Praia Leaks – XIX. (O poder judicial no centro das atenções)
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Praia Leaks – XIX. (O poder judicial no centro das atenções)

Alguém acredita que uma pessoa que foi Ministra num sistema bipartidário em tempos de grande crispação política é capaz de, de repente, perdendo o seu partido as eleições, passar a ser juíza isenta para estar nos tribunais comuns julgando, inclusive, casos de ressonância política, como aconteceu em 2001, ou representar depois o Estado em tribunais internacionais ou regionais? Não seria impossível, pois a isenção e imparcialidade devem existir no espírito dum juiz em qualquer circunstância, mas ninguém acredita e em política o que parece é. E o que parece é uma negação escandalosa e arrogante do que tinha sido antes proclamado e repetido à náusea como bandeira dum Estado de Direito Democrático em relação ao poder judicial.

Prezado concidadão: Reorganizo e reúno em mim forças que não tenho, perante a mensagem política que em estrondoso e significante silêncio me é segredada de bem perto de mim: estás só.

Porém, sinto comigo um turbilhão de vozes caladas e acima de tudo a minha voz interior! É possível que tenha de suspender de novo, sem explicação nenhuma. Mas por ora, ... avante!, talvez contra ventos e contra marés:

Anunciei logo no capítulo I o seguinte: “Antes de entrarmos na floresta escura dos assaltos convidaria o leitor a uma breve visita guiada, no próximo capítulo, ao tempo colonial e subsequente, para compreendermos, como se dizia no crioulo de Santo Antão, “sertes urisma” (causas profundas, explique-se) relativas à especulação fundiária urbana.

Apesar de algumas referências dispersas ao período colonial, no campo da propriedade fundiária, ainda nao cumpri o prometido! Na verdade, logo no capítulo II já entrava na tal floresta escura, no corpo das denúncias, pois a inesperada interatividade das duas comunicações antecedentes (Zero e I) obrigava a isso. Mas prometi mais adiante cumprir.

Abordo aqui uma perspetiva histórica relevante para a compreensão da situação atual - alguns aspetos críticos do poder judicial nos últimos 30 anos.

Isso é urgente!

Primeiro, porque a corrupção fundiária se revelou já de tal modo transparente e assustadora, que todos estarão neste momento cansados de negrume, demandando uma explicação: Corrupção dum grupo formado de ex-dirigentes, progressivamente pervertendo os valores do Estado de Direito Democrático? Fruto histórico previsível de sementeiras perversas? Ou algo afinal “normal em democracia”, como tanto se usava dizer nos anos noventa para justificar todo o atropelo às leis... “pois temos um poder judicial independente e as instituições democráticas funcionam”?

Depois, porque a Nação atravessa momentos difíceis, meio tenebrosos, que fazem abalar a nossa fé no futuro deste país independente, quando não da própria independência política, urgindo meditar no assunto para esconjurar as consequências.

Não me refiro aos consabidos riscos que ameaçam o Planeta Terra e a Humanidade, mas a questões mais comezinhas e caseiras como seja:

- O total desrespeito para com as pessoas por parte de diversas instituições do país, como seja a própria universidade pública, com fenómenos como este: professores trabalhando vários meses sem um contrato (e por isso sem receberem), por puro descaso dos responsáveis (injustificável, mesmo se algumas universidades já têm como finalidade principal a sua sobrevivência financeira, à qual subordinam tudo o resto, incluindo a qualidade do ensino);

- Um claro esforço oficial de colocar notários e conservadores ao serviço de poderes particulares perante os quais são quase forçados a ignorar a lei, ou até o fazem já espontaneamente, havendo hoje sinais de perseguição dos (poucos) que se demarquem dessa postura servil;

- Posicionamentos políticos inimagináveis pela sua indignidade face aos interesses do povo, como esse de o Estado admitir ser de algum modo representado por pessoa ligada a uma extrema direita xenófoba, sendo nós um país de emigrantes.

Mas o nosso maior desastre é um poder judicial nas ruas da amargura.

Refiro-me aos tribunais comuns e não a um tribunal perfeitamente político como o de Contas. Interessam-me aqui os tribunais comuns, que têm a ver mais diretamente com a vida dos cidadãos, ainda que o tribunal de Contas possa aplicar multas a cidadãos responsáveis por certos atos públicos.

No complexo caso da extradição solicitada de Alex Saab, seja qual for a decisão que o poder judicial venha a tomar os juízes serão desabridamente criticados e crucificados, sem respeito nenhum. É porque a nossa Justiça está ... nas ruas da amargura!

E algo semelhante acontecerá quanto ao desfecho da novela de julga-que-não julga, prende-que-não prende, o “enfant terrible”.

