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Desonestidade. Em nome de Covid-19
Editorial

Desonestidade. Em nome de Covid-19

Em tempos de crise global imposta pelo coronavírus – um parêntese que se abriu sobre a história do mundo e que não avisou quando fecha – toda e qualquer política definida nos programas de governo ficaram suspensas ou terão que ser abortadas. Facto.

Mas também é verdade que caminhos trilhados em socalcos, vielas e becos, claramente fadados ao fracasso não podem ser hoje justificados somente pela pandemia do coronavírus, que na política doméstica virou desculpa para tudo. O caso da Cabo Verde Airlines é sintomático e vale a pena uma atenção especial nesse quesito, e sobretudo, pela forma como todo o processo foi conduzido desde o início até chegar a teste ponto de evidente queda livre.

O cenário de uma eventual falência e descalabro da CVA, nome adquirido após a sua privatização para o grupo islandês Icelandair Loftleidr, vinha sendo desenhado desde há alguns meses, com a companhia, detida ainda a 39 por cento pelo Estado de Cabo Verde, a fraquejar nas rotas abertas aos diferentes destinos, efectuando amiúde voos vazios e altamente deficitários, acarretando prejuízos avultados que só não estarão evidentes ao grande público porque o Governo continuou a abrir a torneirinha do Tesouro para tapar os buracos criados por uma empresa de capital privado e teoricamente detida em 51% pelo grupo islandês.

O comportamento dos principais actores nesse negócio, sempre levantou dúvidas quanto à sua seriedade e eficácia, porquanto envolto numa misteriosidade suscetível de nos fazer sim questionar sobre a transparência do acto e vaticinar um fim precoce para uma companhia que foi anos a fio o porta-bandeira da Nação cabo-verdiana pelo mundo. O desenho está (quase) completo: a actual CVA pode estar com os dias contados.

Santiago Magazine, em vários artigos (notícias e opiniões) apontava para essa possibilidade, mas agora é oficial. Esta quarta-feira, o ministro dos Transportes, Carlos Santos, em entrevista à RCV sobre o impacto do Covid-19 para o projecto do Hub, garantiu que a plataforma giratória aérea no Sal não sofrerá tanto, mas deixou claro que, por causa do coronavírus a sobrevivência da CVA está sim em risco.

Segundo o governante, para uma companhia como a CVA ter de ficar 3 meses sem voar, ou seja, 25% do ano inoperante, a retoma seria extremamente difícil nas actuais circunstâncias.

Ora, o que o ministro não disse, e nem lhe foi perguntado aliás, é que a CVA estava numa curva descendente bem antes de aparecer o coronavírus. Desde o final do ano pelo menos, mas sobretudo no arranque de 2020, a CVA vinha recuando a fase expansionista de abertura de linhas por tudo o quanto é lado, e sem os prometidos 11 Boeings. Há cerca de dois meses publicamos aqui neste diário online uma notícia que dava conta de que a operadora aérea de bandeira nacional estava a fazer voos vazios para os EUA, Brasil e Nigéria que obrigou ao encerramento dessas rotas por deficitárias.

Com o surgimento desta pandemia do Covid-19, que paralisou todo o mundo, era evidente que a CVA iria se ressentir logo das medidas restritivas, mas cedo, aproveitaram para, a reboque do coronavírus, anunciarem o fechamento de linhas, num claro truque desonesto, diga-se, de pôr a culpa nos outros, isto é, na pandemia que parou companhias por todo o mundo.

É certo que as medidas tomadas, urbi et orbi, para conter a propagação do vírus contribuíram para deixar a CVA em terra, mas não justificam a situação financeira e comercial da companhia, vendida aos islandeses como solução para deixar de depender dos cofres do Estado. Errado, os contribuintes cabo-verdianos continuam a suportar uma empresa que o Governo deu de mão beijada à Icelandair Lofleidr, a mesma que foi contratada para preparar a privatização da TACV e que, no fim (na verdade desde o princípio e noticiamos aqui, com desmentidos oficiais), acabou por ficar com quem a reestruturou, ou nos enganou que o fez.

A CVA está pois em terra e o Governo, que não quer ser chamado a capítulo, tem culpa nisso, com elevado descaso para a empresa e para os cabo-verdianos. Senão vejamos: chegou esta quarta-feira ao país um avião da companhia aérea açoriana, SATA, com 6 toneladas de medicamentos e equipamentos para luta contra Covid-19. Trata-se, segundo o comunicado do Governo, do aparelho A321 Neo da SATA – Azores Airlines.

