Crise de Legitimidade Institucional em Cabo Verde: Reflexos da Sondagem Afrobarómetro
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Crise de Legitimidade Institucional em Cabo Verde: Reflexos da Sondagem Afrobarómetro

Cabo Verde encontra-se em um momento crítico de sua história democrática, em que as decisões tomadas hoje terão implicações de longo prazo para o futuro do país. Os dados do Afrobarómetro devem ser interpretados como um sinal de alerta, exigindo ações imediatas e corajosas para reconstruir a confiança pública e reverter o declínio institucional. Ignorar esses sinais seria mais do que uma falha política – seria um ato de negligência histórica que comprometeria o potencial de uma nação cujo maior recurso é, e sempre será, o seu povo.

As sondagens desempenham um papel crucial na aferição das dinâmicas sociopolíticas de qualquer nação, funcionando como instrumentos indispensáveis para compreender as percepções, expectativas e frustrações dos cidadãos. Contudo, a utilização dessas ferramentas em Cabo Verde tem frequentemente esbarrado em uma miopia governamental que se manifesta na incapacidade de interpretar os dados como um "wake-up call" para reformular políticas públicas. Pelo contrário, a tendência predominante entre os líderes políticos é descredibilizar as instituições responsáveis pelas sondagens, atribuindo a elas motivações políticas em vez de encarar as evidências como reflexos genuínos da realidade.

A recente sondagem Afrobarómetro, realizada entre agosto e setembro de 2024, expõe de forma contundente a deterioração da confiança pública nas instituições do Estado, revelando não apenas uma crise de legitimidade, mas também uma falência estrutural no modelo de governança. A resistência em reconhecer a gravidade dos dados representa um sintoma alarmante de uma liderança desconectada, que insiste em priorizar interesses partidários em detrimento do bem-estar coletivo.

Erosão da Confiança nas Instituições: Um Alerta Incontornável

Os dados revelados pelo Afrobarómetro indicam um declínio dramático nos índices de confiança em instituições fundamentais. O Presidente da República, o Primeiro-Ministro, a Assembleia Nacional e até mesmo as Forças Armadas – tradicionalmente vistas como um bastião de estabilidade – viram sua credibilidade corroer-se substancialmente. Este fenômeno, longe de ser episódico, reflete uma tendência sistêmica de alienação entre governantes e governados, exacerbada por decisões políticas erráticas e pela percepção generalizada de ineficiência.

Por exemplo, enquanto em 2022 as Forças Armadas gozavam de 74% de confiança pública, este índice despencou para 54% em 2024. Esse abismo estatístico não se deve a episódios isolados, mas a uma confluência de fatores que incluem a má gestão de crises e o envolvimento de figuras públicas em escândalos que minam a integridade institucional.

Esse descontentamento é ainda mais evidente nas respostas sobre as relações entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro. O fato de 46% dos inquiridos responsabilizarem ambos os líderes pelos conflitos institucionais ressalta a percepção de que os interesses pessoais e partidários estão sendo colocados acima da estabilidade do país.

Declínio Democrático: A Falácia da "Boa Governança"

Cabo Verde, frequentemente elogiado como modelo de democracia em África, encontra-se em uma encruzilhada paradigmática. Enquanto o discurso oficial celebra os progressos no fortalecimento das instituições, a realidade descrita pelos cidadãos pinta um quadro muito menos lisonjeiro.

Os índices de insatisfação com o governo, sobretudo em áreas como economia, saúde e educação, refletem uma desconexão entre as narrativas políticas e as experiências concretas da população. Para além da incapacidade de mitigar os impactos da crise económica global, o governo tem falhado em assegurar que os benefícios do crescimento econômico alcancem os segmentos mais vulneráveis da sociedade.

Esse cenário evidencia o que os cientistas políticos descrevem como "democracy fatigue" – um esgotamento democrático causado pela sensação de que os mecanismos de participação e representação não conduzem a mudanças tangíveis.

A "Accountability Deficit" e Seus Efeitos Sistêmicos

Um dos problemas centrais destacados pelo Afrobarómetro é a ausência de accountability no sistema político cabo-verdiano. Este “déficit de responsabilização” não apenas perpetua práticas de má gestão, mas também incentiva a opacidade e a corrupção nas esferas públicas.

A Assembleia Nacional, por exemplo, é vista por muitos como um órgão inoperante, incapaz de fiscalizar o executivo de maneira efetiva.  A inação diante de denúncias de corrupção ou o tratamento leniente de escândalos públicos são sintomas de um sistema que prioriza a autopreservação política em detrimento do progresso coletivo. Como resultado, cresce a apatia política, especialmente entre os jovens, que se sentem alienados de um sistema incapaz de atender às suas aspirações.

O Impacto Socioeconômico da Má Governança

As implicações da má governança vão além da esfera política, repercutindo de forma severa nos indicadores sociais e econômicos. Cabo Verde continua a enfrentar desafios estruturais que incluem altos índices de desemprego, desigualdade de género e deficiências no acesso a serviços essenciais como saúde e educação. A crise econômica, agravada e falta planeamento estratégico, empurrou milhares de cabo-verdianos para condições de vida precárias. A incapacidade de implementar políticas públicas eficazes amplifica a dependência de remessas dos emigrantes, reforçando uma economia que, em vez de ser resiliente, torna-se cada vez mais vulnerável.

As Lições do Afrobarómetro: Para Onde Ir?

Os resultados da sondagem deveriam servir como um “catalyst for change”, um impulso para a revisão dos paradigmas de governança em Cabo Verde. No entanto, historicamente, as lideranças políticas têm mostrado uma tendência preocupante de ignorar ou minimizar a importância dessas evidências, preferindo adotar uma postura defensiva em vez de reformista.

Se há uma lição clara a ser extraída do Afrobarómetro, é a de que a resiliência democrática de Cabo Verde está diretamente ligada à capacidade de suas lideranças em ouvir, refletir e agir com responsabilidade. Isso exige um compromisso renovado com a transparência, a justiça social e a inclusão.

Propostas para a Reconstrução Institucional

1. Reformas Profundas nas Estruturas Políticas: É imperativo reavaliar os mecanismos de checks and balances para garantir maior equilíbrio entre os poderes.

2. Fortalecimento da Participação Cidadã: A criação de fóruns consultivos regionais pode fomentar o diálogo entre governantes e comunidades locais.

3. Investimentos Estratégicos em Áreas Sociais: Saúde, educação e habitação devem ser tratados como prioridades absolutas, com alocação de recursos baseada em critérios de equidade e impacto.

4. Combate Efetivo à Corrupção: Implementar uma agência independente com poderes investigativos robustos é essencial para restaurar a confiança pública.

Resumindo

Cabo Verde encontra-se em um momento crítico de sua história democrática, em que as decisões tomadas hoje terão implicações de longo prazo para o futuro do país. Os dados do Afrobarómetro devem ser interpretados como um sinal de alerta, exigindo ações imediatas e corajosas para reconstruir a confiança pública e reverter o declínio institucional.

Ignorar esses sinais seria mais do que uma falha política – seria um ato de negligência histórica que comprometeria o potencial de uma nação cujo maior recurso é, e sempre será, o seu povo.

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