Neste dia da Mulher Cabo-verdiana, 27 de Março, Santiago Magazine conversou com a jornalista, escritora e activista pelas causas feministas, Chissana Magalhães. O resultado é esta entrevista profunda que não vai deixar ninguém indiferente.
Santiago Magazine - Mulher, mãe, jornalista, activista de género e uma voz ativa a favor dos direitos das mulheres. Este é o seu curriculum público. Mas, conta ao Santiago Magazine quem é a Chissana Magalhães?
Chissana Magalhães - Eu costumo citar a frase do poeta Mário de Sá e dizer “Eu não sou eu, nem sou o outro. Sou qualquer coisa de intermédio”. Para dizer que nós não somos bem aquilo que pensamos que somos e nem aquilo que os outros pensam de nós. A verdade está algures no meio (riso). Mas gosto de pensar que sou uma humanista, uma defensora dos direitos humanos, uma pessoa que almeja a igualdade de direitos e oportunidades para todos, e sou também uma pessoa polivalente, criativa q.b.,e alguem com uma eterna vontade de aprender (se calhar mais de forma autodidata do que seguindo o ensino formal). Quanto a titulos, também me identifico como escritora, para lá do conceito conservador, poeirento e snobe de certos intelectuais que não transitaram para o século XXI..
– Tem sido uma voz ativa a favor da igualdade de género, dos direitos das meninas e das mulheres, através do jornalismo com muitas reportagens e artigos sobre a situação das mulheres em Cabo Verde. Porquê conhecer e explorar as histórias e as trajetórias das mulheres?
É importante termos nos midia mais presença de mulheres, mais histórias de mulheres. Por uma questão de representatividade e de equilibrio. Mulheres são metade da população mundial e praticamente metade da população caboverdiana então nada mais justo do que termos na midia, ao lado dos homens, a sua voz, as suas histórias e as suas causas. Até aqui, pela análise que tenho feito, e à semelhança do que acontece em outras realidades, os grandes espaços mediáticos são dominados pela presença masculina, pela voz dos homens.
A mudança está a acontecer mas, como em quase tudo, muito lentamente. Ter mais mulheres em destaque, para além de contribuir para estimular e empoderar outras mulheres e meninas também permite que os decisores públicos estejam sintonizados com aquilo que são os problemas e as demandas de um segmento significativo da população. Mas falar de Género não é só falar de mulheres e eu. Mais recentemente, vinha preparando pautas sobre transgéneros e não-binários que, pelas minhas actuais circunstâncias, ainda não puderam ser publicadas.
- Ouviu, conheceu e seguiu algumas trajetórias de vida dessas mulheres que são verdadeiras histórias de derrotas, de superações e de êxitos. Que lições podemos apreender com essas mulheres?
Como jornalista tenho o privilégio de carregar comigo estas histórias e muitas delas marcaram-me profundamente. Até hoje me arrepio com as histórias que me foram confiadas quando fiz a reportagem sobre violência obstétrica. Até hoje me emociona a força de vontade da Dona Maria, a sexagenária sobrevivente de um AVC que começou a frequentar a escola.
Até hoje me orgulho da coragem das duas jovens que me confiaram as suas histórias de vitimas de assédio sexual e da ousadia das mulheres que há cerca de três anos estavam a começar a firmar-se na área do cinema, tradicionalmente dominada por homens. Então as lições são essas: força, coragem, ousadia... Não ter medo de fazer ouvir a nossa voz, ter coragem para denunciar situações de abuso e violência, para quebrar padrões e moldes, solidarizarmo-nos e persistir nos nossos sonhos.
- Defendeu e defende, nas suas pautas, as questões de igualdade e emancipação das mulheres. Como tem sido esta experiência numa sociedade “machista” como a nossa?
Nas pautas jornalísticas, o recomendado é apresentar factos ou narrar histórias de terceiros de forma isenta. Mas sou sim uma defensora convicta da igualdade e equidade de género e da emancipação das mulheres. Ou seja, sou uma feminista (conceito ainda muito mal compreendido por muita gente). Pelo machismo ainda muito presente na nossa sociedade patriarcal - significando que o poder é (ainda...) exercido pelos homens – continua a não ser fácil assumir-se feminista e activista pela Igualdade de Género. Levamos com rótulos, somos em algumas situações hostilizadas e até ostracizadas em certos contextos.
