Martinho Ramos. "Temos que combater os desvios do funcionamento da democracia"
Entrevista

Martinho Ramos. "Temos que combater os desvios do funcionamento da democracia"

Já foi jogador de futebol - Travadores, Sporting da Praia, Desportivo, selecção de Cabo Verde - e uma das pessoas mais influentes na cidade do Porto, onde estudou e fez de anfitrião a dezenas de jovens estudantes na Invicta, conquistando respeito junto das instituições portuguesas pelas suas intervenções em defesa dos interesses da sua comunidade. Militou-se no MpD desde 1990, licenciou-se em Direito mas diz estar na política por convicção. Entrevista de Martinho Ramos (Martin) ao site Canosaba, que Santiago Magazine republica.

CANOSABA - É conhecido em Portugal como dirigente associativo e acolhedor dos jovens estudabntes que chegamn à cidade do Porti, mas antes joigou futebol.

Martinho Ramos - Na verdade em criança representei Achada Santo António nos encontros inter-bairros, representei vários clubes cabo-verdianos, nomeadamente o meu clube de coração Os Travadores, mas também o Sporting da Praia, o Desportivo da Praia, O Prédio, as selecções da Praia, Santiago e de Cabo Verde e ao nível universitário joguei pela Universidade Católica do Porto. Posso também partilhar que estive à experiência na Académica de Coimbra, em Portugal, tendo na altura como colegas o Latapy, o Chico Niquita, o Lewis.

- Está contente com o percurso político, social e económico que o seu país fez?

- Para um país cuja viabilidade, enquanto Estado-Nação, muitos duvidavam, e hoje ter abandonado o grupo dos Países menos avançados para se perfilar como País de rendimento médio é, na verdade, motivo de orgulho de qualquer cabo-verdiano. Estou satisfeito com o nosso percurso, tanto ao nível económico, social como ao nível politico. Temos uma democracia consolidada, as eleições realizam-se tranquilamente, a alternância politica faz-se num quadro de respeito constitucional, as instituições da República funcionam normalmente, os tribunais são independentes e os partidos políticos participam na formação da vontade politica num quadro de respeito pela constituição e a comunicação social é livre e independente. Apesar de a nossa democracia formal funcionar com normalidade sou de opinião que ainda precisamos aprofunda-la mais. Por exemplo, no que tange á abertura dos partidos políticos á sociedade, na renovação dos protagonistas políticos ao nvel do mandato de deputados, etc. Não posso concordar que uma democracia funcional tenha deputados com mais de quatro mandatos na assembleia nacional.

- Hoje, és um político militante?
- Aderi ao partido politico em 1990, ano da fundação do MpD, do qual sou militante. As razões subjacentes tinham a ver com a ditadura do regime do partido único, com a ausência das liberdades e garantias dos cidadãos, com a ausência de uma economia de mercado aberta e sobretudo com a inexistência de um regime democrático no país.

- Qual é a ideologia do seu partido e o que pensa da classe política em Cabo Verde?

- O meu partido enquadra-se ideologicamente no grupo dos partidos do centro-direita. A minha opinião em relação às ideologias é de que existe uma zona de confluência de ideais em que a direita e a esquerda se confundem. Refiro-me às medidas politicas de intervenção social por exemplo. Mas mais do que isso, estou também convencido de que o momento económico em que os países atravessam ditam as melhores estratégias politicas não importando as razoes ideológicas. Entendo que a classe politica cabo-verdiana tem-se portado bem, mas existem aspectos que devem ser melhorados. Por exemplo, temos que combater os desvios do funcionamento da democracia, reforçar o combate aos crimes económicos, tornar eficientes as nossas agências de regulação, fazer com que os tribunais sejam mais céleres nas suas decisões, aprimorar as medidas de combate aos crimes de evasão fiscal e combater sem trégua a corrupção no país.

- Considera a sociedade civil cabo-verdiana esclarecida e participativa?
- A sociedade cabo-verdiana tem-se revelado cada vez mais esclarecida e mais participativa. As associações cívicas têm tido um papel ativo na formação das opiniões nos órgãos públicos estatais com total liberdade, as manifestações são pacificas e ordeiras, os agentes políticos funcionam num estrito respeito pela diferença e no quadro legal instituído no País. O direito á greve é respeitado e as pessoas expressam livremente as suas opiniões. Perante este quadro tenho que concordar com o evidente. A sociedade civil cabo-verdiana é sim esclarecida.

- Fala-se muito, estes tempos, da parceria estratégica com a União Europeia. Que vantagens vê nisso?
- As vantagens são muitas desde logo o dialogo politico sai reforçado, o surgimento de investimentos geradores de emprego em cabo-verde, o reforço da cooperação descentralizada com ganhos ao nível do desenvolvimento municipal assim como as iniciativas que visam ajudar a Reforma da Administração Pública. Existem também ganhos ao nível turístico e ao nível de intercâmbios culturais. Trata-se de uma parceria boa.

