OITAVAS E DERRADEIRAS ANOTAÇÕES PARA A HONRA E A GLÓRIA DE ALGUNS VERDADEIROS E AUTÊNTICOS MORTOS IMORTAIS NOSSOS, DO POVO DAS ILHAS E DIÁSPORAS, COM ENLEVADA, SE BEM QUE SINTETIZADA, REMEMORAÇÃO DE OUTROS MAIÚSCULOS (RE) CRIADORES E (RE) INVENTORES DO NOSSO MUNDO CABOVERDIANO, AINDA, E PARA TODO O SEMPRE, DO POVO DAS ILHAS E DIÁSPORAS
SECÇÃO SEGUNDA
KAOBERDIANO DAMBARÁ, O POETA FUNDADOR DA POESIA CABOVERDIANA DA AFROCRIOULITUDE (TAMBÉM DENOMINADA POESIA CABOVERDIANA DA NEGRITUDE CRIOULA)
1. São os princípios culturalistas e políticos pan-africanistas que são incorporados em Noti, o livro de poemas em crioulo de Kaoberdiano Dambará (pseudónimo literário de Felisberto Vieira Lopes), sem data de edição, mas provavelmente publicado em 1964, pelo Departamento de Informação e Propaganda do Comité Central do PAIGC, certamente para servir os objectivos políticos anticoloniais desse movimento de libertação (bi)nacional, como efectivamente ocorreu no terreno da luta política clandestina em Cabo Verde, segundo depoimento de Pedro Martins (inserto no seu livro Testemunho de um Combatente, Ilhéu Editora, Mindelo, 1990, reedição em 1998 pelo Centro Cultural Português da Praia), que considera o mesmo livro Noti a principal arma de mobilização político-cultural entre os estudantes liceais e os camponeses do interior da ilha de Santiago.
O próprio nome literário Kaoberdiano Dambará é portador de um grande simbolismo. De ressonância yoruba ou de um outro (negro-) africano, esse nome pode também literalmente significar “Kaoberdiano, da-m bara”, isto é, “Caboverdiano, dá--me a vara” (no sentido de varapau ou do icónico manduco, de Pedro Cardoso) para certamente desferir golpes fulminantes e demolidores ao inimigo colonialista, aos seus sequazes, apaniguados e lacaios.
2. Dois poemas constantes do célebre livro de capa preta ajudam, quiçá, a explicar o título da obra, escrito contrastivamente a branco. Trata-se primeiramente do poema “Noti´l nha pobo” que, depois de descrever um mundo negro caboverdiano em plena ebulição, termina com a seguinte estrofe: “Noti-trabadj`ê paz sem sonhos;/´m gosta di bó/ bó ê sukuro sima mi,/diabo é luz ki satadjano;/no tem ki brandi´l ko fero´l nos maxim” (tradução aproximada: “Noite-trabalho e paz sem sonhos/Eu gosto de ti/tu és escuro como eu; /Diabólica é a luz que nos espartilhou/despedaçou;/ Temos que destroçá-la com a lâmina/o ferro da nossa catana”).
Trata-se ainda do poema “”Orassan” di Noti”, no qual a noite é equiparada à mãe, às suas faculdades genesíacas, nutrientes e protectoras, sendo, por isso, considerada como a fonte primacial da negritude, como se pode induzir da sua última estrofe:“Noti, oh Mai,/kubrim ko bo assa,/kontam bo sagredo,/stila na nha bida/sufrimento di nha guentis,/dam aima, forsa, koraxi negro!” (tradução aproximada: “Noite, oh Mãe/cobre-me com a tua asa/conta-me o teu segredo/instila na minha vida/o sofrimento das minhas gentes/dá-me alma, força, coragem negras”).
