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O Parlamento Cabo-Verdiano Teria “Constituído” Uma Norma Constitucional Costumeira?
Ponto de Vista

O Parlamento Cabo-Verdiano Teria “Constituído” Uma Norma Constitucional Costumeira?

“Como toda ciência jurídica, o Direito Constitucional é ciência normativa; Diferencia-se, assim, da Sociologia e da Ciência Política, enquanto ciências da realidade. Se as normas constitucionais nada mais expressam do que relações fáticas altamente mutáveis, não há como deixar de reconhecer que a ciência da Constituição jurídica constitui uma ciência jurídica na ausência do direito, não lhe restando outra função senão a de constatar e comentar os fatos criados pela Realpolitik. Assim, o Direito Constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe tão somente a miserável função — indigna de qualquer ciência — de justificar as relações de poder dominantes. Se a Ciência da Constituição adota essa tese e passa a admitir a Constituição real como decisiva, tem-se a sua descaracterização como ciência normativa”KONRAD HESSE in “A Força Normativa da Constituição”

Começamos a escrever este artigo com uma declaração de interesse: somos um cidadão amante da justiça e dedicamos toda a nossa força e energia visando a construção de um mundo mais solidário e justo. Ao tomarmos posição sobre os problemas da nossa sociedade, nada mais nos move senão a defesa do eticamente aceitável, do correto e do justo.

Não andamos atrás de protagonismos, nem movemos cruzadas contra quem quer que seja, e muito menos contra a justiça.

Sem justiça não há ordem, não há direitos e não há limites: somos, pois, pela justiça.

Toda a nossa vida e o nosso percurso foram feitos numa luta incessante pela justiça e pelo que é justo, mesmo que essa postura nos tenha criado problemas, nos tenha feito perder cargos ou nos tenha feito romper amizades ou relação de pertença política.

Não nos arrependemos do caminho que trilhamos, e que ninguém conte connosco ou com o nosso silêncio para pactuar com as injustiças, promovidas ou praticadas seja por quem for, porque seguimos religiosamente aquela máxima de que “a injustiça que se faz a um, é uma ameaça que se faz a todos”.

O nosso compromisso é com o Estado Constitucional e de Direito, com o devido processo legal, com a legalidade democrática e com a submissão de todos aos ditames da lei. Assim, numa palavra: somos pela justiça e defendemos, apenas e simplesmente, a justiça.

Feita a declaração de interesse entremos na matéria do artigo.

O debate ocorrido, na passada sexta-feira, 10 de março, no parlamento, na sequência de uma Declaração Política, apresentada pela União Cabo-verdiana Independente (UCID), teve o condão de vir trazer alguma clarificação, relativamente ao que se passa e se passou na Casa da Democracia, especialmente a reação que se pôde observar e apurar dos deputados e dos grupos parlamentares, quanto ao conteúdo da intervenção da UCID que, pese embora respeitasse a decisão do Tribunal Constitucional (TC), entretanto, deixou, claro, que não concordava com ela, porque, no entendimento e nas palavras da UCID,  a  “Constituição da República de Cabo Verde foi fortemente violentada, e o possível  silencio desta magna casa parlamentar será considerado, como uma assunção tacita de tudo o que tem acontecido nesta casa parlamentar desde a detenção fora de flagrante delito do Deputado eleito na lista da UCID, o cidadão e Advogado Dr. Amadeu Oliveira, até esta decisão do TC, um tanto ou quanto inesperada”.

O mérito da intervenção da UCID foi o ter possibilitado, aos principais atores no parlamento, a oportunidade de se pronunciarem  sobre a decisão do TC, e a partir das suas intervenções se poder aferir do grau de consonância entre o pensamento reinante e  expresso do parlamento e o pensamento produzido e atribuído pelo TC ao parlamento, espelhado substantivamente no seu douto acórdão de 17/2023.

A primeira surpresa, nesse período antes da ordem do dia, veio da bancada do PAICV, que, através do seu líder da bancada, com mais ou menos palavras disse que a sua bancada respeitava o princípio de separação de poderes, que respeitava a decisão do TC, e que se fosse o PAICV a decidir sobre a matéria, teria decidido de forma diferente. Importa sublinhar a expressão do líder da bancada do PAICV, segunda a qual “entendemos que o TC podia ter decidido de forma diferente”.