- O que nos diz sobre o posicionamento político de Cabo-verde em relação à África?
- Cabo-verde é membro da União Africana, membro da CEDEAO e quer afirmar-se cada vez mais na sub-regiao africana a que pertence. Importa também referir que cabo-verde já manifestou interesse através do acordo que assinou a vir aderir ao ZLECAF (Zona de Livre Comercio Continental Africana).

- Licenciou-se na Universidade Católica em 2002 e não regressou a cabo-verde como muitos fizeram. Poirquê só agora regressa?
- O meu regresso a Cabo Verde foi sendo adiado em virtude de circunstâncias diversas. Na Universidade, julgo ter sido único cabo-verdiano que se submeteu a umas eleições tendo ganho e posteriormente assumido a responsabilidade do pelouro do desporto que na altura movimentava muitos recursos financeiros.

- Pois, acabou sendo presidente da Associação Cabo-verdiana do Norte.
- Na verdade, o meu gosto pelo associativismo nasceu em Cabo Verde com o surgimento do movimento BULASA que liderei coadjuvado por dois amigos. A minha chegada à liderança da Associação Cabo-verdiana do Norte foi por eleição e mediante apresentação de um projecto associativo que tinha como objectivo central duas ideias. Primeiro,n apoiar a inclusão social, económica e politica da comunidade cabo-verdiana e uma segunda ideia tinha a ver com a promoção de Cabo Verde, suas gentes e sua cultura no Norte de Portugal. Não fico de maneira alguma decepcionado porque tenho plena consciência de termos cumprido esses objectivos.

- Quais foram as suas realizações enquanto dirigente e líder associativo no norte de Portugal.
- Penso ter concretizado com apoio dos meus colaboradores as minhas ideias junto da minha comunidade. Os filhos dos nossos conterrâneos no norte passaram a ter acompanhamento de tutores sociopedagógicos no seu processo de formação, passaram a ter programas de confraternização e de contacto com a cultura cabo-verdiana, os nossos idosos também mereceram a minha atenção, os jovens, os estudantes das escolas profissionais e universitários também faziam parte da minha preocupação. È justo deixar aqui claro que trabalhamos para a comunidade cabo-verdiana sem qualquer apoio dos governos de cabo-verde e só devemos a nós e a nossa capacidade criativa ao nível da elaboração de projectos que submetíamos ao financiamento do governo Português
Verdade seja dita, a Associação Cabo-verdiana do norte que liderou durante vários anos e promoveu varias iniciativas nomeadamente conferencias, colóquios, workshops, promoveu encontros com varias instituições nomeadamente o SEF, Segurança Social e o ACT, chegou a apoiar muitas famílias, formação para jovens, colocou muitos no mundo do emprego, recordo-me que também deu formação as empregadas domésticas, etc. etc.

- Organizou muitos torneios de futebol internacionais da Diáspora cabo-verdiana coisa que nunca tinha sido feita em Portugal, a gala Guiné-Bissau cabo-verde. Fala-nos deste período da sua vida cívica…
- Obrigado por ter-me recordado de tantas iniciativas cívicas que protagonizamos tendo como foco o exclusivo interesse de uma comunidade que encontramos completamente abandonada à sua sorte. A história não se apaga com facilidade e os seus actores ficam para posteridade.
É verdade que organizamos todos os eventos que citou na sua pergunta e é também verdade que fomos os primeiros a organizar o Torneio Internacional da Diaspora Cabo-Verdiana em Portugal e porventura na Europa com participação de equipas Cabo-verdianas. Devo partilhar agora que a nossa intenção era institucionalizar o torneio mas infelizmente não encontramos vontade da parte dos governos de cabo-verde.
De todos os eventos que promovemos sempre destaco a formação que desenhamos e implementamos para as nossas empregadas domesticas sob o slogan “Quero ter uma segunda oportunidade para poder ser uma médica, uma advogada ou uma engenheira para regressar ao meu País como um quadro bem formado e não como uma doméstica”.

- Temos conhecimento que colocou alguns trabalhadores cabo-verdianos a trabalhar nos centros de apoio aos imigrantes /CNAIS. Era uma estratégia associativa ou era através de protocolos de colaborações?
- Para dizer a verdade, os dois objectivos são complementares, na medida em que colocando mediadores socioculturais nos Centros Nacionais de Apoio aos Imigrantes por um lado estávamos a dar visibilidade a outros níveis à nossa comunidade, através da prestação de serviços qualificados por jovens cabo-verdianos auferindo um salário acima da média na altura e, por outro lado estávamos a dar visibilidade a uma comunidade que precisava ser ouvida e respeitada.
É também verdade que tendo mediadores socioculturais no CNAI as relações com o Governo e com as Instituições públicas portuguesas ficavam facilitadas e consequentemente os apoios e financiamentos surgiam com naturalidade.

