Em homenagem ao enzimático griot da língua crioula, Kauberdiano Dambará
Cultura

Em homenagem ao enzimático griot da língua crioula, Kauberdiano Dambará

“Lembrando, lembrando sempre”, como enfatizaria aquele que foi um exímio cronista de outrora, o brilhante micaelense, Herculano Delgado Freire, a propósito do passamento físico do ilustre mindelense, escritor e docente, António Aurélio Gonçalves. Freire tinha sido aluno do Lente em referência, nos velhos tempos do Liceu Gil Eanes. Então, terá recebido com choque emocional a partida do mestre e amigo, aquando do seu desabafo num jornal da praça. Ah, pois, desta feita, sou eu que aqui me permito pôr de pé e em sentido, para relembrar e render uma justa homenagem à magna figura do nacionalismo, da ciência, do direito e das letras do nosso país, o saudoso Dr. Felisberto Vieira Lopes ou simplesmente poeta, Kauberdiano Dambará. Solicitei ao aqui exaltado, por diversas vezes, um exemplar do seu já clássico e esgotadíssimo livro de poemas, com o título Noti. Uma gesta toda ela elaborada em língua cabo-verdiana. Empenhei-me a fundo nesse desiderato. Malgrado isso, ficamos naquela de “depois vou ver, depois vou ver...”. E nunca cheguei a ter o memorável e pedagócico instrumento em mãos. Hoje, ser-me-ia extremamente útil para alinhavar estas singelas palavras de admiração e gratidão. Tive contacto, pela genuína primeira vez, com os versos do vate em apreço, no ensino elementar e no fulgor da revolução independentista.

Aedos que captei no limiar da minha curiosidade, com adensado interesse. E que, por sinal, me deixaram sequelas na cabeça para o resto da vida adulta. De tão sonantes eram os vigores do brado em causa, que acabei por fixar alguns dos seus traços essenciais, de cor e salteado. Fi-lo sem a mínima preocupação de memorizar fosse o que fosse. Tão somente porque me deixei embalar pelo encanto das palavras e pelo seu vincado teor telúrico. Movido pela torrente de entusiasmo da época e embevecido da sucralose sensação de um apego inexcedível à mensagem de contagiante sonoridade, emitida pelo estro de reluzente e balsámica estatura, na familiar língua de terra. Por vezes era evadido da minha pequenez de aldeia e sentia a ser arrebatado e posto a levitar no espaço, alçado por algo superior e transcendente. Ficava quase em transe, de tão feliz e contente, de tão regozijado e realizado, na minha crença de um dia vir a ser alguém com arcaboiço para decifrar a importância da épica façanha. Então, fugido de mim, na carne e circunstância, a ser transportado para a esfera das nuvens. A arte tem sempre o condão de provocar três tipos de reações: a de atração, a de repulsa e a de indiferença. No caso em epigrafe, arrisco-me a dizer que a língua, enquanto suporte de ligação aos aspetos emocionais e identitários, quando cultivada no limite de rigor estético e com desassombrado amor à causa, ganha uma notável expressividade.