Claro que depende de pessoa para pessoa. Pessoalmente já senti em certas ocasiões uma antipatia latente ou declarada, tanto por parte de homens como de mulheres, e sou frequentemente “brindada” com manterrupting e mansplainning e claro, a “velha” estratégia da difamação. Esta é uma das razões de muitas mulheres fugirem de estar no espaço público e fazer ouvir as suas vozes, ou optarem por uma presença mais suave. Mas algumas de nós têm que “dar o corpo às balas”, chegar à frente para que certas coisas mudem.
Uma coisa que tem acontecido com muita frequência em momentos de debate promovidos por iniciativas feministas é ouvirem-se vozes a reclamarem que os homens também têm problemas, também precisam de atenção e que não se deve abordar as problemáticas de género só na perspectiva feminina. Bem, eu até fiz reportagens a abordar a perspectiva masculina mas, o que tenho dito sobre estas chamadas de atenção é que os homens precisam seguir o exemplo das mulheres e começar a, eles próprios, trazer estes problemas que os afligem para o espaço público, a formarem grupos e promoverem debates e, na academia, a investigar estes fenómenos. O grupo Laço Branco já o faz. Um ou outro sociólogo já o faz. Que surjam mais iniciativas. Mas não têm que exigir que sejam os grupos feministas ou as mulheres a fazê-lo.
- Apresentou recentemente a iniciativa “CENA”. Fale-nos um pouco deste projeto. Como surgiu e em que consiste?
A CENA – Mostra de Filmes Realizados por Mulheres é um projecto que surgiu e foi concretizado em poucos meses. Bem, há uns três anos eu tinha feito uma reportagem a dar conta de que vinha crescendo o número de mulheres caboverdianas a dedicarem-se ao cinema, quer como realizadoras, argumentistas ou produtoras.
Mas foi com uma viagem ao Brasil para participar no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, em Dezembro passado, que me surgiu a ideia de canalizar a experiência vivida para algo que pudesse ser útil. E então decidi criar um evento que reunisse filmes de autoria feminina. O objectivo para além de visibilizar estes filmes e as suas autoras – já que muita gente desconhecia que houvesse mais do que duas ou três caboverdianas a fazer filmes – é impulsionar mais mulheres para esta área criativa. Foi uma boa experiência.
- Quais os maiores desafios e dificuldades as mulheres têm enfrentado para fazer cinema em Cabo Verde?
Creio que os mesmos que os homens. A maior dificuldade ou desafio é a nível financeiro. É uma área que ainda está a firmar-se então dificilmente encontra-se mecenas e investidores. A Associação de Cinema e Audiovisual de Cabo Verde abriu nestes últimos anos alguns editais e concursos mas são ainda valores simbólicos, muito longe do que se atribui em outras paragens. Espera-se que a Lei do Cinema, a ser aprovada no parlamento, venha regular e permitir o financiamento do sector. Outro desafio, para os cineastas que privilegiam a ficção, é ter uma maior diversidade de actores bem formados.
Alguem apontava há dias o desconfortável fenómeno do colorismo em “Os Dois Irmãos”, uma história passada no interior de Santiago, onde os actores nos papeis protagonistas, de pele clara e cabelos lisos, não tinham o perfil caracteristico das pessoas dessa região do país. Provavelmente o casting privilegiou a experiência e competência dos actores ao invés do perfil fisico... Então é preciso apostar fortemente na formação intensa de actores com os mais variados tipos fisicos para que este tipo de problemas não se apresente.
Voltando às mulheres, penetrando este meio há a oportunidade de diversificarem as histórias no cinema cabo-verdiano, de criarem mais filmes protagonizados por mulheres e que as represente com profundidade.
