Segredo de Justiça. Afinal, por que os arguidos queriam incriminar Paulo Rocha? Conheça os argumentos do Ministério Público, que fala em “inimigos públicos” do ministro
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Segredo de Justiça. Afinal, por que os arguidos queriam incriminar Paulo Rocha? Conheça os argumentos do Ministério Público, que fala em “inimigos públicos” do ministro

O despacho de acusação do processo de violação do segredo de justiça no conhecido caso Paulo Rocha fala de inimizade “publicamente conhecida” entre um inspector da Polícia Judiciária, suposto cabecilha da narrativa anti-Rocha, e o actual Ministro da Administração e refere ainda a um juiz, “outro inimigo público” do governante, que não morre de amores por Paulo Rocha porque incluiu sua viatura nas investigações ao processo Lancha Voadora.. Saiba agora como o Ministério Público, através do procurador Nilton Moniz, juntou as peças para concluir que um grupo de magistrados e inspectores da PJ, acrescido de jornais e jornalistas, quis linchar Paulo Rocha na praça pública, com o simples móbil de quererem vê-lo fora do Governo.

Fomos ao fundo dos argumentos que levaram o Ministério Público, através do despacho nº 09/2024/2025, a deduzir acusação contra os inspectores da PJ, André Semedo, e João Emílio Tavares, e o procurador da República, Ary Varela, por violação do segredo de Justiça, e os jornalistas e respectivos jornais, Herminio Silves e Daniel Almeida, de Santiago Magazine e A Nação.

Quais as provas? Vamos por partes a ver se as há.

O documento de 30 páginas A4, elaborado pelo procurador Nilton Moniz, do Departamento Central da Acção Penal, começa por esclarecer que os Autos de Instrução nº 6379/2015, que investigava a morte violenta de Zezito Denti d’Oru e que estava sob segredo de justiça, estava a cargo do procurador Felisberto Ho Chi Minh Robalo desde o dia 21 de Maio de 2015. Este magistrado manteve a titularidade do processo até o dia 28 de Dezembro de 2020.

“Nessa data (n.d.r. Dezembro de 2020, sete anos após os factos ocorridos em cidadela), a testemunha Gerson Lima (n.d.r. inspector da PJ) ainda não tinha prestado declarações nos autos, só o tendo feito no dia 2 de Julho de 2021, perante o procurador da República, o ora arguido Ary José Alves Varela, cujo conteúdo do Auto de Inquirição de testemunha Gerson Lima foi amplamente reproduzido no jornal Santiago Magazine no dia 28 de Dezembro de 2021 e no jornal A Nação nº 750, datado de 13 de Janeiro de 2022 e também sido encontrado uma fotocópia do mesmo em cima da secretária no gabinete do arguido André Semedo (n.d.r inspector da PJ)”, lê-se praticamente no início do despacho de acusação emitido no passado dia 20 de Junho, acrescentando que “durante todo o período em que os autos estiveram na titularidade do procurador Felisberto ho Chi Minh, os mesmos foram guardados no cacifo no gabinete do mesmo magistrado do Ministério Público, sem nunca ter ido a secretaria, sendo certo que a ajudante de escrivão cumpria os despachos no gabinete e na presença daquele magistrado”.

Ary Varela, continua o texto da Acusação, assume o processo no dia 29 de Dezembro de 2020, mantendo a mesma ajudante de escrivão. “No dia 10 de Março de 2021, o arguido Ary Varela começa a tramitar os Autos, ordenando a junção de dois recortes do jornal A Nação nº 373, de 16 a 22 de Outubro de 2014 e nº 373, de 23 a 29 de Outubro de 2014, onde constam a entrevista da testemunha Adelino Semedo e Edna Mendes Cabral, respectivamente amigo e esposa de José Lopes Cabral (Zezito Denti d’Oru), na qual acusam os efectivos da Policia Judiciária de terem executado o Zezito”.

A acusação revela ainda que no dia 16 de Abril de 2021, “o arguido Ary Varela ordena novamente a junção daos autos de mais um recorte de jornal, desta feita do Santiago Magazine, publicação online do dia 13 de Abril de 2021, com o título «Suspeições sobre Paulo Rocha na morte de Zezito Denti d’Oru. Será que o Governo de cabo Verde tem um criminoso no seu seio?»”.

Curiosamente, o arguido Ary Varela começou a tramitar os autos com recortes dos dois jornais que mais tarde vieram divulgar integralmente certas peças processuais e conteúdo de declarações prestada pela testemunha Gerson Lima”, aponta o magistrado do MP, Nilton Moniz.

Durante a sua investigação, Moniz recorreu a escutas telefónicas de contactos estabelecidos entre Ary Varela e o inspector João Emílio Tavares e entre Varela e Gerson Lima, todas “captadas pela antena Radio FM Praia”, mas sem mencionar o teor da conversa.