Tudo isso revela um poder judicial fragilizado, abalado e sem chão. Mas é perigosíssimo para o Estado de Direito - que estamos condenados a ser, sob pena de a nossa irrelevância interna vir sozinha ao-de-cima, com todas as consequências.

Importa analisar as causas, que são múltiplas e não se reduzem a culpas dos juízes e procuradores. Aqui vão apenas algumas pistas.

Recordo-me de que nos finais dos anos oitenta a instituição que era a então homóloga da atual OACV (Ordem dos Advogados de Cabo Verde) - o IPAJ (Instituto do Patrocínio e Assistência Judiciários) - teceu fortíssimas críticas públicas ao poder judicial pela não fudamentação de sentenças, atitude essa que alberga em si uma enorme margem de discricionaridade, por onde todo o atropelo à lei pode penetrar, tendo então havido uma furiosa reação do judicial.

Penso que essa falta de fundamentação tem sido progressivamente ultrapassada de há cerca de uma década a esta parte. Mas, em meu modesto entender, existem múltiplas causas exteriores ao poder judicial em si e que não têm sido referidas, a explicar o descontentamento generalizado em relação ao funcionamento da nossa Justiça, em especial a sua morosidade.

Muitas causas residem nas próprias leis e obrigam o poder judicial a agir de certas formas pelas quais é até injustamente criticado, como quando alguém é preso e logo solto (essa é a crítica mais comum), por aplicação da lei.

Por certo que a liberdade é um valor fundamental e fundante da República, mas a meu ver existe uma grave distorção nas nossas leis, que sacrificam a segurança pública nos altares da liberdade, reduzida esta a puros direitos – sem limites em direitos alheios, ou deveres – de cidadania.

Porém aqui só referirei, e por alto, uma causa mais complexa e, a meu ver, originária, pois estamos a colher ainda tempestades duma sementeira de ventos malignos feita no passado e que nunca deixaram de soprar, disseminando virus no sistema: o assalto partidário ao poder judicial começado nos inícios dos anos noventa.

Questiona-se até, à boca pequena, sobre os critérios atuais de acesso às magistraturas, se não haverá aí caminhos privatizados.

Mas pergunto:

Alguém acredita que se se deixou um Procurador-Geral da República, que era consabidamente um mero braço direito do Governo, que abafou questões de dois milhões e outras, e um juiz do Supremo Tribunal idem, excederem durante cinco anos os seus mandatos, em situação de pura ilegalidade (ilegalidade de fiscais da legalidade e de juízes da mesma), isso aconteceu porque se trataria de grandes magistrados e não por razões de conveniências e consensos partidários – consensos contra a Constituição?

Alguém acredita que uma pessoa que foi Ministra num sistema bipartidário em tempos de grande crispação política é capaz de, de repente, perdendo o seu partido as eleições, passar a ser juíza isenta para estar nos tribunais comuns julgando, inclusive, casos de ressonância política, como aconteceu em 2001, ou representar depois o Estado em tribunais internacionais ou regionais?

Não seria impossível, pois a isenção e imparcialidade devem existir no espírito dum juiz em qualquer circunstância, mas ninguém acredita e em política o que parece é. E o que parece é uma negação escandalosa e arrogante do que tinha sido antes proclamado e repetido à náusea como bandeira dum Estado de Direito Democrático em relação ao poder judicial.

Aqui fala quem já em 1987 tinha publicado artigo de jornal defendendo que o juiz não pode ser militante partidário, nem no regime de partido único (que se vivia) e que denunciou, durante muito tempo, quase clamando no deserto, as situações de ilegalidade acima referidas.

Quem denunciou e comprovou, perante o Conselho Superior da Magistratura Judicial, falsificações gravíssimas em processos judiciais, com factos tão inegáveis que não puderam deixar de ser comprovados, mas nenhuma medida se viu ser tomada contra o juiz prevaricador.

Fala quem fez em 2001 afirmações graves de factos (só factos!) relativas a um juiz do Supremo Tribunal e, tendo o Procurador-Geral mandado levantar ao denunciante processo crime, não houve acusação porque, produzida que foi a prova, o então procurador da república da Praia e hoje Procurador-Geral da República, Sr. Dr. José Luis Landim, proferiu, de seu punho, despacho mandando arquivar o processo por não se provar serem falsas as imputações (maneira elegante de dizer que eram verdadeiras) - mas o Procurador Geral da República nada fez para a responsabilização do “supremo” magistrado.