O carácter rebelde e combativo dessa negritude total sufragada por Kaoberdiano Dambará perpassa o conjunto do poema, cujo teor integral merece ser amplamente conhecido: “Noti, oh Mai/kubrim ko bo assa di Ternidadi; /noti sombra´l nha guentis, /kontam bo sagredo,/sagredo de cinco seklo,/sagredo kê dor.//Kontam d´ódju´l branko/ta faíska d´alampri,/di si voz di strubada,/kontam di si xikoti,/di si korenti pa rasta,/di si gema di bronzi.//Na tripitchi´l branko/nôs armun pilado, /sangui intchi baril;/boi é preto destemedo/ta tora kanga,//.Noti, oh Mai,/kubrim ko bo assa,/kontam bo sagredo,/ stila na nha bida/sufrimento di nha guentis,/dam aima, forsa, koraxi negro!” (tradução aproximada: “Noite, oh Mãe/cobre-me com a tua asa de Eternidade/noite sombra-refúgio das nossas gentes, /conta-me o teu segredo/segredo de cinco séculos/segredo que é dor./Conta-me dos olhos do branco/faiscando como relâmpago,/da sua voz de trovão,/conta-me do seu chicote,/da suas correntes a arrastar-se,/das suas algemas de bronze// Nos trapiches/engenhos,/os nossos irmãos foram triturados/ e o seu sangue encheu os barris/vasilhames, / o boi é o negro destemido/a rodar na almanjarra//Noite, oh Mãe/cobre-me com a tua asa/conta-me o teu segredo/instila na minha vida/o sofrimento das minhas gentes/dá-me alma, força, coragem negras”).
3. Em Noti que, segundo escreve Timóteo Tio Tiofe (um dos três nomes literários de João Manuel Varela) na “Segunda Epístola ao meu irmão António - a propósito de Pão e Fonema” (in O Primeiro e O Segundo Livro de Notcha, Edições Pequena Tiragem, Mindelo, 2001), representa “a primeira tentativa em livro de falar de Cabo Verde numa perspectiva africana”, é afirmativamente reabilitado o Badio (termo primitivamente com conotações pejorativas e origem semântica no termo português vadio (vagabundo), utilizado outrora, em tempos colonial-escravocratas, para designar primeiramente os escravos fujões da clausura escravocrata e os pretos-forros de todas as ilhas, refugiados em quilombos (merecendo especial destaque o Quilombo dos Valentes de Julangue, em Santa Catarina) e em outros lugares recônditos, bastas vezes, declivosos e montanhosos, e, por isso, inacessíveis ou de difícil acesso aos senhores esclavagistas, e, depois, em tempos coloniais pós-escravocratas e semifeudais, para denominar os camponeses e categorias sociais afins, maioritariamente negros ou (castanho-) escuros do interior rural da Ilha de Santiago, tanto por originários das outras ilhas de Cabo Verde, como pelos citadinos da ilha de Santiago e por que, sobretudo a partir da eclosão da Revolução do 25 de Abril de 1974 e da conquista da independência nacional de Cabo Verde, é conhecido o Santiaguense, isto é, qualquer natural, originário e/ou habitante da ilha de Santiago, seja ele urbano, rural ou rurbano, sendo ele classificado como Badio de Fora ou Badio da Praia, da Assomada, do Tarrafal, de São Domingos, da Calheta de São Miguel ou de qualquer outro lugar urbano ou semiurbano da grande ilha, estando ele radicado na diáspora como emigrante ou como descendente de caboverdianos, posto que falante nativo da variante-matriz da língua caboverdiana (e/ou, por vezes, adoptivo, posto que de longa duração e criado nessa mesma variante) e portador (ainda que, quando caboverdiano-descendente, em hibridismo com as culturas dominantes da sua pátria natal de acolhimento) da cultura caboverdiana regional característica dos centros urbanos e/ou do interior rural da ilha de Santiago, a ilha caboverdiana tida tradicionalmente como sendo de maioria negra e considerada o berço da nação crioula caboverdiana).
