A liberdade quebra-se contra a miséria
Colunista

A liberdade quebra-se contra a miséria

  1. a) Sociedades anacrónicas e desfasadas

Quando nos deparamos com a Liberdade que não chega a ser livre é preocupante, revoltante e deprimente!

Democracia e Liberdade nunca poderão existir quando os fossos sociais são característicos da formação e constituição das sociedades, em pleno século XXI. Quando a estratificação é vincada e a forte discriminação socioeconómica é factual, flagrante, onde constatamos uma pobreza extrema, ausência de saneamento básico público, falta de habitação com mínimo de condições de habitabilidade, dificuldades incomensuráveis de se obter alimento – comida para as refeições -, ausência de Educação e de Ensino, coloca sempre em causa a existência saudável e solidária entre as pessoas. Enquanto essas sociedades anacrónicas, desfasadas da evolução do espírito mundial atual que coexistem com as sociedades mais desenvolvidas, não libertarem-se do fracionamento radical e cortante, da oposição entre o pauperismo mortífero e a oligarquia económico-financeira destrutiva, nunca poderão conseguir praticar a democracia e a liberdade. Poder-se-á, eventualmente, falar-se delas, discuti-las no plano puramente teorético.

Como dizia Moses Hess (1812-1875), num texto publicado na Gazeta Renana de 11 de Setembro de 1842: “ Nas instituições republicanas da nossa época, a liberdade quebra-se contra a miséria que impede uma fracção considerável da nossa sociedade de desenvolver livremente as suas forças. (…) Não é apenas a aristocracia feudal e o absolutismo que estão em contradição com o espírito da época; é toda a organização, ou melhor, a desorganização da nossa vida social que exige uma reforma”.

Verifica-se, pois, que existe naquelas sociedades desfasadas deste século XXI ditadura de classe – a classe governante que detém o aparelho do Estado imiscuído no privado - camuflada pela democracia das palavras, do preciosismo, da pomposidade dos termos linguísticos e até técnicos, reclamando inclusivamente a existência da Constituição de feição democrática. A classe que domina o aparelho do Estado, a classe dominante que mantém sempre a governação nas suas mãos – mesmo que diferentemente formulados os indivíduos, são estes, contudo, formados de modo igual na mesma classe – protege-se, escudando-se na lei, por ela própria pensada, preparada, elaborada e aplicada.

"Julgo que não podemos nem devemos exigir das sociedades e dos indivíduos todas as empreitadas do mundo, que realizem todos a mesma riqueza, a mesma produtividade, as mesmas soluções. A democracia e a liberdade não se compadecem apenas com a igualdade formal, exigem e permitem, sim, sermos todos iguais no respeito pelas nossas desigualdades intrínsecas. Sendo nós, humanos, desiguais por natureza, não tendo nós todos as mesmas capacidades, potencialidades e características idiossincráticas, pretende-se pois transformar as sociedades no sentido de igualar as condições externas de acesso à vida, as condições que proporcionam o crescimento individual e social do ser humano, da pessoa.

Sob a capa de ser geral e abstrata, na verdade a lei circunscreve-se - não se aplica a um universo humano muito considerável, ou aplica-se excluindo este mesmo universo - a um determinado núcleo de pessoas. Ela não existe para fazer valer os direitos, os deveres e os interesses legítimos das pessoas de toda uma sociedade. Não serve, nem faz valer efetivamente para todos os indivíduos concretamente considerados. Não serve, nem faz valer para toda uma sociedade em geral e abstratamente considerada. A lei nessas sociedades serve para regular as relações dos escolhidos privilegiados, beneficiando os interesses da classe reinante e dos nichos - satélites de acólitos – que circundam o Poder, hierarquicamente e hierarquizados, como castas sociais que se vão desenrolando, aumentando sucessivamente o número de indivíduos abalroados, brotando demarcadas, afastadas, isoladas e identificáveis até ao excomungado social – ausentes de intercomunicação, interação -, na analógica relação feudal, desde o “senhor” ao servo da gleba. Talvez possamos também encontrar algumas semelhanças entre a democracia grega – que permitia a escravatura e a estratificação vincada e discriminatória da sociedade – e essas sociedades anacrónicas que vão ainda perdurando no século XXI, que correm para o abismo da penúria ostracizada, contra o espírito contemporâneo que vai enraizando, crescendo e expandindo nas sociedades mais desenvolvidas.

