Falta ouvir Amílcar Cabral, sim, (calma, não é sermão, e eu também não sou cabralista com carteira assinada), mas ouvir aquele Amílcar que dizia que "ninguém liberta ninguém"… a não ser que seja com um bom beat de fundo. Falta saber quem foi Carlos Veiga, Renato Cardoso, Pedro Pires, Jaime Figueiredo, José Estrela, Simão de Barros, José Leitão da Graça… não para votar neles no TikTok, mas para saber que já houve gente que pensou o país antes de haver Wi-Fi. Falta ler a Mana Guta, o Manuel Veiga, o Herménio Vieira, o Osvaldo Alcântara, e aqueles posts heroicos e inspiradoras e pouco “couching” do Jorge Tolentino que, se fossem cantigas, batiam qualquer drill de coladera trap. Falta ler o Rasta Nguka do Mestre Arlindo Mendes. Tudo isto, de preferência, ao pequeno-almoço, com pão k’ôvu e xá di sidréra, e depois ir discutir Frantz Fanon ali no largo, ao pé da banca do tia Saburosa de Nhana, entre um oril, dama e uma teoria revolucionária sem Marx.
Estou no Tarrafal por um ano. E digo-o como quem diz: “fui enviado para o deserto da lucidez”. Durante algum tempo, mantive-me calado, a beber a brisa, a morder a língua e a mastigar o silêncio. Mas há silêncios que se tornam cúmplices, e há alturas em que até o silêncio perde a vergonha de ser cúmplice. Chegou a minha hora de voltar a falar.
O Tarrafal, esse paraíso com cheiro a carne salgada e calor de uma subida a graciosa, é, em muitos aspetos, um dos lugares mais belos para se viver. Se fez o básico há mais de cinquenta anos, para se viver é um lugar. Pacífico, tranquilo, com o mar sempre a prometer mais do que cumpre. Mas atenção: nem toda a paz se mantém pacífica. Há uma paz que é anestesia. Uma calma que é coma. É isso, meus caros, é um problema.
O potencial cerebral da cidade, esse músculo invisível que sustenta nações, parece ter sido sequestrado entre dois extremos perversos: um “humildismo bocó” (não confundir com humildade) e uma racionalidade rastacuera, feita de slogans, dreadlocks e resignação disfarçada de liberdade. Como dizia Nietzsche, “quem combate monstros deve cuidar para que não se transforme também em monstro”. E aqui, o monstro não tem sete cabeças, tem só uma, mas, potencialmente… muito vazia.
Não há debate de ideias. Há “likes” “partilhas”, “da padodu”. Há silêncios coniventes, há o endeusamento de figuras duvidosas que falam bonito e fazem feio. O trabalho, esse verbo que fundou a dignidade humana, virou sinónimo de castigo. A juventude, seduzida pelo brilho falso do facilitismo, já não quer fazer o caminho. Quer saltar para a meta. E se possível, com um tutuk nos ouvidos e um subsídio no bolso.
E atenção, não sou contra o tutuk. É até um escape válido, uma arte com ritmo e identidade. Mas quando o único projeto de vida é “mandar rimas até calhar uma viagem a Lisboa”, estamos mal. Quando ser artista significa fugir do esforço em vez de sublimar o esforço, temos um problema sério de educação cívica, e estética.
Estamos a educar uma geração para acreditar que tudo deve ser dado. Mas, como perguntava Camus: “será possível viver sem se revoltar?”. Sim, mas é uma vida vegetal. Um país que se habitua à gratuitidade total é um país que se esqueceu de suar, de planear, de produzir. A cultura do “dá-me” é irmã da cultura do “rouba-me”. Quando tudo parece vir de graça, também tudo parece poder ser tirado.
Nos últimos anos, o Tarrafal mudou. Parte desta, para pior. E não falo de política partidária, falo de controlo e ao mesmo tempo abandono emocional. A juventude começou a ocupar as ruas, as praças e os bairros como quem ocupa o vazio. Em Colhe Bicho, por exemplo, jovens vagueiam de noite, sem rumo, sem formação, sem ocupação, mas com faca na mão. E ao que tudo indica, as autoridades sabem. E ao que tudo mostra, não fazem nada. A polícia limita-se a observar, como se fosse figurante numa novela má.
É inconcebível que, com formações gratuitas ou quase gratuitas no IEFP, com escolas abertas, com centros culturais disponíveis (mesmo que mal geridos), tantos jovens estejam completamente fora do sistema. E atenção: não são todos, claro. Há rapazes e raparigas a lutar, a estudar, a trabalhar duro. Mas a rua, essa entidade democrática que acolhe todos, tem ganho o terreno.
Já houve fóruns de juventude. Já houve seminários, conferências, documentos lindíssimos impressos a cores. E no fim? Nada. É como pintar as paredes de uma casa que está a desmoronar. Em Colhe Bicho, sente-se o abandono da câmara municipal. O governo finge que não vê. A polícia assobia. E os jovens, esses, vão fazendo o que podem: alguns sonham, outros assaltam, outros dançam no TikTok. Cada um à sua maneira, procurando o que o sistema não dá: sentido.
O que falta? Ousadia. Estratégia. Verdade. E um bocado de vergonha na cara das lideranças. Uma coisa é certa: o governo local e nacional, tem que colocar líderes e dirigentes não cultural, mas sim culto e cultural a frente dos postos de decisão. Falta criar espaços culturais onde os jovens possam ser mais do que figurantes de bairro. Onde se possa escrever sem medo de ser poético, compor sem autotune, programar sem precisar fugir para Lisboa, e expor sem ser na esquadra.
