No dia 29 de Maio, do ano da graça de 2020, a ilustríssima Câmara Municipal da Praia tomou a vesânica decisão de atacar cidadãos indefesos e demoliu sem hesitar, 75 barracas no bairro Alto da Glória.[1] Aparentemente, em plena pandemia as autoridades burguesas realizaram o diagnóstico da situação proletária neste bairro, e lhes prescreveram como remédio, o desabrigo à base da ponta do fuzil.
Nem o choro das crianças, nem o desespero das mães ao verem os seus poucos pertences atirados ao chão comoveram os donos da capital, pois se consideram certos neste quesito.
No entanto, o que os senhores filisteus aceitam como acertos, são erros. E o que os senhores admitem, a contragosto, como sendo erros, são crimes.
Para que não haja sombras de dúvidas, neste artigo não temos o propósito de defender a existência de barracas com baixas condições de habitabilidade para os trabalhadores, mas de demonstrarmos à classe trabalhadora cabo-verdiana que as atrocidades da qual ela é vítima e a pauperização que a cerca, são obras exclusivas da ordem burguesa, portanto cabe somente a classe trabalhadora que tem em mãos o futuro, derrubar o jugo que a oprime.
Posto isso, voltemos ao assunto.
Assim como a morabeza parece nunca atingir os proletários do arquipélago, a decência parece nunca tocar os donos do poder. O motivo das cruzadas empregadas contra os proletários são sempre revestidas dos mais nobres ideais, segundo os ideólogos da burguesia.
Arrasa-se dezenas de famílias, pelo bem da arquitetura citadina. A imagem urbanística da cidade ganha o seu esplendor às custas de trabalhadores ao relento. O ordenamento do território só é atingido com excelência quando o proletário é desalojado com brutalidade. Só fulminando as habitações clandestinas dos trabalhadores, que o problema de organização espacial urbana estará resolvida. É com este silogismo oco, que a burguesia consegue dormir tranquila, e a repressão ganha um ar de tradição.
O grito de socorro do povo é sufocado pela ordem burguesa, pois o direito à cidade, é um direito de poucos.
A miséria no campo causada pela centralização de todos os recurso na cidade, provoca o êxodo massivo para a metrópole. Devido à grande concentração de terras e a acumulação de capital efetuada pela classe burguesa, os proletários cabo-verdianos são cada vez mais segregados à margem da cidade. É possível entrar e sair da cidade da Praia sem sequer conhecer a miséria nos bairros clandestinos, tal é o fruto da alienação e do apartheid social que temos.
Todavia, se algum dia passos curiosos se atraírem para o recôndito da cidade, irão verificar que de fato, tal miséria existe.
É confortável, para os ideólogos da burguesia, para os seus sicofantas & Cia, não ver e nem mesmo se ater nesta realidade, para não ferir os seus nervos sensíveis ou acordar a sua consciência sonolenta, caso contrário, poderiam perder seus apetites pelo lucro desenfreado, que é a gênese de tal realidade.
Dada a precarização do emprego e a superexploração do trabalho, com trabalhadores sendo remunerados muito abaixo do seu valor, torna-se impossível nestas condições, para qualquer indivíduo que tenha um estômago para alimentar, viver em casas de aluguel. Por conseguinte, se alojar em barracas com parcas condições de habitabilidade jamais foi uma preferência dos moradores do Alto da Glória. Quando temos, não uma, não duas casas, mas bairros inteiros construídos, significa que essa foi a única escolha que o Estado burguês lhes deixou, senão, perecer à míngua.
Estes homens e estas mulheres suportam uma vida de vicissitudes, vivem em casas que ocupam o espaço de um cômodo, e nesse cômodo tudo é precioso. Cada prego que segura uma porta, cada panela velha sem cabo, cada esteira que serve de cama, cada roupa remendada constitui o seu tesouro.
Não há saneamento, o teto, permite a água entrar na chuva, há muita escuridão à noite, e as velas aumentam o risco de incêndio, por isso, arranja-se eletricidade como se pode.
É assim que a outra metade vive.
Nestes bairros com todos os requisitos para embrutecer o ser humano mais polido, é onde se vê uma solidariedade sem par. Os vizinhos se ajudam sempre que podem e a há uma forte fraternidade presente que não é vista em nenhum bairro burguês da capital, apesar de todo estigma social de serem bairros mal vistos. Estes homens e estas mulheres vivem sob a oscilação de dois sentimentos: o medo e a esperança. Exauridos pelo trabalho, arrancam ainda forças dos seus corpos, para nas poucas horas livres que gozam, melhorar as suas casas e as suas ruas com cada material que conseguem, pois sonham fazer um dia, de suas barracas inabitáveis o seu lar.