Da parte da bancada do MPD, veio uma outra surpresa, o líder da bancada desse partido disse que havia dúvidas do parlamento sobre a matéria e que elas foram clarificadas pelo TC, e acrescentou que tudo foi feito dentro da legalidade. Nesta intervenção do líder da bancada do MPD, há a realçar esta afirmação do deputado líder de que “tudo foi feito dentro da legalidade”.

Os dois maiores partidos com assento parlamentar, através dos seus porta-vozes, confessaram aos microfones da Assembleia Nacional o seguinte: O PAICV, de forma inteligente, disse que respeitava a decisão do TC em nome do princípio de separação de poderes, mas que se fosse o PAICV a decidir, decidiria de forma diferente; Por seu turno, o MPD concorda com a decisão do TC por não ter declarado inconstitucional a Resolução 3/X/2021, assumindo claramente que o parlamento agiu dentro da legalidade e não na base de num pretenso costume.

Enquanto o PAICV tinha dúvidas sobre a legalidade do procedimento parlamentar, o MPD, por sua vez, afirmava a legalidade da tramitação parlamentar, e ambos os partidos, em momento algum, assumiram ou reconheceram que o que tinha acontecido com a aprovação da citada resolução, se traduzia em costumes constitucionais.

Mas a caraterização deste quadro não ficaria completa se não revisitássemos o douto acórdão do TC nº 17/2023, e de lá retirássemos o trecho que cita as declarações do Presidente da Assembleia Nacional no processo, que, em nome do parlamento, disse que «a decisão objeto da presente fiscalização foi tomada nos termos da lei, com observância de todos os procedimentos legais …» para acrescentar que «carece de fundamento a alegada inconstitucionalidade e ilegalidade por violação do nº 1 do artigo 148º, nº 3, do artigo 170º da Constituição da República e nºs 2 e 3 do artigo 11º do Estatuto dos Deputados».

O Parlamento “jurou” que agiu dentro da legalidade e que observou todos os procedimentos que a lei exige, e mais: que não violou o nº 1 do artigo 148º da constituição, nem os artigos citados do Estatuto dos Deputados.  

Finalmente, para concluir esta pequena resenha , teremos, também, de deitar um olhar sobre o conteúdo presente no pedido de fiscalização sucessiva abstrata da constitucionalidade e legalidade dos 15 deputados subscritores, cujo objeto foi a Resolução da Comissão Permanente da Assembleia Nacional do qual retiramos do acórdão o seguinte trecho: “O grupo de 15 Deputados manifesta as suas dúvidas sobre a constitucionalidade ou legalidade da citada Resolução nº 3/X/2021, através da qual foi autorizada a detenção do Deputado ... E pergunta se a Resolução «não terá violado as garantias fundamentais da «imunidade parlamentar»”.

Importa-se sublinhar que o grupo dos 15 era integrado por deputados de todas as bancadas, MPD, PAICV e UCID, e, consequentemente, as dúvidas da inconstitucionalidade e da ilegalidade eram transversais.

O que de paradoxal se constata neste quadro que traçamos?

O PAICV tinha dúvidas e em momento algum invocou o costume constitucional “contra a constituição”.

O MPD reivindicou a legalidade do processo, e em nenhum momento invocou costume constitucional “contra a constituição”.

A UCID, desde início do processo, contestou a legalidade e a constitucionalidade da Resolução 3/X/2021.

A Assembleia Nacional, através do seu Presidente, afirmou que “a decisão … foi tomada nos termos da lei, com observância de todos os procedimentos legais”.

O grupo dos 15 deputados tinha dúvidas e pediu a fiscalização da constitucionalidade e legalidade da Resolução 3/X/2021, não identificando e nem se referindo a nenhum costume constitucional “contra a constituição”.

Estranhamente ou não, ninguém, mas ninguém, invocou costumes constitucionais “contra a constituição”, como fonte de direito para, como tal, ser utilizado ou para dar respaldo jurídico às práticas da Comissão Permanente.