Julgo que não podemos nem devemos exigir das sociedades e dos indivíduos todas as empreitadas do mundo, que realizem todos a mesma riqueza, a mesma produtividade, as mesmas soluções. A democracia e a liberdade não se compadecem apenas com a igualdade formal, exigem e permitem, sim, sermos todos iguais no respeito pelas nossas desigualdades intrínsecas. Sendo nós, humanos, desiguais por natureza, não tendo nós todos as mesmas capacidades, potencialidades e características idiossincráticas, pretende-se pois transformar as sociedades no sentido de igualar as condições externas de acesso à vida, as condições que proporcionam o crescimento individual e social do ser humano, da pessoa. Este sentido da vida em sociedade obriga-nos assim a dar possibilidades iguais de acesso às condições materiais básicas de existência – alimentação, habitação -, acesso à Educação e ao Ensino, acesso ao trabalho e ao emprego, acesso à iniciativa privada e ao empreendedorismo social e económico a todos os jovens, mulheres e homens, eliminando, desta feita, os privilégios que são atribuídos expressa, por via indireta, tácita ou camufladamente à classe dominante do aparelho do Estado, que estende inevitavelmente os seus instrumentos de persuasão, meios de ação, indivíduos e mecanismos de funcionamento aos interesses privados económico e financeiros presentes, interna e externamente. A promiscuidade entre ambas as esferas pública e privada é prática comum e regular, impedindo, por esta via, o desenvolvimento normal e salutar da sociedade onde a classe governante se insere, uma vez que a preocupação fundamental desta classe é a manutenção do regime, do “status quo” estabelecido e que não pode ser alterado.

Numa sociedade livre e democrática não pode haver uma classe a dominar o aparelho do Estado. É e será sempre uma ditadura, seja ela mascarada ou maquilhada por constituições democráticas, seja ela expressa!

Os governos existem para governar para a sociedade, para o povo. Eles não existem para a perpetuação de oligarquias! Esses governos enfermam de um vício na formação e formulação da vontade que é a inexistência de solidarismo social e económico que os tornam muito característicos, muito singulares, com especificidades próprias. Uma dessas singularidades, dentre várias, como por exemplo a falta de liberdade da comunicação social, a falta de informação ou informação deturpada, é a ausência de qualquer explicação por parte dos governantes e de demonstrações palpáveis e racionais sobre as suas condutas governativas, ditas políticas de governação. Não esclarecem, não explicam, nem elucidam o modo de proceder das suas ações, levando por esta via à ignorância do povo. Sempre no máximo secretismo, ausência de discussões públicas e de informação pertinente e necessária a toda uma sociedade. Especialmente, nunca tem-se o conhecimento sobre o que gastam, como, onde, quando e quanto. As contas públicas apenas o são na sua designação. São somente uma formalidade sem correspondência fáctica e verídica, tal qual a Constituição formal que os garante. Na verdade, são autênticas contas do foro privado! 

Inexiste assim qualquer espécie de controlo, de fiscalização, em relação aos governantes por parte da sociedade civil. Os deputados que também apenas formalmente representam o povo que os elege nessas desfasadas sociedades são verdadeiros funcionários da classe governante. Compõem a zona dos satélites sociais que borboleteiam-se em torno do Poder. Por sua vez, o chamado poder judicial nessas sociedades encontra-se normalmente viciado e minado por práticas pouco aconselháveis a um almejado Estado de Direito Democrático – mesmo no seu plano formal -, quando não é já uma Instituição do Estado que corrompe e se deixa corromper. Os caciques do Poder dominam, controlando a sociedade. Os deputados cumprem a sua função no arranjo social, político e económico perpetrado por aqueles, trabalhando para a manutenção e prosperidade material dos interesses da classe governante, como também dos interesses propriamente individuais e privados dos senhores deputados.

Entendo, por conseguinte, ser minha/nossa obrigação denunciar e impedir a existência dessas sociedades anacrónicas e desfasadas ao seculo XXI, combater a ditadura dos governos da classe dos privilégios – fascismo de laivos tropicais -, eliminando os fossos e barreiras socioeconómicas existentes, no sentido lógico da vida de abrir iguais possibilidades de crescer, desenvolver, educar, ensinar, trabalhar, amar e viver livremente a todos aqueles que são partes integrantes e constitutivas de uma sociedade hodierna. Um dia que passe, já se torna tarde!

