Que a transição para o multipartidarismo nos anos 90 trouxe o ar puro da liberdade, não há dúvida. Mas também pariu uma classe política que, entrincheirada, confunde o bem público com o seu umbigo. Meio século de dança entre PAICV e MpD criou uma ilusão perigosa: a de que a alternância é sinónimo de saúde democrática. Enquanto isso, a “accountability” esvai-se e o debate de ideias definha. É um mal estrutural, profundo e devastador. E aqui jaz o cerne da crise: a democracia não sobrevive de ar e discurso. Ela definha sem justiça social. O crescimento económico, por mais festejado que seja, não sanou as feridas das desigualdades. Vivemos num país de contrastes: o turismo luxuoso ergue-se ao lado de uma economia informal que é boia de salvação para muitos. A fuga dos nossos cérebros para outros céus é um sintoma gritante. Quando a democracia falha em garantir dignidade mínima, abre alas para os cantos de sereia do populismo e para as falsas promessas autoritárias. Um risco silencioso, mas real, para este "oásis de estabilidade".
Embora muitos preferem fechar os olhos ao prontuário (que é público): a democracia está enferma, mas graças a Deus ainda vive. Foi internada às pressas, não num qualquer posto de saúde das ilhas, mas no grande Hospital Agostinho Neto; na cidade da Praia, a ilha que mais do que acolher, mora os três poderes do Estado como inquilinos permanentes e, por vezes, demasiado confortáveis. Santiago não é apenas a sede; tornou-se o epicentro de uma doença que se alastra por todo o arquipélago, minando a vitalidade do sistema.
Olhemos à nossa volta! O infeliz espetáculo político que parece cada vez mais um palco de circo onde os palhaços perderam o roteiro. Polarização aguda que corta como lâmina, divide famílias, amigos e vizinhos; ofensas que substituem argumentos, notícias que mais confundem do que informam, instituições que rangem sob o peso da desconfiança, às injustiça sociais e à pobreza que ainda vivem entre nós como lepra.
É fácil apontarmos o dedo à “política” como a raiz de todo mal. Mas, meus caros leitores, engana-se quem vê na gritaria o problema. Ela é apenas a febre alta, o tremor visível. O verdadeiro doente, definhando em silêncio, é a própria democracia.
Reparem nos sintomas, estão claros como às águas cristalinas, só não vê quem teima em fingir de cego: o Parlamento, esse suposto templo sagrado de debate por excelência, reduz-se se não sempre, quase sempre a mero carimbo para acordos de bastidores sem respeito à representatividade; péssimos autores com notável incapacidade de representar com sobriedade, disciplina, fineza a delicadeza e a empatia necessária aos genuínos interesse soberano dos cabo-verdianos.
A Justiça, esse pilar do equilíbrio, arrasta-se sob o peso de suspeitas, distante de quem mais precisa. Morosidade crônica quebra a confiança e mata a esperança dos cidadãos; a sensação – justa ou não – de que a justiça pode ser influenciada, ou que alguns são mais iguais que outros perante a lei, é um vírus que corrói os mais importantes princípios e fundamentos democráticos. A independência, esse pilar sagrado, parece por vezes balançar sob pressões políticas e sociais, reais ou percebidas. Sem uma justiça célere, independente e percebida como justa por todos, a democracia fica coxa.
E a nossa comunicação social, outro poder que de autoridade tem pouco ou quase nada, livre no papel, debate-se entre as amarras de condições de trabalho e a sedução do escândalo fácil, enquanto as questões de fundo ficam soterradas.
Os partidos? Ah, os partidos! Os partidos políticos, que deveriam ser veículos de representação, transformaram-se em feudos onde a lealdade cega supera o mérito e o interesse público. O clientelismo é o antibiótico errado que só enfraquece o organismo. Nomeações, benefícios, até oportunidades, parecem fluir mais por filiação partidária do que por competência ou necessidade coletiva. O debate de ideias? Muitas vezes substituído pelo ruído vazio da militância fanática, do insulto fácil nas redes sociais e da desinformação estratégica. A alternância no poder, saudável em teoria, por vezes parece apenas trocar de turno de equipa que serve da máquina pública, mas nunca reformá-la ao serviço das pessoas.