Assim, a conclusão a que se pode, facilmente, chegar, nesta pequena  síntese, é a de que o Parlamento se cindiu em duas alas sobre o ato praticado pela CP, divisão essa claramente espelhada na votação sobre a proposta de resolução da UCID que pedia a revogação da Resolução 3/X/2021.

Desta apreciação dos factos, traduzida em comportamentos dos atores parlamentares, que com as suas declarações e o seu posicionamento demostraram, inequivocamente, que, se alguma vez, algum costume constitucional “contra a constituição” se constitui no parlamento, foi literalmente de forma inconsciente.

Inconsciente, porque ninguém se deu conta da sua existência! Inconsciente porque ninguém se lembrou de o explicitar no seu discurso! Inconsciente, ainda, porque ninguém o invocou como norma habilitante para realização de qualquer ato.

Mais ainda, o que claramente se constata, é que há uma “dissonância cognitiva” entre o que o Parlamento acha que fez ou praticou e o que o TC entende que o parlamento teria feito, daí a duvida justificada se realmente o que parlamento praticou se se reúne todas as caraterísticas de um costume, e, em especial, contra a constituição.

Para percebermos melhor o que realmente se passou no parlamento cabo-verdiano teremos de ir à definição do costume. Uadi Lamêgo Bulos, Doutor e Mestre em Direito do Estado, Professor de Direito Constitucional, Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Constitucional, define os costumes como “a observância geral, constante e uniforme de uma conduta pelos membros do grupo social, sendo integrados por dois elementos: um objetivo e outro subjetivo. O elemento objetivo, material, fático ou externo, revela-se pela repetição de um procedimento – seria o usus. Já o elemento subjetivo, psicológico ou interno, resulta da convicção generalizada de sua exigibilidade, da crença de que a obrigatoriedade da norma é indispensável – trata-se da opinio juris et necessitatis, que consiste na certeza de que a observância da norma consuetudinária equivale a uma aquiescência jurídica, disto resultando a sua obrigatoriedade”.

Nesta definição do que é costume e que está em consonância com o que uma parte substancial da doutrina ensina, o autor destaca uma das suas caraterísticas fundamentais que é  a opinio juris et necessitatis, que, segundo ele, se trata de “um elemento interno da norma jurídica consuetudinária, permitindo distingui-la de outras normas de conduta, também costumeiras, como as de natureza religiosa, social, moral, ou dos simples hábitos, de que podem, sem dúvida, resultar consequências jurídicas, embora não constituam normas de direito”.

Assim, para se constituir um costume é necessário que o ato praticado preencha alguns requisitos de ordem objetiva e subjetiva, sendo o preenchimento desses requisitos obrigatórios para que o ato seja considerado costumeiro.

No caso em análise, podemos até admitir que a CP da Assembleia Nacional teria reunido várias vezes, em contramão com o estipulado na constituição, mas não o teria feito com a “convicção generalizada de sua exigibilidade, da crença de que a obrigatoriedade da norma é indispensável” (opinio juris et necessitatis), e bastará para comprovar esta constatação com as declarações e posicionamentos quer da Assembleia Nacional, quer dos grupos parlamentares quer ainda dos 15 deputados subscritores.

O ato praticado pela CP configura e tem claramente as caraterísticas de praxes (usos) parlamentares, teorizadas pelo Prof. Doutor Jorge Miranda que a propósito desta questão as refere como  “Usos a que falta a convicção de obrigatoriedade (o elemento psicológico do costume)”.

Como muito bem explica Euclydes Calil Filho, na sua tese de Mestrado, sob o título “Atos Parlamentares e Costume Constitucional”, sob a orientação do Prof. Jorge Miranda, quando, e referindo-se às praxes, afirma que ”Disso infere-se que tal praxe não poderia se encaixar no conceito de costume, pois lhe falta um dos elementos, o subjetivo. Portanto, seria um uso, pura e simplesmente, sem que haja a consciência de ser uma norma. É seguido por ser uma prática, mas já se sabendo que pode ser mudada a qualquer momento e descumprida eventualmente caso haja necessidade”.

