e abrangente, se bem que, por vezes, marcado pela contemporaneidade, outras vezes pela inter-geracionalidade.

3.4. Creio que já é tempo e, por isso, urge a organização (de preferência pela Academia Cabo-Verdiana de Letras em eventual parceria com  o Instituto da Biblioteca Nacional, com as Universidades e as muitas editoras caboverdianas privadas actualmente existentes no país e na diáspora) de uma antologia de poesia caboverdiana em língua  caboverdiana  bem como de duas novas antologias temáticas da poesia caboverdiana, desta feita com propósitos verdadeiramente antológicos no sentido da consagração dos melhores exemplos dos vários paradigmas ou cânones que no passado marcaram e no presente vêm marcando  a história literária caboverdiana:

i. Uma primeira abrangente dessa mesma poesia dos primórdios até à obtenção da independência nacional de Cabo Verde (independentemente de os poemas referentes a esse período, obviamente colonial, terem sido dados a conhecer e publicados até  essa memorável data);

ii. Outra, a segunda, abrangente da poesia caboverdiana da independência nacional até à actualidade.

Imprescindível parece também ser a organização (aliás, em grande parte já feita) e a edição  de duas antologias - uma de poesia, outra de narrativa ficcional em prosa - referentes à emigração e às diásporas caboverdianas com o necessário e indispensável patrocínio do Ministério das Comunidades e, eventualmente, do Ministério da Cultura e das Indústrias Culturais de Cabo Verde.

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