Revoltante!
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Revoltante!

Escrevo este texto com profunda angústia. Acredite que estou mesmo triste e decepcionado com o meu país de 44 anos de existência. Porque, tal como o leitor, poderei ser a vítima seguinte do sistema nacional de Sáude ou da falta dele. E me moveu a dissertar sobre este sector por causa de um nome: Sheron Alina Silva Lopes, um anjo de 4 anos de idade, que acaba de falecer, sem chance de tratamento adequado e atempado, por pura insensibilidade politico-administrativa do Estado e do Governo que o gere.

A menina é de São Vicente e estava há meses à espera de autorização para tratamento no exterior devido a um tumor maligno que lhe atacou o intestino e estava a espalhar-se por todo o corpo. O processo para determinar a sua evacuação esteve, ao que se sabe, pendente entre o Ministério da Saúde e o Instituto Nacional de Previdência Social desde então, apesar da urgência que o caso merecia. Nem os apelos nas redes sociais convenceram as autoridades nacionais de Saúde a agilizar a ida da pequena Sharon a Portugal.

A mãe desesperou-se, enquanto assistia ao sofrimento da filha. O país inteiro comoveu-se com o drama da menina e quis ajudar. Fora de tempo, a criança acabou por não resistir à grandeza da enfermidade e à pequenez da Nação onde nasceu. Uma vergonha! Como acreditar nas pessoas que fazem propaganda de mais e melhor saúde, se, na prática, deixa morrer o futuro de Cabo Verde. Como não se revoltar, quando, via TV, assitimos passeios opulentos de governantes por este país afora e ao estrangeiro às custas dos nossos impostos e no entanto não há dinheiro para salvar uma criança? Como ficar mudo se as politicas económicas postas em prática, a ponto de já haver “dinheiro que nunca mais acaba”, não servem para garantir aos cabo-verdianos educação e Saúde básica?

Dou-vos mais três exemplos recentes que espelham como o sector da Saúde está enfermo, nada a ver com a propaganda governativa, nada a ver com as promessas sociais das forças politicas do país. Há coisa de duas semanas um homem sexagenário de São Domingos dirigiu-se ao hospital local com metade da face dormente e inchada. Receitaram-lhe um medicamento para dores de dente e foi mandado de volta a casa. Os familiares não acreditaram nessa estória – o paciente nem conseguia falar – e levaram o homem à Praia onde lhe foi diagnosticado princípio de Acidente Vascular Cerebral (AVC), tendo permanecido internado no Hospital Agostinho Neto durante vários dias. Isso que aconteceu é crime de negligência médica que, por pouco, não ceifou a vida do senhor.

Esta semana regressou de um hospital de Dakar, Senegal, uma jovem a quem fora diagnosticada no HAN um cancro, ao que diziam, no útero e inclusive esteve a ser medicada nesse sentido, enquanto aguentava as dores angustiantes. Sucede que, quando fez os exames no Senegal, descobriram que a menina, afinal, não tinha cancro nenhum, as dores eram de restos de sangue que os médicos do HAN deixaram ficar por baixo da sua bexiga após uma intervenção cirúrgica anterior a que fora submetida nesse hospital central. Ora, neste caso, o prazer de voltar a viver normalmente revolta pelo facto de o diagnóstico feito na Praia ter causado traumas psicológicos na jovem, durante o tratamento cancerígeno a que fora sujeito. Nota: ela saiu com ajuda de amigos, familiares e da associação SafendeTudoHora, sem qualquer intervenção do Estado.

O caso do senhor Olímpio Varela já é público: um cidadão octogenário, com doença coronária grave e que necessita de tratamento fora, não consegue sair às custas do INPS, porque a Junta, com base em pareceres de médicos não cardiologistas, que derrubaram o parecer de cardiologistas que recomendaram a sua saída para cuidados especializados em Portugal. Varela contou a sua estória neste jornal digital (título condizente, “A forma subtil de matar sem ser criminalizado") e trouxe a nu que tipo de peripécias os doentes em Cabo Verde são obrigados a passar para poderem ter acesso à saúde. Ele já está em Lisboa às custas do seu bolso, porque não pode e nem quer esperar pela Junta Médica.

E Sheron? Esta menina de 4 anos, não tinha dinheiro para suportar essa despesa. Esperou, esperou, esperou até morrer. Quantos outros cabo-verdianos estão nessa situação? Quantos padecem em Portugal, abandonados pelo INPS, a sobreviver em condições desumanas? Quantos estão a mendigar pela vida, enquanto o Estado não assume o seu papel de garantir saúde à população? Aliás, não é por acaso, que os próprios profissionais de Saúde vêm reivindicando melhores condições de trabalho, como de resto, aconteceu com os enfermeiros que ameaçaram entrar em greve no ano passado.

No tempo do anterior Governo, também aconteceram casos similares, porque, ao fim e ao cabo, é o sistema de saúde que não tem tido melhor atenção dos governantes. Enquanto o PAICV e o MpD discutem paridade do género, regionalização, mais benesses para os titulares de cargos políticos este país continuará com futuro hipotecado. Precisamente porque as prioridades estão invertidas.

Enfim, dante disso tudo, ainda querem que fiquemos – nós, o povo – calados a ver a caravana passar. Porque convém. Convém manter os cabo-verdianos de olhos fechados, tapados, furados, a troco do Poder – o de passear em carros de alta cilindrada, paquerar ‘membras’ e acenar com crescimento burguês que não chega à plebe.

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine

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