A reabilitação histórico-literária do Badio processa-se por via da sua referenciação enquanto principal depositário da História e da insubmissão social, política e cultural do homem caboverdiano, sobretudo rural da ilha de Santiago, enquanto “Preto’l Kaoberdi”, entendido este tanto na sua acepção socio-racial de trabalhador pobre em contraposição às classes possidentes abastadas, em especial aos latifundiários e terra-tenentes, como no seu entendimento antropológico-cultural, enquanto homem africano e/ou afrodescendente diferente do branco português por mor da sua génese afro-latina predominantemente negra e da sua insularização histórica e cultural e da rápida e irreversível crioulização delas resultantes.
Anote-se neste exacto e concreto contexto que, mesmo na época colonial, e mesmo durante o período colonial-escravocrata, como referido por vários estudiosos, os integrantes das classes abastadas eram denominados, independentemente da sua coloração racial ou fenotípica, “gentes brancas” ou “brancos da terra”, tais os “brancos-pretos” ou “pretos-brancos” identificados pela historiadora Iva Cabral, e representados no poema “Forsa´l Distino” do livro Noti por “Nho Fifi”, enquanto arquétipo do grande proprietário rural que erige o fatalismo e o conformismo com um destino imposto e inultrapassável como um espantalho contra a revolta e a insubmissão de quem não tinha nada a perder. Leia-se na íntegra o poema “Forsa´l Distino”: “Na triatu´l Mundo,/ta mandado, ta obadissedo;/ na triatu´l Mundo, /spada ta labanta, oredja ta nbaxa; /na triatu´l Mundo,/boisso ta intchi, sangui ta korê.//Na triatu´l Mundo,/ ta mandado, ta obadissedo;/ Na triatu´l Mundo,/tud´ê forsa´l Distino;/na triatu´l Mundo,/garafa ka ta djuga ku pedra;/Distino ê spantadjo nho Fifi/pa spanta santchu´l Nora,/pa spanta korbo Kaiumbra/pês ka kumê kana nho Fifi./ Na triatu´l Mundo,/tud´ ê forsa´l spantadjo;// Na triatu´l Mundo, /spantadjo ê pa santcho, pa korbo, tchintchiroti/pês ka kumê midjo nho Fifi;/ Na triatu´l Mundo,/Sô nho Fifi podê tem kana, podê tem midjo://Santcho, korbo, tchintchiroti!/ Na triatu´l Mundo,/tud´ê forsa´l Distino, /tud´ê forsa´l spantadjo; Nhôs da ko nho Fifi na tchom,/spantadjo ta kaba, Distino ta kaba!”.
4. Tal como ocorre no poema “Sodadi´l nha tera”, são também exaltadas no conjunto do livro Noti as lendas populares e as manifestações culturais afro-crioulas, como o batuco e a tabanca; exumados os heróis míticos, como a célebre Koraxi Mendi ou Bombolom di Melo, hipocorísticos de Ana da Veiga, a líder da revolta de 1910 das camponesas e dos camponeses de Ribeirão Manuel e da Achada Falcão contra os latifundiários e as autoridades coloniais; consagrados os mártires contemporâneos africanos, como Patrice Lumumba nos poemas “Lumumba” e “Pa guentis ki ta sufrê”, e, finalmente, no poema “Ora dja tchiga” é conclamado o Negro, o Filho de África, a alevantar-se, a “ambular” e a escutar o grito do povo, a fincar os pés no chão, a pegar em armas e a brandir o ferro sobre os montes de Cabo Verde para a libertação sua e a libertação africana do continente seu, sempre identificado de forma abrangente e colectivamente como nos Tera, como se pode ler nos poemas “Bandera´l negro (Black Star Over Africa)” e no prosopoema “Pa Mund´Intero” que, como já referido, faz as vezes de texto introdutório do livro Noti.