Então conclui o seguinte: “Até então, as testemunhas Gerson Lima e António das Neves eram pessoas estranhas ao processo e ao próprio arguido Ary Varela, o que indicia que a pessoa que forneceu o nome e os contactos deles foi o arguido João Emílio Tavares, que acabara de falar pelo telemóvel com o arguido Ary Varela, sendo certo que o arguido João Emílio Tavares, conjuntamente com o arguido André Semedo vinham verbalizando publicamente que o Paulo Rocha e demais efectivos do GOT-PJ (Grupo de Operações Táticas) assassinaram o Zezito Denti d’Oru e que tinham elementos de prova que estava, dispostos em fornecer ao Ministério Público”.

Escreve Moniz que “o arguido André Semedo, em mensagem enviada ao Ministro da Justiça em 20 de novembro de 2014 (n.d.r. pouco mais de um mês após o assassinato de Zezito Denti d’Oru), pelas 17 horas e 48 minutos, afirmou que o GOT foi transformado em algo parecido com esquadrão da morte nas mãos do senhor Paulo Rocha” (n.d.r. na altura director nacional adjunto da PJ e tido como líder do GOT).

Segundo o despacho de acusação que vimos citando, Ary Varela e o inspector João Emílio tronaram-se amigos quando ambos trabalhavam na ilha do Sal, e “por conta dessa amizade o arguido João Emílio Tavares passou a exercer influência sobre o arguido Ary Varela, que permaneceu até os dias de hoje”.

Inimigos públicos

“O arguido João Emílio Tavares é também amigo do arguido André Semedo desde a sua incorporação nas fileiras da PJ na década de 1990, sendo o arguido André Semedo um inimigo público do Paulo Rocha, pessoa acusada por Gerson Lima nas suas primeiras declarações e pelo arguido André Semedo, como sendo o arquitecto da execução do Zezito denti d’Oru”, realça o representante do MP, Nilton Moniz, que logo a seguir sublinha que “a inimizade entre o arguido André Semedo e Paulo Rocha é notório e publicamente conhecida há mais de 15 anos”.

“Para além de o arguido André Semedo verbalizar a todos quantos lhe rodeiam a sua inimizade com Paulo Rocha, ainda a manifestou em várias missivas endereçadas a várias entidades, nomeadamente ao antigo Ministro da Justiça, ao antigo director nacional da PJ, ao antigo PGR, ao Procurador da Comarca de São Vicente que instruía o processo ‘Perla Negra’ e ao próprio Paulo Rocha, quando exercia as funções de director nacional adjunto da PJ, bem como em jornais da praça”, conta-se no despacho de acusação.

E o procurador Nilton Moniz afirma por fim: “por conta desta inimizade, o arguido André Semedo não tem medido esforço para provocar a destituição do Paulo Rocha do cargo de Ministro da Administração Interna, tendo-o manifestado publicamente em vários espaços e perante várias pessoas”.

A meio do documento, Nilton Moniz imerge no testemunho do inspector Gerson Lima, que, de facto, tem nuances interessantes. É que Lima foi quem, em quatro horas de gravações, entre 2 de Julho e 15 de Julho de 2021, revelou ao procurador Ary Varela, tudo o que terá sucedido no dia do assassinato de Zezito Denti d’Oru e elencou um a um os nomes dos efectivos que estiveram no terreno, apontando de entre eles o nome Paulo Rocha.

Só que seis meses depois, Gerson Lima desmentiu tudo, afirmando, de acordo com o despacho de acusação em referência, que foi “o procurador Ary Varela o responsável por aquelas acusações e que este já tinha os nomes dos efectivos da PJ acima descritos num pedaço de papel, tendo ele (Gerson) apenas confirmado que são os integrantes do GOT, sem confirmar que foram eles que orquestraram e executaram o Zezito”. Gerson passou então de testemunha a réu pela prática de crime de falsidade de declarações em processo.

Entretanto, vale referir aqui que entre 2 e 15 de Julho de 2021 sucederam vários eventos. Por exemplo, o inspector Gerson Lima foi detido por alegado envolvimento com associação criminosa para o tráfico de droga e foi sujeito a processo disciplinar interno que resultou na sua suspensão de funções. É posto em liberdade e imediatamente reintegrado supostamente por ordem da ministra Joana Rosa, segundo Santiago Magazine reportara na altura.

“Outro facto digno de registo que intermediou a data da suspensão do Gerson Lima das funções de inspector e a data da sua reintegração, para além de terminar de prestar declarações a 15 de Julho de 2021, foi a investidura do novo director Nacional da PJ, Ricardo Gonçalves, um outro inimigo público do Paulo Rocha”, revela o documento do MP.

