Depois de 50 anos de independência, o que o Povo precisa não são promessas ocas, mas barcos com condições dignas, camarotes com camas, WCs privativos e um mínimo de respeito pela sua humanidade onde, se alguém tiver de vomitar, seja apenas porque se esqueceu do comprimido milagreiro, e não por degradação pura. O Povo merece mais. Não merece vir enfiado num barco manco, aconchegado apenas pelo saquinho de plástico colorido entregue à entrada.
Há uns tempos disseram-me que só ganharia pleno respeito da minha gente no dia em que conhecesse as ilhas do arquipélago ou pelo menos a maioria e sentisse as “febres da terra”; no dia em que visitasse os bairros mais humildes, visse as condições em que vive a grande maioria e acompanhasse de perto as dificuldades do seu dia-a-dia. Só então poderia assumir-me como Activista.
Confesso que não foi fácil sair do copo de leite UHT para o leite em pó. Entrar num dos lares de um “quartim de cama”, onde muitos dividem espaço, olhar para as paredes nuas, o chão de cimento, as parcas mobílias, o terço pendurado na parede ou ao pescoço, num acto de devoção (e respeito a NhorDeus pa tem o que ptá a cada dia), foi um choque de realidade. Entrei num mundo tão distante quanto Marte, mas que afinal mora logo ali.
Decidi fazer pela primeira vez, a viagem de barco, ida e volta, no trajecto São Vicente - São Nicolau.
Dias antes da partida, o navio “Liberdade” (nome que soa mais a piada de mau gosto), sofreu (mais) uma avaria, obrigando o remendado “D. Tututa” a assegurar a ligação entre as ilhas.
Preparei-me como manda a prudência: meia hora antes tomei religiosamente o comprimido anti-enjoo, para garantir que não haveria espectáculo gratuito da minha parte. Ainda assim, a viagem foi penosa. Logo à entrada, um dos tripulantes distribuiu, com toda a solenidade, sacos de plástico colorido onde se lê “Kanu Disperdiça, nu Reutiliza”. Um autêntico hino à ironia ecológica.
Embora tenha escapado ao enjoo, ouvir outros passageiros a vomitarem as entranhas, o choro das crianças assustadas com o mar agitado e as vagas que chicoteavam o navio sem misericórdia, foi um espectáculo digno de um prémio de resistência.
O cheiro a vómito perfumava todo o salão e deixava um rasto que se entranhava nas narinas como veneno lento. Se a ondulação não te derruba, o aroma pestilento trata do serviço.
Foi então que me lembrei do saco de plástico que acomodara cuidadosamente na cadeira da frente: o que é que se pretende “reutilizar” depois de se despejar a alma e o estômago?
Na frente do barco, passageiros improvisavam camarotes com esteiras no chão, e ficam “rumado móda saco”. Sim, porque só existem lugares sentados. Há passageiros que aguentam mais de 16 horas desta agonia e castigo auditivo e olfactivo, com os vómitos a sobreporem-se à música ambiente.
De repente, a ideia da esteira no chão deixou de parecer tão absurda.
Para mim, que lido com problemas de saúde a nível muscular e articular, quatro horas já são um teste aos limites.
Durante a viagem, só temi uma coisa: a necessidade urgente de ir ao WC. Não estaria preparada para enfrentar mais uma descida aos infernos.
Entretanto, no poleiro, galos e gaviões garantem, sem corar de vergonha, que as viagens inter-ilhas nunca estiveram melhores. Justificam atrasos e avarias com argumentos tão frágeis que quase temos pena, e aspirantes ao poleiro prometem viagens mais baratas tentando convencer-nos que o problema não é a falta de condições, mas o preço do bilhete.
Depois de 50 anos de independência, o que o Povo precisa não são promessas ocas, mas barcos com condições dignas, camarotes com camas, WCs privativos e um mínimo de respeito pela sua humanidade onde, se alguém tiver de vomitar, seja apenas porque se esqueceu do comprimido milagreiro, e não por degradação pura.
O Povo merece mais. Não merece vir enfiado num barco manco, aconchegado apenas pelo saquinho de plástico colorido entregue à entrada.
Ao chegar ao porto do Tarrafal em Saninclau, a recepção é calorosa… mas não pelas razões certas: não há um posto de turismo, nem uma placa, nem um folheto a indicar aos recém-chegados que chegaram à ilha berço da Morna Sodade e da intelectualidade do arquipélago. Um turista estrangeiro que não tenha feito o trabalho de casa perde toda a riqueza paisagística, a história vibrante de Saninclau e a ternura do seu povo, de coração doce e cheio de Morabeza.
A ilha está perigosamente perto do paraíso. Tanto que poderia ser feito… e, no entanto, continua condenada ao isolamento. E nós, tal como os do poleiro, cada vez mais mestres na arte de desperdiçar, vamos “reutilizando” desculpas para explicar o inexplicável.
Comentários
Casimiro centeio, 29 de Abr de 2025
Pouca diferença entre os seres humanos "empilhados" nos " negreiros" e os seres humanos " amontoados nos " cruzes" de cabotagem .
A grande diferença é a distância temporal que separa os Séculos: XIX,XX e XXI ! Mas "SOMOS DIFERENTES, FAZEMOS DIFERENTE! Eis a real diferença que não fez diferença nenhuma ! Vivemos pior!
Abraço, Any Delegado. Visita- nos sempre !
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