Houve também uma época da História em que pessoas exploradas realizavam as construções de suas igrejas e suas casas no seu tempo de lazer, essa época teve o nome de escravidão.
Entretanto, aos olhos da legislação e do Estado burguês estes homens e estas mulheres, são vistos como criminosos e são tratados como tais.
Quando os agentes da Câmara Municipal chegaram, os moradores colocaram tecidos brancos nas barracas para simbolizar paz. Estes homens e estas mulheres rotulados de serem desprovidos de cultura, ousaram falar de paz para a civilizada Câmara Municipal da Praia. A resposta da Câmara foi lapidar, usou a força para destruir as suas casas. Há uma lição a se aprender aqui.
O poder despoticamente exercido pela Câmara Municipal da Praia, evidenciam o quão medievais são os nossos pseudo-representantes.
Depois de dilapidar as barracas, a dita Câmara disse estar “aberta a negociações”. Sem qualquer decoro, coerência ou empatia, a cada bofetada que este Estado burguês nos dá, compelem-nos sem escrúpulos depois de tudo, que ofereçamos a outra face. Todo infortúnio da classe trabalhadora cabo-verdiana é cozinhado e temperado “na pratu fundu sem futuru” [2] pela farisaica promessa que dias melhores virão. Como se tais dias viessem simplesmente pela força do calendário, através da perene marcha do tempo enquanto ceteris paribus (todo o resto se mantém inalterado).
A Câmara está errada, entre outras razões, por não atacar o problema real que engendra as condições para as criações de casas clandestinas. Ela pode bater palmas todas as vezes que se dizimarem uma habitação clandestina, mas nunca será o seu último aplauso, pois resolve o problema na consequência e nunca na sua causa.
A alta concentração de terrenos nas mãos de uma minoria burguesa que especula os preços das construções imobiliárias e os assentos no parlamento são o manancial do problema. A burguesia se enriquece comprando terras e o que permite a compra de vários terrenos, e portanto, acumulação de terras é o excedente que a burguesia retira da classe trabalhadora com a superexploração do trabalho. Este é o ponto fulcral do litígio.
No entanto, sempre que este ponto mostra-se minimamente saliente, a Câmara se atordoa, arranja todas as escusas ao seu alcance, diz non so più cosa son, cosa faccio (não sei mais o que sou, ou o que faço),[3] e dirigi novamente as suas armas para os pobres.
Assim sendo, nas eleições que se avizinham, quem falar em distribuição igualitária de renda ou em diminuir a desigualdade social sem falar na redistribuição de terras, estará enganado, ou pior, estará enganando. Nesta geração, promessas estéreis não ficarão impunes, “djes fazi discursu bonitu, ma eh li na txom ki nu sta”.[4]
Como não somos murmúrios que ressoam pelas costas, nem soluços durante tiranias, diremos abertamente: Os proletários cabo-verdianos são mais do que números para as vossas estatísticas, são mais do que dados para o vosso Big Data[5]. Demonstraremos que somos sobretudo, vozes vigorantes que vibram sem titubear, e à Cesár, nada devemos.
Quanto mais derrubam as casas dos nossos, mais edificamos o nosso espírito de resistência. Quanto mais construírem atalhos para ocultar a fonte do problema, mais demolidora será a nossa crítica. Porque todo proletário cabo-verdiano sabe que “ku forsa na brasu, konsciencia di mi, eh mi ki trabadja. Terra i poder eh pa mi”.[6]
Maio, 2020
[1] http://www.tcv.cv/index.php?paginas=47&id_cod=91314
[2] Versos da música Porton di nos ilha. Música gravada pelo grupo Os Tubarões e escrita pelo diplomata e revolucionário Renato Cardoso (1951 - 1989)
[3] Versos da ópera Bodas de Figaro, composta pelo músico austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756 - 1791)
[4] Versos da música Raboita di Rubon Manel, composto pelo exímio músico Orlando Pantera (1967 - 2001)
[5] É a área de conhecimento que estuda como tratar, analisar e obter informações a partir de um conjunto de dados grandes demais para serem analisados por sistemas tradicionais.
[6] Letras da música Alto Cutelo. Música gravada pela banda Os Tubarões e escrita pelo diplomata e revolucionário Renato Cardoso.
Comentários