São ademais denunciados o saque, a exploração e a opressão coloniais, como nos poemas “Branko”, “Orasan di noti”, “Pa guentis ki ta sufrê”, “Purdam” ou “Negro na djustissa”, denunciados os maus-tratos infligidos aos serviçais caboverdianos das roças de São Tomé e Príncipe, como no poema “Noti´l San Tomé”, aventada a repressão política policial, como no poema “´M Sunha”, apontados o desprezo e a perseguição das manifestações culturais de feição mais nitidamente afro-crioula, como no poema “Posia” (“Fomi ko dispresso kubri nôs Tera,/purfeta, kantadera bira ien,/batuko na terero para,/na strada, pobo kai podri na baleta.//Na nôs odjo ago kaba,/nôs korassan bira pedra./Selensio, fidju´l tera:/Kaoberdi á ta padisssê, pueta dja tchora”) e dissecados os preconceitos culturais de matriz supremacista colonial, como no paradigmático poema “”Leviandod” Kaoberdiano”: “Violom tundum, tundum,/Kiki sentód ta spiniká,/notas, posia, tchoro,- patetisa!/Kiki “sentód ta spiniká” morna, koladera, “leviandod” kaoberdiano; /stranho, passageiro/kussa ki bo ka ntendê é lebiandadi.//Violon tundum, tundum, /voz d´aima Kiki,/voz di nha aima,/voz di nôs aima kaoberdiano.//Violon tundum, tundum//tchoro, fomi, ndjustissa, /dor kim ka podê fla,/violon di nôs peto, kórda di nôs aima! //Kada som é um dor,/kada nota é um sufrimento, /kada musga é um tristesa/na violon di nos peto.”
São igualmente exaltadas a cultura e as criaturas caboverdianas na sua diversidade arquipelágica e social, tal como no poema anterior, acima transcrito, e nos poemas “Batuko”, “Noti´l nha pobo” e “Fasta korason doxi...” (“Tilinha, ´m ka krebo tcheu:/´m tem ki massa spinho/´m tem ki saita pedregal/- ´m tem kaminho londji p´anda.//, Tilinha, abó ê brabensi morabi, /bo pé ê fino/bo corpo ê manso/abó ê kodessinho na pé di bu mai//Ami ê sombra´l pobo/ami ê kalderon ta ferbê “odi”,/aima dun guentis ki morê ko raiba/ta pidi Djustissa, Djustissa di sangui.// Bó ê kiriola mimossa,/bo korassan ka konxê “odi”,/bo odjo ê spedjo di puressa,/bo aima doxi ka tem maidadi.//Tilinha, ´m ka krebo tcheu: dexam fasta di bo pé;/´m ka podê djobe´u dento d´odjo:/´M tem kaminho londji pam anda.”.
5. Característica essencial e marcante do livro Noti é o sistemático e estruturante estabelecimento em grande parte dos poemas nele insertos de uma forte e quase inultrapassável contraposição socio-racial entre o negro e o branco, entendido na ressemantizada acepção socio-racial acima referida, mas, e, sobretudo e, em especial, entre o negro caboverdiano (isto é, o escuro habitante das ilhas, incluindo o negro-mestiçado, maioritário na ilha de Santiago) e o branco estrangeiro, espoliador, opressor e explorador, em suma o branco colonialista, tal como caracterizado no já aludido poema “Branko”: “Bo nassê na fêra,/bo vagabúndia na bo cidadi,/bo pirâtia na nôs mar.//Nôs ká bo fla mê di bò, /nôs soba bo fassê skrabo,/nôs usso bo fla brutessa.//Si no fla ma nôs tera ê di nôs,//bo ta fassê trossa: Mundo ê di bó; /si no fla berdadi, bo ta flano dodo.,//Ladron di mundo, pirata´l mar,/nôs Tera ka ta suporta´u,/bo manha ê tcheu: ê ka ta sukundi (…) Pirataria, maidadis ki bo fassê,/dja ravoga skontra bó,/pê kuspiu londji´l nôs tera. (…) No ka krê nada ko bó;/ amissadi bo fassê nteressi,/amor bo fassê nogosi;//Bo tra diamanti di nôs rio,/bo leba oro di nôs tera,/bo tomano nôs kumida.//Bo rabida nôs tchom bo limpal; /bo massa sinsa´l nos guentis grandi,/ bo da nôs rego tissom.// Bo pono na guerra armun ku armun,/bo fasseno nega nos mai,/bo pô odi ku malbadessa na nôs tera. (…) No ka ta kunfia na bó/nem kru, nem kussiado,/nem xuxo, nem labado.// (…) Nha Mai, kussê kês fassebo?/-Nha sangui á ta ferbê, /nha sangui é stória, ê Berdadi!”.
