O Sistema Educativo na Encruzilhada da Globalização: Entre Desafios Estruturais e Oportunidades Transformadoras
Ponto de Vista

O Sistema Educativo na Encruzilhada da Globalização: Entre Desafios Estruturais e Oportunidades Transformadoras

...é urgente priorizar políticas que combinem investimento em infraestrutura digital, reformulação curricular com foco em competências globais e valorização do capital humano local. O risco, caso contrário, é que as novas gerações continuem a ver a educação não como uma ponte para o futuro, mas como um passaporte para partir. Cabo Verde tem a chance de provar que, mesmo num mundo de gigantes, um arquipélago pode ser farol, desde que suas escolas ensinam não apenas a ler o presente, mas a escrever o amanhã. A escolha é clara: ou as salas de aula se tornam espaços de reinvenção crítica, ou continuarão a produzir diplomas que valem menos do que o papel em que são impressos. A hora de reescrever esse roteiro é agora.

Num mundo cada vez mais interligado, onde o conhecimento se tornou a principal moeda de progresso, Cabo Verde enfrenta um dilema crucial: como transformar seu sistema educativo em alavanca de desenvolvimento, sem sucumbir às assimetrias impostas pela globalização? Apesar dos avanços registados nas últimas décadas, o arquipélago mantém-se numa encruzilhada. De um lado, há desafios históricos agravados pela velocidade das mudanças globais; de outro, potencialidades únicas que, se bem exploradas, podem reposicionar o país como um polo educacional e econômico na região atlântica. 

Desafios: As amarras de um sistema em transição

O primeiro obstáculo reside na desigualdade de acesso. Embora a taxa de alfabetização em Cabo Verde ultrapasse 90%, as disparidades regionais persistem: escolas nas zonas rurais e em ilhas periféricas carecem de infraestrutura básica, como laboratórios, bibliotecas e conectividade digital. Enquanto a capital, Praia e São Vicente concentra instituições com melhores recursos, comunidades em Santo Antão ou Brava enfrentam salas superlotadas e docentes sobrecarregados. Essa realidade contrasta com as exigências de um mercado de trabalho globalizado, onde as competências técnicas e digitais são indispensáveis. 

Outro ponto crítico é a desatualização curricular. Apesar de reformas recentes, como o Plano Estratégico da Educação (2022-2026), parte do ensino ainda reflete modelos do século XX, com ênfase excessiva na memorização e pouca integração de disciplinas como programação, sustentabilidade ou empreendedorismo. Enquanto isso, jovens cabo-verdianos competem não apenas com concidadãos, mas com profissionais de outros países, muitos deles formados em sistemas mais dinâmicos. 

Não se pode ignorar, ainda, o êxodo de cérebros. A globalização facilitou a mobilidade, mas, para Cabo Verde, isso significou a fuga de talentos: estima-se que 40% dos formandos emigram em busca de oportunidades no exterior, esvaziando o país de mão de obra qualificada. Esse ciclo perpetua a dependência de setores como o turismo, incapaz de absorver as aspirações de uma juventude cada vez mais conectada e exigente. 

Potencialidades: O arquipélago como laboratório de inovação

Contudo, Cabo Verde possui trunfos singulares. Sua posição geográfica estratégica, entre África, Europa e as Américas, aliada a uma diáspora influente, oferece oportunidades para parcerias educacionais transnacionais. Universidades como a de Cabo Verde (Uni-CV) ou a Universidade de Santiago (US) já colaboram com instituições portuguesas e brasileiras, mas é preciso ampliar esses laços. Programas de intercâmbio virtual, cursos técnicos em energia renovável (setor prioritário para o país) e acordos com empresas globais poderiam criar rotas de formação alinhadas às demandas do século XXI. 

Outro aspecto a não ignorar é o peso das disciplinas e formações que, embora historicamente relevantes, carecem de conexão com as demandas de um mundo globalizado. Enquanto a economia, a tecnologia e as relações sociais se transformam em velocidade exponencial, muitos currículos permanecem ancorados em modelos que privilegiam a repetição de conteúdos ultrapassados em detrimento do desenvolvimento de competências críticas, criativas e técnicas alinhadas ao século XXI. Esse descompasso não é apenas pedagógico: é um risco estratégico para um país insular que depende da qualificação de seu povo para competir em escala global. 