- Além da organização do CENA, participou enquanto realizadora com um filme sobre Amílcar Cabral. Quase 45 anos após a independência e 47 sobre a morte de Cabral, acha que o legado de Amílcar Cabral continua atual? Cabo Verde reconhece devidamente o legado de Cabral? Qual o balanço que faz desse projeto?
O legado intelectual de Amílcar Cabral continua actualíssimo. Inclusive aquilo que ele disse sobre as mulheres. Se Cabo Verde reconhece devidamente este legado? Poderia reconhecer mais. Há tentativas, há avanços e recuos. Soube há dias que já não funciona a Cátedra Amílcar Cabral na universidade pública. Havia intenção de se avançar com a inscrição dos seus escritos junto à Unesco mas algum ruído na comunicação entre as entidades caboverdianas que deveriam trabalhar conjuntamente o dossier terá levado a um stand by.
A Fundação Amílcar Cabral vai promovendo iniciativas. Mas... sabe a pouco. E faz falta conhecer e reconhecer mais. Até para não termos depois situações como aquela recente de um representante da nação a desvalorizar a figura e o legado, talvez pela conotação que se faz deste vulto nacional a um partido político que ele nem chegou a conhecer.
Quanto à curta-metragem “Djassi”, quis ir por um caminho diferente e abordei a figura histórica pela perspectiva das crianças. Dei voz a um grupo de crianças e deixei-as livres para falarem aquilo que sabem e não sabem sobre Cabral e a sua luta. Depois do prémio ganho com o filme, fizemos a estreia na mostra CENA e agora estou a cogitar reeditá-lo numa versão mais longa, mas ainda curta-metragem.
- Como avalia o trabalho dos sucessivos governos quanto à promoção de políticas públicas na promoção da igualdade de género e dos direitos das mulheres?
Creio que desde que a Igualdade e Equidade de Género entrou para a agenda política podemos falar de avanços. Lentos, em alguns casos, mas existentes. Há grandes marcos a registar como a criação da Lei da Violência Baseada no Género, faz agora 10 anos, e mais recentemente a aprovação da Lei da Paridade. Recuo ao período pós-independência, regime do partido único para enaltecer a criação da Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez.
Infelizmente, esta lei que garante às mulheres cabo-verdianas o direito de decidir sobre os seus corpos e deveria servir principalmente para proteger as mulheres de camadas sociais mais vulneráveis, devido aos tabus e à hipocrisia da sociedade, está precisamente a atingir de forma violenta jovens mulheres destas camadas que, por desconhecimento dos seus direitos e medo do atendimento que possam ter nos serviços de saúde, recorrem a métodos perigosos e arriscam as suas vidas em abortos clandestinos e inseguros.
Um paradoxo quando temos tanto que nos orgulhar nos avanços registados no que se refere às politicas de protecção da saúde materna e infantil. Falando em politicas públicas de promoção da igualdade de género e dos direitos das mulheres a revogação da medida que obrigava alunas grávidas a abandonarem a escola e a instituição de uma licença maternidade especial para as jovens mães estudantes são também ganhos a registar. Nesta área os próximos combates serão pelo aumento da licença de maternidade e de paternidade, que se advinha duro porque o patronato caboverdiano não é muito sensível a estas questões.
Para mim, um grande défice – um recuo até em alguns cenários – é na questão da representatividade nos espaços de decisão. Neste legislatura que se aproxima do fim cresceu muito pouco a presença de mulheres no parlamento e quanto ao governo – vinhamos de um cenário de um executivo paritário e recuamos. Esperemos que a entrada em vigor da Lei da Paridade venha de facto corrigir isto e que realmente ter mais mulheres em cargos de influência e decisão implique avanços em questões que ainda atingem particularmente as mulheres. Como por exemplo dado por alguem, uma maior justiça tributária para as mães solo, mulheres que sustentam os filhos sozinhas.
- Por que acha que as mulheres têm pouca participação pública e política?
