Há 76 anos centenas de pessoas morreram na cidade da Praia à espera da única refeição do dia
Sociedade

Há 76 anos centenas de pessoas morreram na cidade da Praia à espera da única refeição do dia

O Desastre da Assistência, ocorrido há 76 anos, na Praia, é considerado a “mais terrível catástrofe” de todos os tempos registada no arquipélago, em que morreram centenas de pessoas que aguardavam pela única refeição quente do dia.

Foi a 20 de Fevereiro de 1949 que esta tragédia bateu sobre a capital cabo-verdiana, mais concretamente na localidade da Várzea da Companhia, onde fora construído um barracão para servir refeições quentes aos indigentes que o procuravam para matar a fome.

No seu livro “Um corpo que se recusa a morrer”, o jornalista José Vicente Lopes (JVL) relata que a distribuição da refeição quente do dia caminhava para o fim, quando o vento que, no momento, soprava com alguma intensidade fez ruir o longo muro de trinta metros de comprimento e oito de altura, que se encontrava em “muito mau estado de conservação”.

O autor do livro, resultante de um trabalho de pesquisa, diz, citando números oficiais de então, que cerca de 3.500 indigentes procuravam diariamente, no recinto de Assistência Pública, a sua única refeição quente do dia, “que eram obrigados a comer mesmo ali, conforme o regulamento em vigor”.

“Desnutridos e tomados por doenças várias, debaixo do sol abrasador, os mais fracos desfalecem mesmo ali, no recinto da Assistência, qual pavilhão de mortos vivos”, escreve o jornalista e escritor, acrescentando que os indigentes, na maioria, “eram camponeses que foram sendo empurrados do interior para a capital, numa altura em que a população da ilha de Santiago estava estimada em 60 mil habitantes, sendo 17 mil na Praia”.

Há relatos que nem todos morreram esmagados pelas pedras ou pelos escombros. Muitos terão morrido asfixiados pela fumaça.

Entretanto, depois da tragédia, as autoridades de então depararam-se com o problema de enterrar os mortos. Eram centenas.  Diante da falta de madeira para caixões, a solução encontrada era sepultar os cadáveres em valas comuns, “com corpos envolvidos em lençóis, boa parte dos quais crianças e adolescentes”.

O funeral colectivo, escreve JVL, foi marcado para às 16 horas, de 21 de Fevereiro, com missa celebrada pelo bispo D. Faustino dos Santos.

Segundo o autor do “Um corpo que se recusa a morrer”, citando o poeta e escritor Arnaldo França, era notório o mal-estar entre o governador João Figueiredo e o clero católico, crítico da forma como as autoridades lidavam com o problema da fome e ao apoio aos indigentes.

“O governador já se retirava, dirigiu-se às autoridades da Igreja Nazarena, cumprimentou-as ostensivamente, ignorou as autoridades católicas, desconhecendo-as”, escreve JVL, citando Arnaldo França.

Em declarações ao fotojornalista João Paulo Tavares, autor do Projecto “Os Centenários de Cabo Verde”, Maria Cabral, hoje a residir em Mendes Faleiro Cabral, lembra-se da fumaça que observou a partir da sua antiga residência em Achada Mitra, uma localidade perto de Rui Vaz.

“Vi uma fumaça no céu e depois fiquei a saber que era a Assistência que tinha arrombado”, lembra a centenária que diz guardar recordações tristes do tempo da fome em Cabo Verde.

Maria Cabral podia fazer parte da lista dos infortunados do fatídico dia 20 de Fevereiro de 1949. Nesse dia, conta, ao contrário do que habitualmente fazia na ajuda à alimentação das crianças famintas que as mães levavam consigo, mal que acabou de vender o seu leite, decidiu regressar à casa. 

“Era meio dia quando a Assistência arrombou. Estava na soleira da minha casa, vi aquele fumo no céu e, quando perguntei sobre o que tinha acontecido, disseram-me que a Assistência é que tinha arrombado”, revela Maria Cabral, acrescentando que na sequência do desastre passou três dias sem vir à Praia.

Ainda se recorda de ter visto muitas pessoas a deslocarem-se em direcção à capital, mal souberam do acontecimento da Assistência, porque queriam saber dos familiares que podiam estar feridos ou mortos entre as vítimas.

“Conhecia muita gente que perdeu a vida neste desastre”, afirma a centenária.

Setenta e seis anos depois, Leonardo Gomes também se lembra da tragédia que abateu sobre a capital do País.

“Foi um acontecimento triste. Conforme contaram algumas testemunhas, muita gente morreu enquanto comia aquela refeição que lhes era distribuída”, comentou o octogenário, para quem, na altura, a fome era “terrível e doía na alma”.

Assegurou que, depois do acidente, o problema era identificar os mortos, uma vez que se dava pouca importância aos documentos e, por conseguinte, muitas das vítimas estavam indocumentadas.

Na sequência da tragédia da Praia, as comunidades cabo-verdianas espalhadas pelo mundo mobilizaram recursos que ajudaram a financiar a construção de um conjunto habitacional que, mais tarde, recebeu o nome de Bairro Craveiro Lopes, onde foi alojada parte das vítimas do desastre.

Para que os cabo-verdianos recordassem o triste dia 20 de Fevereiro de 1949 e com vista a perpetuar a memória dos que viveram os longínquos e amargos dias, em 2006, foi erguido um monumento em homenagem às Vítimas da Fome e do Desastre da Assistência de 1949, localizado na Rotunda da Rampa de São Januário, na Praia.

Até à sua independência em relação à antiga potência colonizadora, Portugal, em 1975, Cabo Verde viveu vários ciclos de fome que marcaram a sua história e perseguiram o seu povo.

Dados constantes de um texto de Amílcar Cabral sobre a situação de fome nas ilhas de Cabo Verde, publicados em Estocolmo (Suécia), revelam que a última grande carestia de 1946-1949 dizimou 35% (por cento) da população cabo-verdiana.

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