Mais do que isso, importará destacar-se um elemento fundamental que não foi considerada na decisão do TC: se o parlamento tivesse produzido alguma norma costumeira, e que tal pudesse ser invocada no quadro da aprovação da Resolução 3/X/2021, ela deixou de existir – houve  uma rutura procedimental – a partir do momento em que o mesmo Parlamento agendou, discutiu e  votou a proposta de resolução da UCID que visava revogar, exatamente, a Resolução 3/X/2021. O parlamento mudou o procedimento, votou a resolução nominalmente e em escrutínio secreto, como exige a alínea c) do artigo 135º do Regimento da Assembleia Nacional, quando está em causa o mandato e a imunidade dos deputados. Embora a proposta da UCID não tenha sido aprovada, ela gerou, através da votação e da manifestação da vontade e posicionamento político dos partidos políticos e deputados, uma clarificação essencial: o Parlamento dividiu-se, e se algum entendimento partilhado tivesse existido, como é exigido na constituição de normas costumeiras, ele foi rompido nessa votação.

E qual foi o resultado dessa votação?

11 votos a favor da revogação;

32 votos contra a revogação;

21 votos abstenção.

Ora, se analisarmos o comportamento do parlamento, verificaremos que 32 votos foram a favor da não revogação e 32 votos não foram a favor da não revogação.

A votação contra a revogação nem chegou a ter maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, situação que exigiria, à partida, do TC ponderação e uma apreciação criteriosa e objetiva.

Na doutrina de Riccardo Guastini, falando sobre normas costumeiras, se considera que uma norma só é válida quando ela é aceite e observada pelos seus destinatários.

O TC deveria ter em consideração esse facto, de que não havia consenso no parlamento sobre a prática da Comissão Permanente contra constituição, sendo evidente que o direito costumeiro que o TC julgou ter-se constituído no parlamento, salvo melhor opinião, nunca existiu, e que mesmo que tivesse existido alguma vez, deixou de existir a partir do momento em que deixou de haver a maioria do parlamento a favor da prática da CP.

Cabia ao TC analisar o pedido de fiscalização e proceder de acordo com o estipulado na constituição, porém o TC em vez de fazer a “interpretação conforme à constituição”, declarando inconstitucional a Resolução 3/X/2021, decidiu fazer uma interpretação que conduzisse a um juízo de constitucionalidade à revelia do estipulado na própria constituição.

Não houve portanto a fiscalização da constitucionalidade, exatamente porque não se utilizou a constituição para se aferir da constitucionalidade, tendo o TC preferido a “amputação” da própria constituição para não declarar inconstitucional uma norma que o TC reconhece que é contra a constituição.

Como ensina Konrad Hesse in “Elementos do Direito Constitucional da Alemanha” a “vinculação da interpretação à norma a ser concretizada, à pré-compreensão do intérprete e ao problema concreto a ser resolvido, cada vez significa, negativamente, que não pode haver método de interpretação autónomo, separado desses fatores, positivamente, que o procedimento de concretização deve ser determinado pelo objeto da interpretação, pela Constituição e pelo problema respetivo”.

Estamos perante uma situação anómala, e que, se nos for permitido utilizar uma imagem para ilustrar o que se passou nessa decisão, seria essa: “Uma equipa marca um golo, e, segundo as regras de futebol, em fora de jogo. O lanche vai à análise do VAR, e o VAR constata que é fora de jogo. No entanto, o VAR para não marcar o respetivo fora de jogo e  invalidar o golo, decide alterar a linha de fora de jogo em alguns centímetros, colocando o jogador que estava em fora de jogo, em jogo, e consequentemente o lance passa de inválido a válido”.

O VAR deve fazer isso? É justo o VAR fazer isso?

Mas para além da grande dúvida e interrogação sobre se a prática da Comissão Permanente da Assembleia Nacional preenche os requisitos e caraterísticas de costume, especialmente costume contra a constituição, o ponto seguinte de questionamento prende-se com a força normativa conferida às práticas costumeiras com o poder de revogar normas constitucionais escritas.

Muitos e variadíssimos autores não defendem a supremacia das normas costumeiras sobre a constituição escrita, por defenderem a soberania do poder constituinte, a única fonte legitimada para elaborar ou rever a constituição, nos termos por esta definidos, e, por conseguinte, não defendem que as normas costumeiras tenham poder revogatório das normas constitucionais.

Vamos de seguida citar alguns deles.

