...antes de qualquer alarido por uma justiça universal e celestial, é preciso compreender o Grande Jogo — e o que está em jogo aqui não é apenas uma revisão histórica, mas a tomada de consciência de que o mundo nunca foi neutro. E tampouco será, enquanto continuarmos jogando com as peças dos outros, no tabuleiro dos outros, segundo as regras que eles escrevem — e reescrevem — conforme seus interesses. Europeus, norte-americanos, russos, chineses, árabes e, agora, até indianos: todos com seus dados lançados sobre o mesmo tabuleiro.
Se lançarmos um olhar atento sobre os últimos dois milênios da história humana — evitando, claro, a tentação de escrever uma enciclopédia — veremos com nitidez os momentos cruciais em que os impérios travaram seus grandes jogos de poder. São eventos espalhados no tempo e no espaço, mas que seguem um padrão inquietantemente familiar. Nos grandes jogos imperiais, os métodos se repetem e, lamentavelmente — sobretudo nos últimos 500 anos — os mesmos territórios continuam servindo de palco. Ou melhor: de tabuleiro.
Por que fazer esse exercício? Simples: para lembrar aos meus contemporâneos, especialmente os do continente africano, que nesse Grande Jogo — sofisticado, brutal e frequentemente cínico — a África, enquanto coletivo histórico, político e cultural, tem sido reiteradamente relegada ao papel de peão.
E não por falta de história, cultura ou civilizações. Pelo contrário: temos tudo isso em abundância. O que nos falta, no entanto, é o elemento que define os principais jogadores: poder militar e tecnológico com capacidade de dissuasão. Em outras palavras, não temos — nem de longe — a pujança necessária para impor nossa vontade, nem mesmo em nosso próprio continente. E, muito menos ainda, força de barganha no comércio internacional, desenhado para manter os fortes lucrando e os fracos obedecendo.
O exemplo está diante de nossos olhos: os EUA, a Rússia, a China, a França e Inglaterra possuem forças militares e tecnológica suficientes para impor sua visão de mundo. Já a África, desprovida desse capital de dissuasão, é levada a aceitar — seja por pressão direta ou por sedução institucional — um pacote completo de valores, normas e instituições produzidos nos centros de poder global.
Importamos modelos de governança que não nos servem, conceitos filosóficos que não dialogam com nossas realidades, ciências construídas em outras latitudes, culturas empacotadas para consumo externo — e, para completar o combo, aceitamos regras de comércio que garantem o lucro de quem já ganha há quinhentos anos.
Portanto, antes de qualquer alarido por uma justiça universal e celestial, é preciso compreender o Grande Jogo — e o que está em jogo aqui não é apenas uma revisão histórica, mas a tomada de consciência de que o mundo nunca foi neutro. E tampouco será, enquanto continuarmos jogando com as peças dos outros, no tabuleiro dos outros, segundo as regras que eles escrevem — e reescrevem — conforme seus interesses. Europeus, norte-americanos, russos, chineses, árabes e, agora, até indianos: todos com seus dados lançados sobre o mesmo tabuleiro.
E para que o leitor contemporâneo tenha uma ideia básica do que é esse Grande Jogo, segue um breve resumo (resumidíssimo mesmo) de dois mil anos de disputas imperiais:
Momentos históricos-chave das disputas e domínios imperiais:
§ GUERRAS PÚNICAS (264 a.C. – 146 a.C.): as Guerras Púnicas, entre romanos e cartagineses pelo controle do Mediterrâneo. Resultado: Cartago foi apagada do mapa, e Roma consolidou sua hegemonia no mundo ocidental — que só viria a cair mil anos depois, com a queda do Império Romano do Oriente, em 1453.
§ QUEDA DE CONSTANTINOPLA (1453): os otomanos conquistam a capital bizantina com canhões que faziam tremer muralhas milenares. Surge, então, um novo império islâmico, rival das potências cristãs europeias. A tecnologia militar otomana dava o tom do novo equilíbrio.
§ SURGIMENTO DOS IMPÉRIOS MARÍTIMOS EUROPEUS (1500–1509): com os otomanos travando o fluxo comercial entre Europa e Ásia, Portugal abre o caminho com a conquista de Ceuta e as grandes navegações. Em 1509, a Batalha de Diu sela a primeira grande vitória naval europeia sobre árabes e otomanos. Começa ali a ascensão europeia como força global.
§ DOMÍNIO EUROPEU (1509 – século XX): os ingleses assumem a dianteira com um truque genial: chegam à Ásia disfarçados de comerciantes, com a Companhia Britânica das Índias Orientais — e saem de lá como império. Tomam a Índia e, no caminho, dopam a China com ópio. Resultado: tratados "comerciais" desiguais. A África é dividida em conferências, o Japão é “convidado” a abrir seus portos sob o canhão americano (1853) e a América Latina já estava de joelhos há séculos. Jogo limpo? Só no discurso.
§ CONFLITOS INTERNOS EUROPEUS: mesmo mandando no mundo, os europeus nunca conseguiram ficar em paz entre si. A Inglaterra, dona dos mares, fazia questão de sabotar qualquer vizinho que ameaçasse crescer demais. Napoleão tentou? Levou chumbo. Cai a França, surge a Alemanha unificada — e a pancadaria volta com força.
§ INDUSTRIALIZAÇÃO DA GUERRA E DECLÍNIO EUROPEU (1914–1945):
§ Duas Guerras Mundiais e mais de 100 milhões de mortos depois, a Europa entrega o bastão. O jogo passa às mãos de dois novos gigantes: Estados Unidos e União Soviética. A pancadaria continua, só muda o estilo: Guerra Fria, espionagem, sabotagem, sanções e, claro, muita “cooperação internacional”.
Talvez a pergunta mais urgente hoje não seja. "qual é o nosso papel neste jogo?", mas por que ainda estamos jogando o jogo dos outros, com regras que nos desfavorecem sistematicamente.
No próximo artigo, mergulharemos no jogo dentro do continente africano, onde as peças se movem entre interesses locais, alianças internacionais e muita, muita confusão interna. Porque, se aqui fora somos peões, lá dentro andamos jogando contra nós mesmos.
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