A cultura do faz de contas num país de meia democracia
Ponto de Vista

A cultura do faz de contas num país de meia democracia

O que se assiste hoje em Cabo Verde, quanto a proliferação desta pandemia, é o resultado de uma cultura de «Faz de Contas», que infelizmente impera quitemente neste país, a coberto de uma atassalhada justificativa «Estamos num país democrático» e da marimbância dos decisores nas deliberações assaz pertinentes.

Hoje em dia, em todos os serviços públicos, depois de uma incompreensível burrada de funcionários inabilitados, investidos com o substrato de chefe, é vulgar ouvir o termo: «Podes ir queixar. Vivemos em democracia». E esquecem-se que a DEMOCRACIA não se resume apenas no direito de se reclamar ou de mandar bocas, como se diz. Mais do que isso, ela significa o direito de ser justiçado. De ser auscultado e os danos ressarcidos com equidade. Mas sabem de antemão que a justiça cabo-verdiana é um COVID pré-19. É o veneno da maioria dos cabo-verdianos, com gentes na proa que nunca pensam em fazer valer o direito para uma boa justiça, mas em sair de lá ricos, embora sem honra nem glória.

A democracia é um conceito fundamentado na noção de que todas as pessoas têm o direito de participar dos processos políticos, de debater ou decidir políticas de igual por igual. E na sua aceção moderna, certos direitos são universais e não devem ser obliterados. Por exemplo: o direito à Vida, à Saúde, à Educação, ao Trabalho Digno, à Liberdade de Expressão e à Dignidade humana. Esse conceito não se resume, tão-somente, ao direito de criticar. Contempla também o direito de exigir que o mal seja corrigido e o dano causado refeito.

Na democracia cabo-verdiana há só o direito de «falar», de mandar bocas, como dizem. E fala-se até por demais. Até se «cobam» o Primeiro-ministro, de viva voz e bom-tom, chamando-lhe pelo nome e ninguém se incomoda. É dito e escrito publicamente que os Super-Juizes falsificam leis da república e adulteram documentos dos processos em negociatas obscuras, entretanto, sem as devidas consequências. Puro exercício de meia-democracia. Observa-se o direito à crítica, mas não o dever de resposta da parte das autoridades. Dá-se aqui, a sensação de que alguém caluniou os Super-Juizes. Se sim, esse alguém é um criminoso. Os Super-Juizes, efetivamente, terão falsificado os documentos? Se sim, também são criminosos. Mas entretanto, continuam quitemente a laborar nos seus tronos, engendrando crimes e mais crimes. Quase pensam que são Deuses. Que por todos os males que acontecem no mundo, os culpados são as criaturas.

Ora, o caso da COVID-19 na Boa Vista, era mais do que evidente de que tudo isso veria a ocorrer. Eu avisei e ninguém me deu ouvidos. Disse que uma amiga minha que trabalha no Hotel KARAN BOA havia falado comigo, depois de uma semana do ocorrido, aflita, a dizer-me que nem a ela, nem aos muitos colegas foi imposto qualquer medida restritiva. Que nem a uma colega que arranjava o quarto do inglês, o primeiro paciente, havia sido chamada para qualquer despistagem da COVID-19. Que estavam cansadas de telefonar para a Delegacia de Saúde da Boa Vista e que só lhes mandavam esperar. Às vezes lhes diziam para, no caso sentissem sintoma, para ligarem. Imaginem, até que sintoma apareça, quantas pessoas mais ter-se-iam contaminado?

Eu sou testemunho de que a higiene e segurança nos Hospitais são zero. Tive a infelicidade de, no dia 9 deste mês, recorrer-me às Urgências do Hospital Agostinho Neto na cidade da Praia, por ser diabético e ter problemas cardíacos. Fui novamente no dia 10 e lá permaneci até o dia 11. Havia pouca gente nas Urgências e ninguém manifestava sintoma da COVID-19, embora se sabe que tal só sucede duas semanas depois da contaminação, aproximadamente. Constatei que não havia sabão na casa de banho para lavar as mãos e que nos corredores, umas duas ou três vasilhas de álcool-gel estavam vazias.

No dia 10 cheguei por volta das 17h00, mediram-me a tensão arterial e imediatamente submeteram-me a um eletrocardiograma. E solicitaram a presença do cardiologista que me vem assistindo. Este mandou repetir os exames e fiquei a aguardar sentado na sala até as 3h00 da manhã. Embora sendo diabético, não jantei, não comi nada e nem tomei os medicamentos. E por esta confinação, não podia chamar alguém que me levasse comida e medicamento.

Duas macas, não distantes de mim, estavam vazias. Exausto e sonolento, cujos olhos pareciam de um jovem em pleno ato pecaminoso, dirigi-me a um Enfermeiro e solicitei-lhe a permissão para ir descansar um bocadinho o meu esqueleto. As duas macas estavam completamente nuas e não havia lençol para as cobertar. E como se momentos antes não tivesse assistido uma sua ocupante, uma octogenária, talvez, ali vomitando e, quiçá, tivesse feito outras coisas, estribei-me na máxima popular que diz: «contra a fome não há lei», «presizadu ka konxe rostu-runhu», voei por cima daquela maca imunda e desvestida, as minhas pálpebras imediatamente ocultaram os meus olhos do ambiente comum.

Por volta das 8h00 do dia 11 fui liberado. E por minha iniciativa estou de quarentena. Conforme disse atrás, sou diabético e hipertenso. Já fiz 5 cateterismos e sofri 3 enfartes miocárdios, sendo dois em Portugal e um cá em Cabo Verde. Nesta minha quarentena, no dia 13, às 5h00 da manhã senti uma forte dor no peito, sintoma claro de enfarte. Depois de todos os procedimentos que já sei fazer, liguei para o número 132. Tentando por mais do que meia hora, um polícia atendeu e mandou-me ligar para o 131. Depois de umas 10 ou tentativas sem sucesso, tentei novamente para o 132 e a resposta foi a mudez da maldade. E como moro sozinho, fazendo a quarentena sem uma quarentona que me pudesse fazer muito jeito, preferi morrer enfartado do que sair à rua para apanhar um táxi e levar um caço-bode ou mesmo um tiro de bóka-bedju.

Não se pode falar de democracia onde a justiça é ignorada. O meu direito não é só de dizer que fui maltratado. Também tenho o direito de receber explicação do porque é que me maltrataram e de ver assacadas as devidas responsabilidades.

Termino, apelando que encaremos esta pandemia, sobretudo, com justiça. A população deve acatar todas as medidas decretadas, e as autoridades devem agir com pedagogia, não como robôs, desprovidos de sensor humano.

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