 

 

Gomes Canotilho in “Direito Constitucional”:

O princípio da unidade hierárquico-normativa significa que todas as normas contidas numa constituição formal têm igual dignidade (não há normas só formais, nem hierarquia de supra-infra ordenação dentro da lei constitucional). Como se irá ver em sede de interpretação, o princípio da unidade normativa conduz à rejeição de duas teses, ainda hoje muito correntes na doutrina do direito constitucional: (1) a tese das antinomias normativas; (2) a tese das normas constitucionais inconstitucionais. O princípio da unidade da constituição é, assim, expressão da própria positividade normativo.

Jorge Miranda in “Manual Direito Constitucional”:

“A inadmissibilidade do costume derivaria tanto do princípio da soberania nacional como do conceito de Constituição formal. A vontade do povo só se manifestaria através da feitura da Constituição em assembleia constituinte (ou em órgão equivalente), não através de qualquer outra forma; e a superioridade da Constituição e a sua função própria seriam vulneradas se pudesse haver normas constitucionais à sua margem”

Uadi Lamêgo Bulos in Revista de Informação Legislativa – Brasília:

“Para nós, o costume contra a lei configura lídimo atentado à ordem jurídica instituída, porque um comando legislado só pode ser revogado por outro. Qualquer prática afrontadora de normas jurídicas, venha de onde vier, deve ser repelida. O papel do intérprete é dar vida aos textos legais e não deteriorá-los, por meio de recursos antagônicos, homenageando expedientes contrários ao direito vigente”.

Anna Candida da Cunha Ferraz in “Sobre costumes constitucionais”:

O “costume constitucional não adquire, em sua plenitude, a eficácia das normas constitucionais escritas. Assim, não goza do atributo formal de regra superior, de regra dotada da supremacia constitucional, inerente às normas escritas das Constituições rígidas”.

… “Não se lhe poderá reconhecer, pois, valor constitucional igual ou superior às normas constitucionais escritas. Deverá ser tido como norma não-escrita, materialmente constitucional, porque versando matéria constitucional, porém sem a eficácia ou o valor jurídico de norma constitucional escrita”.

Konrad Hesse in “A Força Normativa da Constituição”:

“Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição depende não apenas do seu conteúdo, mas também de sua práxis. De todos os participantes da vida constitucional, exige-se partilhar aquela conceção anteriormente por mim denominada vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)”.

… “Em caso de eventual conflito, a Constituição não deve ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca. Ao contrário, existem pressupostos realizáveis (realizierbare Voraussetzungen) que, mesmo em caso de confronto, permitem assegurar a força normativa da Constituição”.

… “Todos os interesses momentâneos — ainda quando realizados — não logram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado respeito à Constituição, sobretudo naquelas situações em que a sua observância revela-se incômoda”.

… “a Interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma”.

… “A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa

determinada, situação”.

Carmelo Cabone in “La consuetudine nel diritto costituzionale”:

Os “órgãos constitucionais, ao darem origem a um costume, não querem uma norma, mas agem do modo sugerido por uma necessidade de direito. O fato de que o costume seja posto por um órgão constitucional não basta para se considerar que a vontade do Estado surgiu daí”.

Georges Burdeau in “Traité de Science Politique”, tome IV:

“Não há lugar para costume, seja criativo, modificador, supletivo ou simplesmente interpretativo da constituição, pois toda norma, inclusive a não escrita, cede diante da superioridade da norma constitucional”.

Norberto Bobbio in “O positivismo jurídico”: lições de filosofia do direito:

“Quando num ordenamento se encontram disposições que atribuem a permissão de ter ou não ter um determinado comportamento, é porque com tais disposições se quer limitar ou negar um imperativo anteriormente estabelecido, que proíbe ou ordena ter aquele comportamento”.

… Mas a esta objeção se pode responder que nenhum costume se torna jurídico só através do uso, porque o que o faz tornar-se jurídico, o que o insere no sistema, é o fato de ser acolhido e reconhecido pelos órgãos competentes desse sistema para produzir normas jurídicas…”.

Aristides Raimundo Lima in Declaração de voto no acórdão do TC nº 27/2017

“Mas mais, se a Constituição está no topo da hierarquia das normas, nem o Regimento da Assembleia Nacional, que tem força infraconstitucional, nem um costume parlamentar contra a Constituição, podem prevalecer face a um sentido claro da Constituição”.