Cabuberdianu Dambará era um catalizador dos sentires do povo, do profundo imaginário cabo-verdiano. Nessa qualidade, ele operou uma dinâmica de elevação da dignidade da nossa gente, por via da glorificação do idioma de berço, carregando consigo as angústias e tormentos, os sonhos e vazios momentâneos, instantes de euforia e de tristeza. Ele sabia que não estava a oficiar no vácuo. No epicentro da sua inquietação oficinal é o povo que chora, que sente a sombra de um poder despótico, dos momentos de opressão e de precariedades mais que mil. Isto dava-lhe lenitivo para cantar o que o povo sofria e via, não tendo ferramentas para sequer amenizar o seu ecúleo pelo espartilho dos versos. A única forma de dizer não era murmurar fundo na instância do batuco. É assim que enxergo o esforço do griot crioulo. É deste ângulo que vejo a utilidade da poesia, ou seja, quando levado ao extremo pela pena de uma figura excecional, ímpar e pioneira, nesse segmento da nossa literatura. Como, por exemplo, ele deixa patente no começo de um poema - «Labareda luminada dja frutchi na pregu´l rubera/De tudu canto, de tudo cobom, cadabra, sombra, tchoro, gritos de infernu...». Em decorrência, ele exalta o batuco e através dele congratula-se com a viragem do tempo, olhando para a azáfama do povo que se prepara para tirar os grilhões do pulso, para se libertar do jugo e das amarras que lhe fora imposto, por “séculos de riba de séculos”, tal que exponencialmente diria o seu confrade, Ovídio Martins, um dos mais proeminentes contestatários do periodo de iniquidades, quando o sujeito poético sussurra, para indagar: - «Nha flam, Nha Dunda, cusé qui é batucu...». Para de seguida, colocar a ingente dificuldade conceitual na boca da própria matrona, suposta guardiã do templo e áticos valores do seu país, o encargo de deslindar o mistério envolto à mais antiga e genuina manifestação popular da nossa gente: - «Nha fidju, batacu nca sabi cusé. É fundu sima mar, alto sima céu, richu cima rotcha...é osso nos genti». Ou ainda, lançando um veemente apelo à consciencialização do homem negro, exortando o seu irmão africano: - «Finca pé na tchon bu luta... senhor dja caba, scrabu ca tem. Fica só um cusa: liberdadi»

Tendo sempre por bandeira na sua escrita a liberdade e a dignidade. Há uma emancipação de coerência e lógica na obra de Kauberdiano Dambará, na medida em que ele procura, a todos os títulos, salvaguardar os azimutes do passado cultural da sua nação-comunidade. Pois, isto é sumamente importante do ponto de vista da ética de identidade. Ele tem a nítida noção de que quem brinque com a questão de autoctonecidade, apanha o vazio de sentido, perde a personalidade, descarateriza-se, cai em descrédito. Então, se um um individuo deixa escapar de si a solidez da tradição, pode ficar inconsistente, aéreo, descalço e sem o chão em que se apoie, por conseguinte, desaparece como ente portador de uma cultura. Sobra só a carcaça andante, a dar para cima, para baixo, podendo ser levado pela sanha de qualquer um, ou até pelo vento, aonde ele nunca quis aportar. Como se pode ver, é uma literatura tributária do lema “assentar os pés na terra”, que já vinha dos arautos da claridade. Isto significa cortar a ilusão pela raíz e inventariar impulsos endógenos, para a conceção e prossecução do irredutível de nós mesmos. Aí, o aventado “lastro comum” do galã Gilberto Freire desmaia e perde terreno, em favor do específico de cada um. O eminente Jorge Barbosa, ao introduzir na sua literatura os paramentos internos, tais que batuco, casebre, pilão e outros utensílios do dia a dia, afastou-se definitivamente dos referentes do antigamente, como musas da Grécia e Roma ou deuses do distante frio Olimpo.

A nova seara de cultivo viria a ampliar o leque de reivindicações e a causticar a situação então reinante, com uma acutilância discursiva nunca dantes percetível. Nisto, Gabriel Mariano, Ovídio Martins e o próprio Kauberdiano Dambará foram heróis e denodados combatentes. É o emergir de um sentimento revolucionário, da reassunção de uma identidade própria, embora sufocada, seja pela força do ius imperi, seja pela falácia de uma irmandade que jamais existiria no plano dos factos. É o pontificar de um estado de alma que se quer reivindicativo, no sentido de identificar as matrizes de uma africanidade diluida na afrontada assimilação. Uma africanidade que quanto mais se queria abafar, mais se evidenciava e vinha à tona, apesar de destratada e quase aniquilada, sobretudo pela via do decreto e da insólita masmorra de que o Colonato do Tarrafal de Santiago e São Nicolau de Angola foram os mais imponentes exemplos. Felizmente, o viço da nossa gente resistiu durante séculos, com recurso aos pés no chão de terra batida e às máscaras e búzios da tabanca. Os esbirros dos senhores de antanho quiseram tapar a boca das mulheres que cantam e dançam, baloiçando faustosa e sensualmente as ancas, dos oficiantes do finason, que orquestram, balizam e tomam a dianteira do terreiro, ao lado das suas indefetíveis parceiras de vocação, que são as musas e nirvanas da pessoa do povo, de pele escura, de mente brilhante e rija e de indestrutível cobalto à volta de cintura e de traqueia, gente de incindível coturno, que não se deixa esmorecer, nunca jamais,“para o desespero dos que nos impedem a caminhada”, no convincente e fulgurante dizer de Ovídio Martins.