Neste contexto de antagónica e insolúvel contraposição entre o branco colonialista e o negro (o africano), o mulato é definido, no poema homónimo entre aspas (“Mulato”), como “filho amaldiçoado” que nasceu “do fogo da tentação, de um sonho pecaminoso na noite da carne, do batuco repicado de África” (“ sonhu´l pekado na noti´l karni,/batuko rapikado d´Áfrika/ ki na luminari´l tentason/nassê fidjo di mau kosta”). A sua redenção verificar-se-ia mediante o seu suicídio com o seu total embrenhamento na luta para que a paz pudesse florescer da sua sepultura (“Oh manhan, oh dor di nassê,/disfassê na sangui´l guera,/briga ti bu morê:/Paz ta labanta di bo koba”.
Anote-se neste contexto que o branco colonialista é também amiudadas vezes denominado mondrongo, mais usual no barlavento caboverdiano e, em especial, na ilha de São Vicente, onde Felisberto Vieira Lopes completou os estudos liceais, mas nunca denominado tuga, termo totalmente ausente do livro Noti, mesmo se mais usual na ilha de Santiago e no sotavento caboverdiano, sobretudo entre os militantes clandestinos da luta pela independência de Cabo Verde e no período pós-25 de Abril de 1974, a par do termo dego, mais corrente no mesmo livro, designadamente nos poemas “Hino” (“Tristi ê kês armunsis/ ki djunta ko branko dego (…)”) e “Pretu´l Kaoberdi” (“´M ka mestê porta d´arguem/´m ka roga bokado´l nunguem; /sumola dego ê morê di fomi;/ ´m krê homi sério, mudjer di kunsensia.// Mi na pulero, pintom na kuero, /porko na tchikero, kabra na sekero, /homi na si distrito, mudjer na si ká; /degos ka massam…: ká ê di meu (…)”). Dego como sinónimo pois do branco estrangeiro explorador: “Forti branko ê daguma”, como se diz no poema “Sodadi´l nha Tera”, de plena identificação com as figuras-tipo mais humildes e resilientes do povo caboverdiano, as suas alfaias culturais e os seus afazeres quotidianos, tais Kunoti Preta e Rossinha e as suas estórias tradicionais, de revoltas e da Guerra de Ribeirão Manuel, nho Puxim e o seu código de vida, Xalino e a sua simboa, nha Maninha e as suas cantigas, nha Dunda e o seu batuko, nha Dundinha e o seu torno, Bernaili, camponês pobre de Santiago, de quem se diz: “Bernaili, pastor di baka,/boi kangado, grogo na lambiki,/nxada krussado, tudja na kantu´l ká/koba dimingu, planta sugunda,/ simia tersa, labra kuarta,/monda, ramonda, trismondia./Forti tchuba sta pa branko!//Bernaili, pastor di baka,/tchuba ngrato, tera raganhado,/simia, ramonda, ramonda, trismonda,/ano entra, ano sai; ka dususpera/Kosta d´Ago ê bo sta nganado,/fomi na bariga, sinto pertado,/morê ntera na labada//Bernaili, pretu´l Kaoberdii,/ka ruspeta burmedjo ki fari branko;/branko pôl na purom, rikissê,/bendel, kumpra altimova;/pôl laba tchom, kunpra topeti; /stretal si sinto, djondja di sel./Badiu, nhundi bo sta?”.