Um: por uma questão cultural, de representatividade. Até aqui os homens dominam a arena política, é natural que mais homens se sintam impelidos a também seguir esta carreira do que mulheres. Se as mulheres náo vêm muitas mulheres nessa área menos tendência terão para segui-la. Por isso estimular a quebra dos padrões é importante. Dois: por causa da pobreza de tempo. Está estatisticamente provado que as mulheres continuam a ser as mais afectadas pela pobreza do tempo, tendo que desdobrar-se em vários papeis, inclusive consumir várias horas em trabalho doméstico não remunerado. Ter uma participação pública activa ou estar na politica exige grande dedicação e tempo. Muito tempo.
As mulheres saem penalizadas por culturalmente ser-lhes exigido o cuidado do lar, das crianças, dos idosos e até dos maridos/companheiros. Três; por aquilo que disse antes, a violência que advém de uma presença no espaço público. As mulheres tendem a distanciar-se mais do risco de ser-se atacado, difamado, caluniado que infelizmente acompanha muitas vezes o ser-se uma figura pública e politica. Os politicos, em geral, têm baixa reputação, o jogo político tende a ser violento, e as mulheres mais do que os homens optam por não envolver-se em tal cenário.
Mas há também, claro, o Clube do Bolinha (personagem da banda desenhada Luluzinha que criou um clube só para rapazes) a funcionar. Há sim o grupo de homens que só chama outros homens para o clube. Não talvez por assumida misoginia mas por falta de referências (pela maior discrição das mulheres, o não estarem mais visiveis nos espaços mediáticos) e por insteresses outros, por estratégia. O objetivo final não é bloquear mulheres. É (ter) poder. E se são homens os que maioritariamente detêm vários tipos de poder, a tendência é chamar outros homens de poder para aquela esfera e assim beneficiarem-se mutuamente.
- O facto de ser ativista de género, sua experiência com mulheres e enquanto mulher, tem suscitado algum tipo de crítica e autocrítica?
O que disse acima quanto aos “dissabores” de ser feminista e activista aplica-se aqui. A critica e autocritica que faço – porque sempre que aponto certo tipo de falhas prefiro falar no colectivo: é mais empático, mais “elegante” – é de que precisamos de competir menos entre nós, apoiarmo-no mais e aceitar as diferenças. Ainda noto muito a idolatria por um perfil de mulher doce/dócil, silenciosa ou que manifesta-se apenas sobre temas “femininos” e “positivos”, enquanto se critica ou rejeitam as mulheres mais opinativas e combativas. Noto um certo incómodo por parte de algumas mulheres em relação a outras que têm alguma visibilidade, algum destaque. Aceitam como natural que um homem tenha essa visibilidade e destaque mas por vezes acontece, mesmo a própria mulher que já é referência numa área, desenvolver uma grande rivalidade e antipatia por outras que emergem nesse nicho. Talvez isso também aconteça entre os homens, não sei. Mas a minha percepção é de que é mais forte entre as mulheres por ainda estarmos a nos habituar a ter mulheres com este nível de visibilidade e destaque nestas esferas.
Outra coisa a ter em atenção é o lugar de fala. Temos que estar atentas ao facto de que nem todas as mulheres têm o mesmo background e veem a mesma realidade. Resistir à tentação de analisar os problemas do género pelo nosso umbigo, pela nossa realidade que por vezes é de muitos privilégios. Ou seja, devemos exercitar mais a empatia, o colocar-se na pele do outro e não exigir a mesma capacidade de resposta de quem não tem as mesmas oportunidades e os privilégios que nos permitem ser umas mais empoderadas do que outras.
- É mulher, profissional, mãe, ativista social. Onde encontra inspiração e força para fazer tudo o que já nos contou?
Todos nós somos multidimensionais. Bem, talvez uns consigam ser mais do que outros. Não sinto que já tenha feito tanto assim... Pelo contrário, sinto sempre que preciso fazer mais. Onde é que busco inspiração e força? Em tudo. Até as criticas me impulsionam. Claro que a minha família me dá força. Querer ser um modelo para a minha filha me dá força. Estar em contacto com a natureza e consumir arte nas suas várias formas me inspira. Testemunhar as lutas e vitórias de outras mulheres me inspira.
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