  1. b) Defesa dos direitos fundamentais da pessoa, do cidadão e defesa das sociedades

Especial atenção e ação a serem tomadas devem centrar-se, por força de óbvia e lógica razão do seu combate, nos países falantes da língua portuguesa que fizeram-se independentes de Portugal, em 1975 (A Guiné-Bissau ter-se-á antecipado em 1973, Setembro, 24). Em boa reprodução dos factos acontecidos e ocorridos, desde as independências, em particular os países africanos de Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde, vejamos o seguinte: antes que eram colónias, sujeitas à exploração da potência colonizadora, hoje, após independência, distanciam-se significativamente de Portugal no que diz respeito à proteção e defesa dos direitos fundamentais da pessoa e do cidadão. Tanto Portugal como os outros países africanos agora referidos libertaram-se do fascismo, da opressão e da ditadura continental portuguesa. Se no passado o país colonizador era um país aprisionado, a verdade é que deixou de o ser. Passou a ser um país livre e democrático, onde são respeitados os direitos fundamentais do cidadão e da pessoa. Se no antigamente aqueloutros países eram explorados por estranhos à Terra (colonizadores), na atualidade, verificamos que são os próprios – pequenos grupos de governantes, a classe dominante - a explorar, a oprimir e a abusar os seus concidadãos. Libertaram-se dos colonos, mas continuaram ligados às heranças, às práticas fascistas e ditatoriais! Elegeram pois os novos independentes a má-fé como marca da sua conduta, apesar de esforçadas tentativas de a mascarar. Os colonos libertaram-se dos estigmas, dos prejuízos coloniais e do fascismo, avançando para uma sociedade moderna, livre, democrática.

Enquanto em Portugal evoluiu-se no sentido positivo, diminuindo as assimetrias sociais e económicas existentes na sociedade portuguesa, cultivando o respeito pela democracia e pela liberdade, pela Educação e pelo Ensino - tornando-se inclusivamente num país receptor, respeitador e tolerante de outras culturas e religiões de diferentes etnias -, aqueles países africanos fizeram um percurso totalmente inverso, oposto. Acentuaram-se neles ainda mais as assimetrias sociais e económicas, a exploração e o abuso dos mais frágeis passaram a ser prática corrente, a nota dominante, como também a opressão generalizada à sociedade. O desrespeito, a intolerância e a discriminação expressa e direta tornaram-se comuns no quotidiano social, económico, cultural e político. A Educação e o Ensino são tratados como questões irrelevantes e de pouca importância para a composição e o concerto da sociedade. Democracia e liberdade passaram a ser mote para discussões do foro intelectual simplesmente, ou de encontros agendados para meninos de salão, sem pertinência alguma para a vida real e concreta das pessoas. Por isso, repito, urge alterar o rumo que a vida tomou naqueles países africanos. O impulso inicial de mudança deve marcar-se no interior das próprias sociedades, nas mentalidades das pessoas, dos cidadãos e dos governantes.

O desprezo pelas pessoas, o fosso social e económico torna-se proeminente. O cavar mais das disparidades entre as classes sociais, o distanciamento e a ostracização entre elas é algo que existe, sendo familiar à história milenar da humanidade. Está-se a consentir ao ressurgimento da escravatura pública e consentida.

Talvez, contra isso, devamos viver mais pelas nossas complementaridades que pelos nossos compromissos. Na busca da perfeição em cada uma das duas caraterísticas humanas, melhor será uma simbiose entre ambas, sendo o compromisso o elemento coadjuvante da complementaridade, o motivo desta concretização humana e social, económica, cultural e política. Não haverá lugar para todos no Planeta se não nos entendermos autenticamente complementares, minimizando, deste modo, a caráter de disputa, de rivalidade e de domínio, de submissão em relação ao semelhante que ainda é a marca d’água de muitos viventes pensantes.

O ser humano existe para construir, apesar de a sua conduta revelar, variadas e repetidas vezes, o oposto. Salvo melhor entendimento, é minha convicção que todos nós somos necessários para trabalhar no uso útil das suas capacidades e qualidades próprias, na busca e prática efetiva do princípio da complementaridade, em prol do compromisso que deveríamos ter com as sociedades e com o Planeta.

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