Porque é que a AAC é um entrave para o desenvolvimento do setor dos transportes aéreos em Cabo Verde?
Ponto de Vista

Porque é que a AAC é um entrave para o desenvolvimento do setor dos transportes aéreos em Cabo Verde?

Cabo Verde dispõe de todas as condições geoestratégicas, humanas e políticas para se afirmar como hub aéreo regional e como modelo de excelência na aviação civil africana. Mas tal só será possível se a regulação deixar de ser um obstáculo e passar a ser um verdadeiro instrumento de transformação. O país precisa de uma Agência de Aviação Civil ao serviço do futuro — e não presa a um passado de inércia, opacidade e bloqueios.

Apesar das crescentes exigências associadas ao turismo, à comunidade emigrante e ao dinamismo do setor empresarial e comercial, o setor dos transportes aéreos em Cabo Verde continua a enfrentar sérias dificuldades para se afirmar — dir-se-ia mesmo que permanece incapaz de verdadeiramente “levantar voo”.

Este paradoxo torna-se ainda mais inquietante se considerarmos que, para um país arquipelágico como o nosso, a interligação aérea é mais do que uma conveniência: é uma necessidade estratégica fundamental para a coesão territorial, o desenvolvimento económico e a integração regional e internacional.

De acordo com a Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO) e com o Banco Mundial, o transporte aéreo é um catalisador direto do crescimento económico, especialmente em nações insulares. Este setor impulsiona o turismo, facilita o comércio, atrai investimento estrangeiro e promove a mobilidade da força de trabalho.

Contudo, nenhum destes efeitos multiplicadores se manifesta de forma sustentável em Cabo Verde — e uma das razões principais para tal reside, paradoxalmente, na Agência de Aviação Civil (AAC): uma autoridade que regula pouco e bloqueia muito.

A AAC, entidade que deveria garantir a segurança, promover o desenvolvimento e criar condições para a competitividade da aviação civil, tem-se revelado um dos maiores entraves ao progresso do setor. Longe de funcionar como um parceiro estratégico do Estado e dos operadores, a Agência tem adotado uma postura tecnocrática, passiva e excessivamente burocrática, desligada das exigências de um mercado em constante evolução.

A legislação e os regulamentos em vigor estão obsoletos, mal adaptados à realidade arquipelágica nacional e desalinhados com as melhores práticas internacionais, nomeadamente as adotadas pela EASA (Agência Europeia para a Segurança da Aviação) e pela FAA (Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos).

A ausência de uma política regulatória moderna — assente na gestão de riscos, no estímulo à inovação e no apoio ao empreendedorismo aeronáutico — afasta investidores, trava operadores nacionais e empurra o país para uma dependência crónica de operadores estrangeiros.

Burocracia improdutiva e ausência de visão estratégica

A aparente inércia institucional da AAC tem gerado um ambiente de estagnação. A Agência limita-se a manter em operação uma companhia aérea registada e um reduzido número de aeronaves civis, enquanto acumula processos, reuniões e deliberações estéreis.

Como reflexo desta ineficiência, há mais companhias encerradas do que operacionais, o que traduz um claro fracasso do ecossistema regulatório.

Um exemplo paradigmático desta morosidade e ineficácia é o caso do registo da aeronave King Air 360, uma aeronave nova, recém-fabricada e certificada pelas autoridades aeronáuticas dos Estados Unidos, que demorou um ano e oito meses a ser registada em Cabo Verde.

Este atraso, completamente desproporcional, é sintomático de um sistema que penaliza a inovação e desencoraja a iniciativa privada.

Mais grave ainda foi o episódio ocorrido na ilha do Fogo, em que, simultaneamente, uma aeronave vinda da África do Sul e um navio se avariaram, deixando dezenas de emigrantes retidos no local. Sem alternativas imediatas de transporte, muitos perderam os seus voos internacionais com destino aos Estados Unidos.

Este incidente não só expôs a fragilidade da conectividade inter-ilhas, como também revelou o completo despreparo do sistema para lidar com situações de emergência — uma consequência direta da ineficiência regulatória e da ausência de um verdadeiro planeamento estratégico.

O modelo de dependência: wet lease e exclusão do capital humano nacional

A atual estratégia da AAC parece assentar numa lógica minimalista: esperar que companhias estrangeiras, já certificadas noutros países, operem em Cabo Verde através de contratos de wet lease — trazendo aviões, pilotos e técnicos estrangeiros, como no caso da referida aeronave sul-africana avariada no Fogo, e deixando de fora os profissionais cabo-verdianos.

Este modelo não desenvolve capacidade interna, não gera empregos qualificados, nem cria massa crítica para um setor nacional sustentável.

Com esta postura, todas as tentativas de criação de operadores nacionais são sistematicamente desincentivadas ou travadas, muitas vezes com base em argumentos técnico-regulatórios infundados ou desproporcionais.

O caso da Bestfly é ilustrativo: após múltiplos constrangimentos e entraves impostos pela AAC, a companhia acabou por abandonar o país. A Binter, outro operador que poderia ter contribuído de forma significativa para a conectividade doméstica e regional, também encerrou as suas operações em Cabo Verde, deixando clara a sua insatisfação com o ambiente regulatório hostil. A TACV, enquanto companhia de bandeira, permanece formalmente ativa, mas encontra-se tecnicamente falida — sem frota própria, sem planos estruturados de recapitalização e sem um modelo de negócio viável. Opera em modo de sobrevivência, enfrentando “ventos contrários e turbulências severas”.

É possível mudar de rumo: as reformas necessárias

Para que Cabo Verde possa finalmente desenvolver um setor de transportes aéreos robusto, competitivo e sustentável, é urgente: Reestruturar profundamente a AAC, convertendo-a numa entidade reguladora moderna, independente, tecnicamente capacitada e focada em resultados; Atualizar o quadro legal e regulatório, com base nos standards internacionais da ICAO, EASA e FAA, e adaptá-lo à realidade nacional; Fomentar o surgimento de operadores nacionais, com programas de incentivo à certificação, acesso ao financiamento, formação técnica e apoio institucional; Valorizar o capital humano nacional, incluindo pilotos, engenheiros, mecânicos e gestores aeronáuticos, integrando-os nas estratégias de desenvolvimento do setor; Redefinir o papel da aviação no modelo económico nacional, reconhecendo-a como eixo central de coesão territorial e de competitividade internacional.

Cabo Verde dispõe de todas as condições geoestratégicas, humanas e políticas para se afirmar como hub aéreo regional e como modelo de excelência na aviação civil africana. Mas tal só será possível se a regulação deixar de ser um obstáculo e passar a ser um verdadeiro instrumento de transformação. O país precisa de uma Agência de Aviação Civil ao serviço do futuro — e não presa a um passado de inércia, opacidade e bloqueios.

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