Curioso é que a OACV, que solicitamente mandou levantar processo disciplinar ao denunciante, nomeando como instrutor o hoje Deputado João Gomes (processo que o denunciante desprezou e que nunca avançou), não mais se importou com a questão, nem para pedir desculpas pelo incómodo, depois do despacho de arquivamento do processo-crime.

O IPAJ, instituição autónoma da classe com a mesma natureza democrática da OACV (processo eletivo interno e a mais completa independência do poder político), com as diferenças de se enquadrar num regime do Partido Único e de ser de toda a classe e não dum grupo, nunca teria tido tal atitude.

Enfim, não se espante que em 2003 o Edil Felisberto Vieira tenha organizado um dossier contendo despachos dele mesmo e duvidosos contratos assinados pelo edil seu antecessor e encarregou o Secretário Municipal, Lucídio Moreira, de o entregar pessoalmente na Procuradoria-Geral, o que este fez, mas nada aconteceu, apesar das evidências de ilegalidades graves.

Está hoje o poder judicial a pagar o fruto dessas cumplicidades entre águas turvas onde todo o peixe ruim se esconde, pois esse é um peixe corrupto que não tem pátria, família, nem partido político.

É possível que, mesmo internamente às magistraturas, tenha havido, do outro lado, ou do lado da pura isenção e profissionalismo, reações discretas para tentar algum equilíbrio. Ações e reações apesar de tudo perigosas porque perturbadoras da serena essência do poder judicial.

Compreende-se, pois, que depois de no capítulo XVII dedicar as denúncias contidas nestes textos “às magistraturas, âncora profunda da Liberdade e Justiça”, tenha voltado ao tema no capítulo seguinte, dizendo: “Do poder judicial falaremos em outro lugar, entrando na perspetiva histórica, das sementes lançadas para a sua captura e dos frutos disseminados dessa “degradância”. Ainda que habitado por muitos juízes competentes (alguns talvez incorruptíveis), é hoje um sistema corporativista obscuro e não escrutinado, em que os melhores pagam a fatura dos incompetentes e menos sérios.

É que também... vamos e venhamos!:

Sem pretender fazer ou insinuar o mínimo juízo pessoal acerca do mérito dos dois casos judiciais do momento referidos atrás (seria inoportuno aqui), penso que no poder judicial começa a dar sinais de emergência um saldo positivo, apesar de a situação permanecer ainda lamentável em muitos aspetos, impondo-se ultrapassar isso.

É minha perceção que, globalmente, os tribunais e o Ministério Público têm vindo, de há uns 8 a 10 anos a esta parte, a reerguer-se do fundo onde tinham caído ou sido lançados por forças externas com disseminação interna.

Na verdade, só uma nova cultura a despontar permite que se ouça falar de acusações por burla qualificada ligada a terrenos contra certas personalidades (cujo mérito, entretanto, não interessa aqui).

E não é de desprezar o facto de que no campo cível várias tentativas de apoderamento de terrenos públicos tenham vindo a fracassar por aplicação da legislação adequada, havendo decisões de alguns juízes e do STJ desprezando registos prediais efetuados através de evidente fraude.

O caso talvez paradigmático é o de Achada de S. Filipe (área “multi-múltipla” do Plateau), onde o poder público ganhou, quer na instância, quer no Supremo, contra o cidadão estrangeiro da balada (“inglez ben/ toma si tchon...”), que estava munido de registo “retificado” e a favor de quem existe todo um lobby de advogados politicamente influentes como ex-governantes e deputados.

Sei que a voz contrária do topógrafo da Câmara Municipal da Praia não foi tida em conta e acredito que o mesmo terá acontecido com a do jurista sénior, pois a situação no terreno quase em nada mudou e os presumidos represententes do cidadão têm mostrado que “ê Nanda ki ta manda”.

Ignoro as intenções da CMP atual nesse domínio. A regra tem sido o Estado e as Câmaras Municipais não querem criar centros de defesa de bens e direitos públicos. Para não desagradarem os investidores, ou para terem mãos livres acima da lei?

Esperemos que alguma força política venha a pugnar, como da manifestada intenção do Partido Popular, pela regulamentação da ação popular prevista na Constituição e no Estatuto dos Municípios.

Apresentarei num outro capítulo sugestões pessoais para a melhoria do poder judicial. Mas para já iremos, nos dois próximos, partir do séc. XV e avançar em grandes saltos até às portas da Independência Nacional, para depois falarmos do Partido Único, da Abertura Política e do Partido Hegemónico, antes de retomarmos, mais esclarecidos sobre causas, questões que nos levarão a expor a entre nós vergonhosa Justiça privada, que dá cobertura a assaltos a bens e erário públicos e que se dá pelo nome de ARBITRAGEM.

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