Por isso, os assanhados da velha guarda, para levar a água a seu moinho, nada melhor que atacar os fundamentos do elemento mais estruturante, vibrantemente cultivado e mais enfeitiçante da cultura do nosso povo, daquela ancestral que se vivencia e se reinventa no distante, no sombrio, no subúrbio, no desprivilegiado, mas sempre no festejo de matrimónios e batizados ou mesmo em torno da morte, do luto e do detestado funeral. Em todos esses momentos exaltantes da vida, o batuco está irremediavelmente presente, na ilha mais antiga e por isso mais africana de todas as outras. É a lâmpada que ilumina a poética de Kauberdiano Dambará, num contexto de parcialidade concreta, para aqui trazer à baila um dito dos tempos da juventude de Karl Marx. E eu acrescentaria, de motu próprio e da minha exclusiva responsabilidade, que os asclépios de outrora fizeram recair sobre o batuco uma parcialidade concreta, abjeta, vexatória e pária. Não é por acaso que ainda hoje se vêem resquícios desse passado cruento e amplamente doloroso, para os homens e mulheres da nossa ilha. Sempre que podem, lá vem os suspeitos de costume a aprontar as artimanhas para tentar convencer os incautos de que lavrar em terreno do batuco não é coisa de gente proba, polida e sábia.

Ainda hoje, depois de quarenta e cinco da independência, vemos isso e sentimos isso, sempre que esta arreigada forma de manifestação do nosso povo é confrontada com outras também formas de exteriorização do mesmo povo. Numa cassete que encomendei ao meu amigo, o jornalista da RCV em Mindelo, Arnaldo Borges, com o apoio do seu prestimoso colega, o técnico de som, Carlos Sequeira, eles deram-se ao donaire de gravar para mim a relíquia do Protesto & Luta, com os poemas do livro Noti, para escutar nas horas vagas. Assim, fiquei a recordar os áureos periodos de infância e adolescência. Com o tempo, esta forma de suporte sonoro entraria em desuso. De modo que já levo um par de anos sem ouvir as declamações contidas na prenda dos meus amigos. Conservo ainda alguns dos versos na memória. Já transcrevi pequenos trechos do grande vulto e hoje vou ficar por aqui. Peço às pessoas que sejam compreensivas com alguma imprecisão que possa ter ocorrido. Seja como for, entendi por bem deixar estas linhas em prol da memória do De Cuius. São poemas emblemáticos dos nossos lendários oficiantes e homens da cultura. Ecos que sempre me tocaram e me calaram no fundo de imo.

Na altura dos inícios da nossa independência, além de abordados na sala de aula, a Rádio Nacional fazia frequentes incursões aos poemas do grupo Protesto & Luta. Sobretudo, em períodos de comemoração da efeméride maior da nossa terra e de outras de grande relevância para o país. Opiniões e posicionamentos coincidentes e divergentes haverá sempre, mas é bom não esquecer que, depois do patrono da cultura cabo-verdiana, Eugénio Tavares e do contundente Pedro Cardoso, o pupilo de Cabeça Carreira foi, de entre os da sua geração, o que mais contribuiu, com a sua estética de monta, a sua luzente pena e acrílica tinta, para o aprimoramento, embelezamento e consequente engrandecimento da nossa língua. Para lá de ter sido um intrépido combatente da liberdade da pátria, batendo-se ferozmente contra a barganha dos algozes dos nossos bravos nacionalistas dos PALOP, na Colónia Penal do inesquecível Tarrafal de todas as sevícias. Morreu, sim, um notável cabo-verdiano, de formidável e benéfico contágio, de Santo Antão à ilha Brava. Paz à sua alma e que a terra lhe seja leve.

Domingos L. Miranda Furtado de Barros

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