As escolas precisam deixar de ser aqueles lugares onde se vai só para cumprir castigo das 7h às 13h, com intervalos de tédio. Falta transformá-las em laboratórios de reinvenção, onde se aprende a fazer beats e a ler Fernandos Pessoas no mesmo dia, e sem parecer esquizofrenia.
Imagina um puto com acesso a um microfone decente, uma câmara que não seja só de selfie, uma guitarra afinada, e um livro daqueles que, quando fechas, ficas mais vivo por dentro. Um livro de Fernando Pessoa ou José Luís Tavares, claro, mas também de Mário Lúcio, Germano Almeida, Dina Salústio, Gabriel García Márquez, tudo no mesmo saco, uma espécie de mochila mágica onde cabem todos os mundos. Com isso na mão, esse jovem não só se salva como ainda salva a rua dele, e talvez até o primo que anda a "fazer cena" no bairro.
Falta ouvir Amílcar Cabral, sim, (calma, não é sermão, e eu também não sou cabralista com carteira assinada), mas ouvir aquele Amílcar que dizia que "ninguém liberta ninguém"… a não ser que seja com um bom beat de fundo. Falta saber quem foi Carlos Veiga, Renato Cardoso, Pedro Pires, Jaime Figueiredo, José Estrela, Simão de Barros, José Leitão da Graça… não para votar neles no TikTok, mas para saber que já houve gente que pensou o país antes de haver Wi-Fi.
Falta ler a Mana Guta, o Manuel Veiga, o Herménio Vieira, o Osvaldo Alcântara, e aqueles posts heroicos e inspiradoras e pouco “couching” do Jorge Tolentino que, se fossem cantigas, batiam qualquer drill de coladera trap. Falta ler o Rasta Nguka do Mestre Arlindo Mendes. Tudo isto, de preferência, ao pequeno-almoço, com pão k’ôvu e xá di sidréra, e depois ir discutir Frantz Fanon ali no largo, ao pé da banca do tia Saburosa de Nhana, entre um oril, dama e uma teoria revolucionária sem Marx
E sim, falta trazer a tecnologia. Mas não aquela que só serve para fazer scroll até os polegares pedirem fisioterapia. Falo da tecnologia com alma, com memória, com aquele molho caboverdiano que mistura o cheiro do fundo no fundo da ilha e duplex na cidadela e com futuro. Uma espécie de Ubuntu digital com tempero de bura até cinguelo e visão de drone.
Tarrafal não precisa de mais discursos. Precisa de ação. Mas uma ação pensada. Com pés no chão e olhos no futuro. Com cultura e com alma. Com política, sim, mas daquela que transforma, não daquela que promete.
Se queremos que o Tarrafal volte a ser o que pode ser, temos de começar agora. Antes que seja tarde demais e a paz se transforme em estatística.
Comentários
Esconso e gado, 14 de Abr de 2025
«Não é por tanto madrugar que amanhece mais cedo», diz o povo da Lusitânia. Quando acaba esta coisa de ruelas fervilhantes e belecos deste país? Quando é que o trabalho árduo começa a contar neste torrão? Afinal, só existe o que grita no âmago do nosso meio, agrado ou convivência?
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De Pina, 13 de Abr de 2025
Uma análise pragmática do Tarrafal urbano. Convido o autor a visitar o Tarrafal rural, localidades como Mato Mendes, Mato Brasil, Chão de Junco, Biscainho, Achada Moirão, Trás-de-Monte, Ponta Furna... que desmoroman ante a insensatez dos poderes locais e nacionais. Está-se, seguramente, perante o Concelho mais abandonado de Santiago. Um abraço.
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joao da luz, 13 de Abr de 2025
Muito bonito o estilo, muito lirismo, muita metáfora e referências, mas no fim… Falar bonito sem agir é como cantar morna num incêndio. O país não precisa de mais cronistas frustrados com nostalgia intelectual. Precisa de plano de bairro, escola aberta à noite, biblioteca móvel, laboratório digital.
Próxima vez que escrever um manifesto, leve-o à Câmara com uma proposta orçamental concreta. Chega de textos com sabor a chá morno — ou se luta ou se cala!
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Carlos Vieira De Carvalho, 13 de Abr de 2025
2. Alguns acharão isso um ataque literário, mas é mais um convite a agir, a suar, a criar sentido. Parabéns por quebrar o silêncio!
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Carlos Vieira De Carvalho, 13 de Abr de 2025
1. Um texto de opinião bastante poderoso, que pinta um retrato cru e poético do Tarrafal, com uma lucidez que corta como o estoque torero. Estou sempre de acordo quando há falta de ousadia e ação concreta para despertar o potencial da juventude Caboverdiana. E adorei a ideia de transformar escolas em laboratórios de reinvenção e dar acesso a ferramentas culturais e tecnológicas com alma é mesmo inspiradora.
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Mário Gomes da Costa, 13 de Abr de 2025
Uma comunicação, que pelo seu conteudo deve ser partilhada e objeto de reflexão, sempre e em particular nos dias de hoje.
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Bambaram Ladera, 13 de Abr de 2025
Um texto oco e sem nada. Combater o rastaqueretismo é a melhor forma de ser rastaquerista. Esta mania de elencar uma data de nomes amigos para agradar, sem conhecer a verdadeira arte é uma praga. É preciso ler muito mais, não ser lerdo em natéria de criação. Falar do engenho com a cara de nula revolução, é falar da bosta na ladeira. Falta o novo que ainda não veio.
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