E nós, cidadãos? Nossos canais de participação – audiências, consultas – são tratados como meros rituais, vazios de substância. Não podemos ignorar a anemia cívica. A descrença, o desencanto, o "está tudo dominado" que se ouve nas esplanadas e nas ruas. É um sintoma e uma causa. Quando o cidadão comum sente que o seu voto pouco muda a engrenagem centralizada e partidarizada, que a sua voz não se ouve além da sua ilha ou da sua localidade, o abstencionismo e o desinteresse crescem. A democracia definha sem a participação ativa, crítica e esperançosa do seu povo.
Que a transição para o multipartidarismo nos anos 90 trouxe o ar puro da liberdade, não há dúvida. Mas também pariu uma classe política que, entrincheirada, confunde o bem público com o seu umbigo. Meio século de dança entre PAICV e MpD criou uma ilusão perigosa: a de que a alternância é sinónimo de saúde democrática. Enquanto isso, a “accountability” esvai-se e o debate de ideias definha. É um mal estrutural, profundo e devastador.
E aqui jaz o cerne da crise: a democracia não sobrevive de ar e discurso. Ela definha sem justiça social. O crescimento económico, por mais festejado que seja, não sanou as feridas das desigualdades. Vivemos num país de contrastes: o turismo luxuoso ergue-se ao lado de uma economia informal que é boia de salvação para muitos. A fuga dos nossos cérebros para outros céus é um sintoma gritante. Quando a democracia falha em garantir dignidade mínima, abre alas para os cantos de sereia do populismo e para as falsas promessas autoritárias. Um risco silencioso, mas real, para este "oásis de estabilidade".
A cura? Não espere por um salvador de capa e espada, nem se iluda com slogans eleitorais reluzentes. E sobre isso, a honestidade forçada, obrigou a confissão “não tenho varinha mágica”. Trocar governos é como mudar o lençol de um doente grave – necessário, mas insuficiente. A revitalização exige cirurgia profunda: instituições reforçadas com “accountability” de ferro, educação cívica que vá além das salas de aula, e uma participação cidadã que seja sangue vivo, não mera formalidade.
Apesar de uma quase certeza que a democracia nunca morrerá, não podemos negligenciar o problema estrutural de funcionamento; associado aos fortes ataques um pouco por toda a África, Europa e América. E por aqui, estamos mais uma vez, numa encruzilhada histórica. A nossa democracia, apesar de ainda jovem, já está nos cuidados intensivos no Hospital Agostinho Neto, na ilha onde mora os três poderes, mas sem um parecer médico que nos dê alguma esperança ou garantia de melhorias. A democracia é também e sobretudo responsabilidade, por isso é chegado a hora de auto-responsabilizar. Ou revitalizamos com a energia crua da sociedade civil, ou a condenamos a um lento definhar no cinismo e na ineficácia.
Não podemos enquanto coletivo (povo) e individual (cidadão) terceirizar a responsabilidade de proteger, defender e promover uma democracia mais funcional e justa. A confusão que nos assola não é o caos final, é o alarme a soar.
Por isso, fica o aviso amigo caros leitores: a nossa democracia precisa de cuidados intensivos de todos, para o um progressivo e melhor aperfeiçoamento das funcionalidades democráticas. E o tratamento só começa quando entendermos de uma vez por todas, que ela não é propriedade dos partidos políticos, nem tão pouco dos órgãos de soberania, muito menos de grupos, mas de todos os cidadãos. É o mais importante património de cada um de nós, sempre com liberdade e responsabilidade, mas também com direitos e deveres. “A luta continua…”
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A equipa do Santiago Magazine