… “Por mais que o direito regimental, enquanto núcleo do direito parlamentar, possa ser visto como concretização do direito constitucional, a verdade é que em sede da concretização da Constituição, não se pode alterar a repartição das competências e funções constitucionalmente estabelecidas. O órgão encarregado de interpretar a Constituição não deve optar por uma interpretação que subverta ou perturbe o esquema existente de organização das funções e competências. A tal impede o consagrado princípio de interpretação que corre com o nome de «princípio da conformidade funcional» da interpretação jurídico-constitucional”.

… “Sendo assim, em Cabo Verde, no caso em apreço, não se coloca a questão da obtenção da maioria regimentalmente requerida, para a fixação da ordem do dia, pois a norma regimental tem de ser interpretada em conformidade com a Constituição e o costume contra um sentido claro da Constituição não pode reivindicar validade, sendo, portanto nulo”.

Como vimos, a maioria da doutrina e autores não aceitam a supremacia de normas costumeiras sobre a constituição escrita, sendo certo que haja também autores que defendem a tese contrária.

No entanto, num Estado Constitucional como o nosso, um TC, cuja principal tarefa é não consentir que a constituição seja violada, se permita que ela não só seja violada, por orgãos do Estado que estão sujeitos ao princípio da legalidade e ao cumprimento da Constituição, mas também se aceita o poder derrogatório de normas costumeiras sobre a constituição escrita, pois, ao consentir isso, e se essa tese se prosperar, poderemos estar perante a mudança do próprio regime constitucional.   

Estamos perante um “poder invisível”, que não pode ser controlado e nem sancionado, que não precisa de legitimação democrática, porque se auto-determina e se auto-impõe.

Enquanto isso acontece, os partidos políticos assobiam para o lado, como se nada estivesse acontecer, até que um dia quando os seus interesses sejam tocados, provavelmente aí “acordarão” desse sono letárgico a que voluntariamente se submeteram.

Provavelmente “acordarão” quando os tribunais começarem a declarar legais as hipotéticas ilegalidades que ocorrem nas Câmaras Municipais, com base e fundamentos em costumes. Sim, isso, a partir de agora poderá acontecer, e nessa altura, que moral terão para questionar sobre lá o que for?

O PAICV está de acordo que as normas costumeiras sejam superiores à Constituição e tenham o poder de derrogar normas constitucionais escritas?   

Se sim, que apresente uma proposta de revisão da Constituição, prevendo exatamente isso.   

A mesma pergunta é dirigida ao MPD, estará o partido de acordo que as normas costumeiras sejam superiores à Constituição e que tenham o poder de derrogar normas constitucionais escritas?  

Se a resposta for afirmativa, que apresente uma proposta de revisão da Constituição, prevendo as alterações de acordo com seu posicionamento.

Não se pode deixar uma questão de transcendente importância nas mãos e na esfera da interpretação dos tribunais.

A previsão constitucional da norma costumeira é a única via que permite conferir validade jurídica às suas prescrições, afastando de vez a ideia de costumes contra a constituição, porque incompatível com a ideia e os princípios do Estado Constitucional.

É preciso que sobre essa questão do ordenamento jurídico, da ordem constitucional vigente e do controlo do próprio do Estado, os atores políticos se abstraiam um pouco do caso Amadeu de Oliveira, que todos querem castigar mesmo que para isso se tenha de passar por cima da constituição, dizia, é preciso e é urgente que os atores políticos comecem a pensar, face a decisão do TC, sobre que tipo de Estado queremos ter.

Um Estado que se submeta à constituição ou não?

Um Estado que se permita violar a sua própria constituição ou não?  

Um Tribunal Constitucional que se permite que normas constitucionais escritas sejam derrogadas por costumes constitucionais contra a constituição ou não?

Se o efeito da declaração da inconstitucionalidade do ato da Comissão Permanente era a nulidade, tese suportada pelo Doutor Aristides Lima, agora, com validação do ato da CP pelo TC, se houver incumprimento do costume constitucional, haverá alguma sanção?

Ou a norma costumeira deixará pura e simplesmente de existir?