Este é o 6º voo da SATA que o Executivo já fretou, depois que apareceu o primeiro caso positivo de coronavírus, na ilha da Boa Vista, a 18 do passado mês de março. Antes o Governo havia fretado 5 voos nessa companhia aérea para o repatriamento de pessoas que se encontravam em Cabo Verde, quando foi decretado o encerramento geral de fronteiras aéreas. O que está errado aqui? O governo simplesmente preferiu alugar aviões à SATA em vez de fretar os Boeings que pertencem à CVA, onde é acionista, e que estão parados.

Neste momento, a CVA conta com três aparelhos em terra (um no Sal e dois nos EUA, sendo que uma dessas aeronaves está lá para troca de motor). Entretanto, enquanto o governo freta aviões da SATA para as viagens e negócios que necessita fazer, a Embaixada dos Estados Unidos de América em Cabo Verde, realizou dois voos de repatriamento dos seus cidadãos recorrendo aos aparelhos da CVA. Dá para entender?,

Pois bem, se os aparelhos da CVA podem fazer voo dos EUA, então por que é que não fazem voos do governo de Cabo Verde?

Com 3 aparelhos em terra, 40 pilotos, cerca de centena e meia de pessoal de cabine, sem contar o pessoal da manutenção, logística e outros sectores de atividade em casa sem fazer nada, é certo que a CVA vai afundar-se ainda mais do que já está. Porque não se quer ser honesto.

À hora em que este artigo estava a ser editado, a empresa ainda sequer tinha pago o salário de Março. Consta que a administração está atrás do governo que deve injectar o dinheiro necessário para pagar os salários em atraso dos trabalhadores, compromisso, de resto, assumido pelo ministro das Finanças e vice-primeiro ministro, Olavo Correia, quando anunciou que a CVA deve ser ajudada.

Estes factos demonstram que, afinal, a CVA só foi privatizada no papel. Há quase 2 anos, os islandeses passaram a proprietários de 51% da empresa, sim, mas a crer nas informações que têm vindo a público, de então para cá é o governo de Cabo Verde quem tem assumido os encargos do funcionamento da companhia.

Tanto assim é que, logo que anunciado o caso positivo do coronavírus entre nós, e o consequente encerramento das fronteiras aéreas, um dos primeiros anúncios do governo em relação aos impactos que tais medidas hão de provocar na economia foi precisamente alertar o país sobre a necessidade de socorrer financeiramente a CVA.

É a posição, diga-se em abono da verdade, legitima do dono em relação à sua empresa, o que, recomenda o bom senso, pode ser considerada justa e oportuna, particularmente em momentos de crise como este.

De modo que, os sinais que aqui fora se observam permitem perceber que a CVA continua ligada às torneiras do tesouro público para poder viver e fazer viver aos seus novos donos – os islandeses.

São negócios. Negócios em que o Estado tem-se colocado a jeito para ser estuprado, inclusive pagando os seus algozes. Ou melhor, negócios em que o Estado se estupra a si mesmo, numa atitude de masoquismo institucional e coletivo sem precedentes na gestão dos recursos públicos da era moderna.

As sucessivas decisões e medidas tomadas na gestão do dossier CVA não deixam margens para outras conclusões. Por exemplo, os afretamentos dos aparelhos da SATA: para além de não estarem muito claros a necessidade e oportunidade de tais afretamentos, temos que do outro lado da barricada, ou seja, do lado da SATA, está o cidadão português, Mário Chaves, hoje CEO daquela companhia.

Ora, Mário Chaves é um profundo conhecedor da CVA. Liderou a Administração da TACV, por nomeação a Icelandair, e tinha como principal incumbência preparar a companhia para a sua privatização. Com a alienação de 51% da acções ao grupo islandês, que viria a indicar outro CEO para a CVA, Chaves foi contratado para CCO (Chief Comercial Officer) da SATA, com a qual o Governo vem contratualizando voos excepcionais de repatriamento e, agora, sanitário.

Será que o governo não viu isso? Porque motivo a embaixada dos EUA em Cabo Verde se serve da CVA para realizar as suas viagens e o governo de Cabo Verde não? O que explica ter 3 aviões da CVA em terra? Preparação para saída sorrateira da CVA do mercado? O executivo haverá de ter mil e umas respostas, mas não as partilha com a sociedade – antes era porque o sigilo é a alma do negócio, hoje é porque o assunto sobre a mesa é o coronavírus

Enfim, como não duvidar da honestidade do Governo?

A direcção

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Redação