- Habituou-nos a assistir o seu envolvimento nas disputas políticas em Cabo-verde. Perdeu algumas eleições, mas ao que parece também ganhou algumas. Recebeu muitos políticos cabo-verdianos no Porto e organizou muitos eventos de natureza política com a comunidade. Como vai a sua vida política e como vai o seu país ao nível político?
- A minha vida politica tem passado por um processo de readaptação á forma de se fazer politica em Cabo Verde. Tenho sido um observador atento mas não desinteressado.
Na politica é preciso muito jogo cintura, mas sem descaracterizar a politica. A intriga e a baixa politica não podem fazer escola num país onde a democracia funciona na sua plenitude. Estou na politica por convicção, acreditando nos meus ideais e nos valores que defendo. Jamais serei submisso ou mero caixa de ressonância na politica. A minha vida politica vai bem e o meu País tem dado passos seguros ao nível das suas relações politicas na arena internacional e ao nível interno o novo governo vem implementando politicas assertivas que têm tido reflexos positivos na economia do país, com criação de novos empregos e uma clara melhoria do ambiente económico no país.

- Também chegou a ser candidato autárquico a Câmara Municipal do Porto numa posição elegível.
- Como disse antes, a minha vida sempre foi de disputa, combate por valores. No meu bairro, no liceu, nos campos de futebol, na universidade. Com momentos de intermitência, é certo, mas sempre atento, não durmo. Porventura terei sido o primeiro ou um dos primeiros cabo-verdianos a ser candidato autárquico na cidade do porto numa posição elegível. Na verdade fui convidado para fazer parte da candidatura porque reconheceram o meu envolvimento activo nas causas a que acreditava e, por outro lado, porque as minhas relações de amizade em Portugal são fortes e multifacetadas. Devo também partilhar que as minhas amizades feitas na universidade e nos movimentos associativos a que pertenci tornaram-me numa pessoa mais conhecida e respeitada na cidade do porto. Mas não só por causa disso. Acredito que foi também por causa do meu trabalho que fui convidado. Costumo dizer que nasci livre e que a liberdade para mim tem um significado que transcende a liberdade formal inscrita nas constituições.
Penso que precisamos avançar mais na efectivação das liberdades e garantias inscritas na nossa constituição. Ao formalismo devemos acrescentar acções concretas para que o formal se torne efectivo.

- Fala-se muito da despartidarização da administração pública e este debate tem arrefecido tudo. O que pensa acerca deste processo e porque que a mudança teima em não chegar?
- Sempre disse e continuo convencido que o grande cancro da administração pública cabo-verdiana não é a sua partidarização. Insistir que o mal está na excessiva partidarização da Administração publica é de certa forma manifestar desconhecimento da sociedade cabo-verdiana e da sua história. Em cabo-verde quase toda gente tem uma ligação familiar com este ou com aquele governante acresce ainda que entre os governantes independentemente das suas origens políticas existe aquilo que chamamos de troca de favores. Mas isso é muito africano. Hoje ajudas a empregar um familiar de um amigo, amanhã ele ajuda-te a empregar um familiar teu. Tenho para mim que o grande mal da nossa administração é a intriga e a impreparação de alguns gestores públicos para o cargo. Dirimir conflitos ou tensões em contexto laboral requer do gestor público habilidades e sobretudo capacidade para agir com imparcialidade tendo sempre em conta o contraditório.
Por ultimo importa esclarecer que na administração publica cabo-verdiana continuaremos a ter a convivência de funcionários com militâncias politicas diferentes.

- Foi alguma vez convidado para dar o seu contributo ao nível da administração publica cabo-verdiana? Acha-se com capacidade para assumir cargos em Portugal por exemplo a nível consular?
- Duas observações prévias: primeiro, o exercício consular não é uma opção individual; segundo, não ando em busca dessas coisas. De qualquer modo – e porque pergunta – respondo-lhe com humildade. Penso que á semelhança de muitos colegas que tiveram essa oportunidade se surgir algo semelhante para mim abraçarei com dedicação e, quero crer que não desapontarei. O problema não se coloca ao nível da capacidade porque eu consegui sozinho mostrar que tenho mais do que capacidade para num quadro maior e com orçamento garantido fazer muito mais. Respondendo directamente a sua provocação diria que não seria coisa de outro mundo. Infelizmente nessas escolhas concorrem juízos de valores de personalidades que não conhecem as pessoas e tão pouco as suas realizações. Quero acreditar que tarde ou cedo a moeda boa começa com naturalidade a empurrar a moeda má. Tenho pena que tudo isto acontece debaixo dos olhares e silêncio dos homens do bem. Até quando!!!

- Por tudo que já fez no Norte e em Portugal, que é do conhecimento público parece que é o verdadeiro Cônsul de Cabo Verde.
- Muito obrigado pela sua constatação. O que lhe posso dizer é que se eu tivesse mais ovos ou se as minhas galinhas me tivessem dispensado mais ovos teria feito mais e melhores omeletes. Os factos estão aí e não se apagam. As pessoas viram e assistiram. Tudo o resto tem a ver com a boa ou má vontade dos homens em reconhecer o óbvio. Eu fiz a minha parte e nunca pensei em qualquer contrapartida. Basta-me o reconhecimento das evidências por aqueles que se julgam credíveis.

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