O país precisa debater essas questões e responder a essas inquietações para que se estabeleça de forma consciente e deliberada os trilhos, através dos quais queremos caminhar.

O Presidente da República, através de um post publicado na sua pagina do Facebook, dava conta que na sua opinião “o Acórdão é denso, inovador e polémico. O TC admite o “costume constitucional contra a Constituição”, o que significa que pode ter efeitos derrogatórios de dispositivos constitucionais.

Pelo seu caráter inovador e polémico e pelos seus efeitos, espero que a sociedade civil - comunicação social, universidades, comunidade jurídica, investigadores … e cidadãos discutam as posições do TC no já referido Acórdão e contribuam para um debate fundamentado e enriquecedor das mesmas, aprofundando, desse modo, a cultura da Constituição e da legalidade democrática”.

 O Presidente da República esqueceu-se, por uns instantes, de que realmente é o Presidente da República e que, como tal, tem obrigações constitucionais, tal como o estipulado no nº 1 do artigo 125º da Constituição que diz que “O Presidente da República é o garante da unidade da Nação e do Estado, da integridade do território, da independência nacional e vigia e garante o cumprimento da Constituição e dos tratados inter­nacionais.  

A questão que se coloca é a seguinte: o Presidente da República a quem a Constituição concedeu prerrogativas para vigiar e garantir o seu cumprimento, consente que haja normas baseadas em costumes com poderes de derrogar normas constitucionais a que está obrigado a garantir o seu cumprimento?

Estará o Presidente da República de acordo com essa inovação(?) que determina que a constituição deixe de ser a Lei da leis? Que o costume derrogue a supremacia da constituição? Que o TC altere o ordenamento jurídico e a sua hierarquização?  Sim, a Constituição da República com essa inovação(?) passa de primeira para a segunda posição em termos de hierarquia, sendo as normas costumeiras colocadas acima da constituição com o poder de derrogar as suas normas.

Sabemos que o Presidente da República não dispõe de ferramentas para contrariar as decisões dos tribunais, apesar de a lei-mãe lhe conferir o poder de vigiar e garantir o cumprimento da constituição. No entanto, também não pode “chutar” a bola para a sociedade civil, por muito participativo que ela seja.

Estamos perante um problema que deixou de ser uma simples questão de competência ou incompetência, de usurpação ou não usurpação de poderes da Comissão Permanente, passando claramente a ser um problema de Estado.

O Estado de Cabo Verde subordina-se ou não à Constituição, como definido no 2 do artigo 3º da CRCV ?

Os órgãos do Estado de Cabo Verde estão ou não obrigados a praticar atos em conformidade com o que a CRCV prescreve, ou doravante já podem constituir normas de costumes contra a constituição sempre que acharem convenientes ou que lhes dá jeito?

Sobre esses questionamentos impendem decisões políticas e não jurídicas.

E a decisão e a opção do TC sobre esta matéria é essencialmente política e não jurídica, porquanto tomou partido a favor da tese de “sacrificar” a constituição no altar dos “costumes mal  resolvidos”.

E com a decisão do TC, não se estará a abrir a “caixa de Pandora”?  

Não se passará a invocar os costumes, por tudo e por nada, sobretudo num país culturalmente resistente a cumprimento da lei?

Em certos aspetos, não concordo com a ideia, seguida por muitos, de “sacralização” das decisões dos tribunais. Elas devem ser respeitadas e acatadas, mas também podem e devem ser questionadas e criticadas  quando se justificar.

Temos um exemplo recente, ocorrido num país de tradição e prática democráticas, como são os Estados Unidos da América.

O Supremo Tribunal de Justiça, órgão que também julga questões de constitucionalidade, determinou a revogação da decisão histórica de 1973, denominada de "Roe v Wade"  que consagrava o direito da mulher ao aborto e que admitia aos estados o poder de permitir ou restringir a prática de aborto.

Essa decisão vigorou durante 50 anos, e  a sua revogação só se tornou possível, porque o Supremo Tribunal dos Estados Unidos passou a ser dominado por uma maioria conservadora que Trump tudo fez para a instalar.

E o que disse o Supremo Tribunal de Justiça nessa decisão? Simplesmente isso: "A Constituição não confere o direito ao aborto; Roe e Casey são anulados; e a autoridade para regular o aborto é devolvida ao povo e aos seus representantes eleitos".