Disciplinas como História, Geografia e Língua Portuguesa  são pilares do ensino básico e secundário, mas frequentemente são ensinadas de forma desconectada da realidade dos alunos e dos desafios contemporâneos. A abordagem excessivamente eurocêntrica da História, por exemplo, ignora a riqueza da diáspora africana e cabo-verdiana, perdendo a oportunidade de fortalecer a identidade cultural e o pensamento crítico sobre o colonialismo e a globalização. Da mesma forma, a Geografia muitas vezes restringe a memorização de mapas físicos, sem integrar debates urgentes como gestão costeira, segurança hídrica ou impactos das mudanças climáticas, temas vitais para um arquipélago vulnerável. 

Nas formações técnicas e profissionais, cursos como Contabilidade e Secretariado perpetuam metodologias do século passado, sem incorporar inovações como análise de dados, gestão sustentável ou agrotecnologia, que por exemplo poderia ser um método para o curso de agricultura. Enquanto isso, setores emergentes como energias renováveis, economia digital e turismo ecológico, robótica ou ainda a programação clamam por profissionais qualificados, que o sistema atual não consegue fornecer.

A cultura crioula, marcada pela miscigenação e resiliência, é outro ativo subexplorado. Um currículo que valorize a história local, os saberes tradicionais e o multilinguismo (português e crioulo) não apenas fortaleceria a identidade nacional, mas atrairia interesse internacional, posicionando o país como um centro de estudos afro-atlânticos. 

Além disso, a revolução digital abre caminhos para suprir lacunas estruturais. Um estudo do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP)  de Cabo Verde (2022) revelou que 60% dos empregadores consideram que os jovens recém-formados não possuem habilidades digitais ou de resolução de problemas necessários.

Ora, enquanto as universidades globais priorizam pensamento computacional e interdisciplinar, muitas escolas cabo-verdianas ainda formam alunos para profissões em declínio, como serviços administrativos não automatizados. A expansão de plataformas de ensino à distância, impulsionada pela pandemia, mostrou que é possível democratizar o acesso ao conhecimento mesmo em contextos de insularidade. Iniciativas como o projeto “Weblab”, que visava o reforço da qualidade na educação, através do acesso às novas tecnologias, raciocínio computacional com vista a diminuição da exclusão digital, precisam ser ampliadas e acompanhadas de formação contínua dos docentes em tecnologias. 

Globalização como espelho: O que Cabo Verde pode ensinar ao mundo

A ironia da globalização é que, enquanto pressiona sistemas educativos a se uniformizarem, também exige que eles cultivem singularidades. Cabo Verde, com sua escala humana e experiência de transição de uma economia agrícola para uma baseada em serviços, tem lições a oferecer. Por exemplo: 

1.Resiliência climática como disciplina transversal: Com os efeitos das mudanças climáticas ameaçando o arquipélago, a educação ambiental não pode ser um módulo opcional, mas um eixo central do ensino técnico e superior.

2. Diáspora como recurso educativo: A comunidade cabo-verdiana no exterior, estimada em mais de 700 mil pessoas, pode ser mobilizada para mentorias, investimentos em startups locais e redes de pesquisa. 

3. Turismo educacional: Associar a imagem de destino turístico à oferta de cursos curtos em gestão costeira, cultura crioula ou energias renováveis poderia gerar novas receitas e visibilidade. 

Conclusão: Uma aposta no futuro ou no passado?

O sistema educativo cabo-verdiano não está condenado a repetir as falhas de outros pequenos Estados insulares.  Enquanto países ricos discutem inteligência artificial e transição verde, não se pode dar ao luxo de perder uma geração com formações defasadas.

A globalização, se bem gerida, pode ser uma aliada. Para isso, é urgente priorizar políticas que combinem investimento em infraestrutura digital, reformulação curricular com foco em competências globais e valorização do capital humano local. O risco, caso contrário, é que as novas gerações continuem a ver a educação não como uma ponte para o futuro, mas como um passaporte para partir.

Cabo Verde tem a chance de provar que, mesmo num mundo de gigantes, um arquipélago pode ser farol, desde que suas escolas ensinam não apenas a ler o presente, mas a escrever o amanhã. A escolha é clara: ou as salas de aula se tornam espaços de reinvenção crítica, ou continuarão a produzir diplomas que valem menos do que o papel em que são impressos. A hora de reescrever esse roteiro é agora.

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Comentários

  • Otavares, 6 de Mar de 2025

    Uma reflexão profunda e bem fundamentada sobre a educação em Cabo Verde. Parabéns ao articulista!!

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