Diz a Acusação que o “desavindo entre Ricardo Gonçalves (actual presidente do Tribunal da CEDEAO) e Paulo Rocha teve início no facto deste ter de algum modo referenciado aquele ou pelo menos a viatura utilizada pelo mesmo, matricula -----, num relatório da Polícia Judiciária aquando das investigações do processo Lancha Voadora, em que dava conta de uma movimentação suspeita daquela viatura no exacto momento do transporte de 1.500kg de cocaína para a garagem do edifício Achada Santo António e que determinou a revista à mesma”.

Foi Ricardo Gonçalves, então director nacional da PJ, quem, segundo a Acusação, recebeu pessoalmente de Ary Varela no dia 27 de setembro de 2021 um despacho dos Autos de Instrução 6379/2015, solicitando a remessa à Procuradoria da Praia de todos os objectos recolhidos no local da morte de Zezito Denti d’Oru, o nome de todos os efectivos que estiveram no terreno, o número e série e calibre das armas de fogo utilizadas e ainda as reportagens fotográficas feitas ao cadáver. No mesmo dia, Ricardo Gonçalves faz chegar esse despacho ao inspector André Semedo para responder.

O MP afirma que Ary Varela anexou nesse despacho outras peças processuais a coberto do segredo de justiça, que Semedo viria então a digitalizar no seu computador de serviço com o nome 67690 – Pedido do Ministério Público.

Conclusão do MP: “O procurador da República Isaías Moreira apenas veio a receber o processo das mãos do arguido Ary Varela no dia 14 de Outubro de 2021, treze dias depois do arguido André Semedo ter elaborado e entregue o ofício ao arguido Ary Varela contendo o mesmo conteúdo com o Auto de Inquirição de Testemunha Gerson Lima, por conseguinte, a fuga desta peça processual não pode ser atribuída ao dr Isaías Moreira”. Já antes considerara que entre os dias 24 de agosto de 2021 e 1 de outubro de 2021, a única pessoa que tinha acesso às peças processuais acima referidas e que foram encontradas digitalizadas no computador do arguido André Semedo, com o nome ‘63690 – Pedido do Ministério Público’ era o arguido Ary Varela”.

“Com estes factos fica evidenciado o móbil da construção de uma determinada narrativa para a formação da opinião pública e mediática, em detrimento da verdade material. Móbil este, delineado pelo arguido André Semedo com a participação do arguido João Emílio Tavares e Adelino Semedo Lopes, que o arguido Ary Varela acabou por aderir”.

"Os arguidos Ary Varela, André Semedo, João Emílio, Hermínio Silves, Daniel Medina, Jornal Santiago Magazine e Jornal A Nação sabiam que as epças processuais que divulgaram se encontravam coberto pelo segredo de Justiça. Mesmo assim, os arguidos Ary Varela, André Semedo, João Emílio Tavares, Herminio Silves, Daniel Almeida, Jornal Santiago Magazine e Jornal A Nação actuaram livre, consciente e deliberadamente, com intenção concretizada em tornar público e dar conhecimento a um número indiscriminado de pessoas, de peças processuais que se encontravam protegidos pelo apertado regime de segredo de justiça”, declara o procurador Nilron Moniz.

E fecha com estas pérolas: "o arguido Ary Varela é magistrado do Ministério Público, entregou ao arguido André Semedo peças processuais cobertas pelo segredo de justiça, com o propósito de aderir ao desígnio delineado por este de provocar a destituição do seu inimigo público Paulo Rocha do cargo de ministro da Administração Interna". 

"Os arguidos André Semedo e João Emílio praticaram actos contrários aos seus deveres estatutários, entregando peças processuais a jornalistas com a intençáo de criar facto político na opinião pública contra Paulo Rocha e com isto provocar a sua destituição do cargo ministro da Administração Interna", remata, sem, no entanto, fazer prova de absolutamente nenhuma dessas afirmações.

O Ministério Público deduziu acusação contra os jornalistas Herminio Silves, de Santiago Magazine, e Daniel Almeida, do A Nação (ambos os jornais também são arguidos), por desobediência qualificada por terem publicado reportagens sobre a investigação à morte de Zezito Denti d’Oru, e onde o nome do actual ministro da Administração Interna, Paulo Rocha, aparece mencionado. Além dos jornalistas, o procurador Nilton Moniz acusa os inspectores da Polícia Judiciária, André Semedo e João Emílio Tavares, e o procurador Ary Varela, de serem os responsáveis directos pela alegada violação do segredo de justiça. A procuradoria pede julgamento perante tribunal singular, não promove, “por ora”, nenhuma medida de coação contra os arguidos, mas manda notificar Paulo Rocha e os agentes da PJ que estavam a ser investigados para, se quiserem, também agirem civilmente contra os ora arguidos exigindo indemnização.

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine

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