As reações a essa decisão do Supremo Tribunal de Justiça não se fizeram esperar. O Presidente Biden considerou este "um dia triste" para os Estados Unidos e para o Supremo Tribunal. E acrescentou que "A vida e a saúde de milhões de mulheres estão em risco. Os juízes defenderam a decisão de permitir o aborto durante 50 anos, agora o Supremo retirou um direito fundamental aos Estados Unidos, é uma decisão distante da vontade dos americanos. As mulheres violadas serão obrigadas a ter bebés. O Congresso tem de restituir o direito ao aborto. Elejam oficiais que protejam os vossos direitos".

Da Presidente da Câmara dos Representantes de então, Nancy Pelosi, veio essa reação, em que classificou a decisão do Supremo Tribunal de Justiça norte-americano de revogar a proteção do direito ao aborto como "um insulto e uma bofetada" para as mulheres. Ela ainda acrescentou: "Esta decisão é cruel, é escandalosa e desanimadora", tudo isto dito numa conferência de imprensa no Capitólio.

O ex-Presidente dos Estados Unidos Barack Obama acusou o Supremo Tribunal de "atacar as liberdades fundamentais de milhões de mulheres americanas", com a decisão de revogar o direito ao aborto.

"Hoje, o Supremo Tribunal não só anulou quase 50 anos de precedente histórico, como também deixa a decisão mais pessoal entregue à boa vontade dos políticos e ideólogos", disse Barack Obama.

Como aqui podemos ver, os altos dignatários do Estado, em exercício e fora dele, não tiveram problemas em criticar abertamente uma decisão judicial, como, ainda, importa registar o apelo do Presidente Biden ao Congresso para “restituir o direito ao aborto”.

Ninguém nos Estados Unidos que criticou essa decisão foi apelidado de populistas, de inimigos da democracia e outros qualificativos. Infelizmente entre nós existem muitos “democratas” que são, na realidade, os grandes promotores da “claustrofobia democrática”, por fazerem tudo para silenciar as vozes que incomodam, quando não as votam ao ostracismo.

Como dissemos atrás, temos um problema que transcende o TC, e assume os contornos de uma questão de Estado, abarcando todos os orgãos de soberania.

Temos um Estado que não se submete à sua Constituição, e que não reconhece os limites impostos ela, e se projeta com um poder acima da vontade da Constituição.

Um Estado que não respeita normas constitucionais de eficácia e aplicação imediata, é um Estado que não dá garantias de segurança jurídica aos seus cidadãos.

Só esperamos que alguém não se lembre de intentar uma ação contra o Estado de Cabo Verde, em outras instâncias, por violação da sua própria Constituição, em prejuízo de terceiros.

Esperamos, e esperamos vivamente, que essa deriva contra o Estado Constitucional não seja apenas uma manobra do Estado para ilibar o próprio Estado de pesadas responsabilidades e de um elevado custo reputacional, caso o TC tivesse declarado, como era seu dever, a inconstitucionalidade da Resolução 3/X/2021.

Provavelmente, após “Consummatum est”, cumprindo as escrituras com a “crucificação” do visado por essa instrumentalização da lei, e com muitos pilatos a lavarem as mãos, presumimos que, após esse “processo kafkiano”, tudo voltará à normalidade. Ou seja: o nº 1 do artigo 148º será repristinado e a CP só reunirá nos intervalos das sessões legislativas, e a autorização para prisão de qualquer deputado, fora de flagrante delito, só se efetivará com a autorização do Plenário da Assembleia Nacional, em escrutínio secreto. 

Oxalá que essas “absurdas” e “ingénuas” profecias se cumpram!

 

Autores e obras consultadas:

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição

BURDEAU, Georges. Traité de Science Politique, tome IV

MIRANDA, Jorge. Direito constitucional

BULOS, Uadi Lammêgo. Costume constitucional in Revista de Informação Legislativa -          Brasília a. 33 n. 131 jul./set. 1996

BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico

GUASTINI, Riccardo. Le fonti del diritto e l’interpretazione

CARBONE, Carmelo. La consuetudine nel diritto costituzionale

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