6. Verdadeira inventariação das atribulações do Cabo Verde colonial corporizado, exemplificado e ilustrado na ilha de Santiago (“Badio, undi bu sta?”, parece ecoar ainda até aos dias do hoje em dia nos nossos ouvidos, nos nossos cérebros, nos nossos corações e nas nossas almas), Noti constitui o primeiro livro de poesia publicado integralmente no crioulo fundo (castiço, basilectal) de Santiago (se nos abstrairmos do pequeno folheto satírico em verso rimado Bejo Caro, de Juvenal Cabral (Minerva de Cabo Verde, Praia, 1949) e o marco mais importante da fundação de uma poesia de assumida e abrangente negritude crioula e de integral, total e inteira assunção da africanidade de Cabo Verde (incluindo da dimensão africana da cultura do seu povo) e do seu correlativo destino político umbilicalmente ligado ao nosso continente, a mãe-África. Na verdade, Noti aprofunda e assume na totalidade das suas consequências político-culturais e soberanistas as problemáticas da assunção da herança (negro)africana, incluindo nas relações inter-raciais, enquanto co-matriz predominante na cultura islenha caboverdiana, dantes abordadas na prosa de ficção por José Evaristo de Almeida no romance O Escravo, na poesia por Jorge Barbosa (por exemplo, nos poemas “Relato da Nau”, “Pretinha dos Picos” e “África”), Osvaldo Alcântara (por exemplo, nos poemas “Terra Roxa de Massa-Pé” e “Poema para Jorge Amado”), António Nunes (por exemplo, no poema “Ritmo de Pilão”), Aguinaldo Fonseca (por exemplo, no poema “Herança”) e Amílcar Cabral (por exemplo, no poema “Rosa Negra”) e na ensaística por Amílcar Cabral (“Breves Apontamentos sobre a Poesia Cabo-Verdiana”), Gabriel Mariano (“Caboverdeanidade ou Negritude?” e “Cabo Verde: O Papel da Mestiçagem na Formação da sua Sociedade”) e Manuel Duarte em “Cabo-Verdianidade e Africanidade”, “Cabo Verde e a Revolução Africana” (assinado por A. Punói) e Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana (aqui sob impulso inicial de Onésimo Silveira, que, durante anos e até muito recentemente, assumiu a autoria singular do célebre texto anti-claridoso e anti-barlaventista).
Exemplar dessa abordagem político-cultural radical e de total ruptura com os paradigmas estético-ideológicos então vigentes é o poema “Juramento” :”Noti sukuro, mistério na floresta,/mar ta ronka tromento, feras ta guemê,/batuko londji ta tremê tchom: galo ka kanta inda//Nês noti sukuro di mistério/ki aima nôs guentis ta papia ko nôs/nha mai ´m bem jura na bo ragás//´M krê morê na bo pé/probi, sukuro, negro,/pa nh´ aima russussita na floresta´l tromento.//Arbis ta rintcha dususpero,/tabanka dja sai di kanto, batuko dja sta más perto;//Tamboro dja kudi ko más forsa,/stribilim dja tremê tchom,/ galo dja konko assa;//sê pam sirbi branko, ma ´m krê morê/probi, sukuro, negro - na bo pé:/nh`aima ta russussita na floresta.//Nha mai dexam mustura nha sangui/ku tromento, ko batuko, ko stribilim:/aima nos guentis dja labanta di koba!”.
Paradigmático desse compromisso político-cultural é o poema “Batuko”: “Nha flam, nha Dunda, kussé kê batuko/-Nha fidjo, batuko ‘m ca sê ê kussê:/no nassê no atchal/no ta more no ta dexal;/ê londji sima Céu,/fundo sima mar,/rixo sima rotcha:/ê ussu’l tera, sabi nôs gentis./Móssias na terero,/torno finkado, tchabeta rapikado,/korpo alem ta bai/´m ta bai: aima ki tchomam;/ntera dúzia dúzia na labada,/mortadjado cem cem na pedra sistensia,/bendedo mil mil na Sul-a-Abaxo,/kemado na laba di “burkan”:/korpo ta matado, aima ta fika:/aima ê forsa di batuko;/na butuperiu’l fomi,/na sabi’l teremoti,/na sodadi’l fidjo londgi,/ batuko ê nos aima;/xinti’l, nha fidjo,/kenhê ki kreno, krê batuko./Batuko ê nos aima”.
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