O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde - Terceira Parte
Ponto de Vista

O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde - Terceira Parte

No que se refere ao impacto da participação caboverdiana na luta político-armada conduzida pelo PAIGC no chão da Guiné dita portuguesa foram imensos os seus significados simbólico e político. Pela primeira vez na época do moderno nacionalismo africano e, de alguma forma reavivando a memória das inúmeras revoltas e de outros actos colectivos de resistência armada de escravos, de negros fujões, de negros forros, de camponeses e de flagelados pelas fomes das ilhas, podiam os caboverdianos rever-se em actos heróicos e de rebeldia colectiva em que a sua participação, político-intelectual e/ou militar, era de grande importância. Nesses tempos eram já comuns as aparições míticas de Amílcar Cabral nos mais variados pontos da ilha de Santiago, nas circunstâncias as mais incríveis e inusitadas. Dir-se-ia a vivificação em acção, em carne e osso míticos e esperançosos, da palavra profética de Nho Naxo, o mais célebre sábio tradicional da ilha de Santiago e de todo o Cabo Verde.

TERCEIRA PARTE

III

AS OPÇÕES CABOVERDIANAS

Ante esse complexo quadro em que era notória a especificidade insular e histórico-cultural da identidade caboverdiana, os quadros, os militantes e os  combatentes caboverdianos do PAIGC preferiram optar por uma clarificação do ecossistema partidário e do ambiente político-institucional que fosse considerada suficientemente capaz de ter minimamente em conta tanto as particularidades do caso caboverdiano como também o necessário pragmatismo da luta com vista à liquidação urgente da dominação colonial portuguesa, e, assim, lhes permitisse o almejado regresso à futura casa soberana arquipelágica caboverdiana. Mesmo que fosse por via da participação directa e plena na luta político-armada conduzida pelo PAIGC no território da Guiné dita portuguesa/Guiné-Bissau, abortada que fora o projectado desembarque em Cabo Verde do impropriamente chamado Grupo de Cuba para a concretização da Operação Esperança, muito devido às infiltrações da PIDE no seio desse mesmo grupo. Participação directa e plena na luta político-militar da Guiné que, pensada e posta em prática no quadro estratégico que visava a liquidação total do colonialismo português na Guiné e em Cabo Verde e em todas as colónias/províncias ultramarinas de Portugal, em especial as africanas, não podia lograr induzir esses combatentes ao esquecimento da sua meta final, a libertação política da sua pátria africana do meio do mar (expressão construída a partir da politicamente feliz e incisiva expressão pátria do meio do mar, do poeta nova-largadista e nacionalista africano Ovídio Martins), a qual, aliás, parecia perfazer a problemática candência das suas preocupações e reivindicações personificadas primacialmente em Abílio Duarte e Osvaldo Lopes da Silva. Relembre-se neste contexto que Abílio Duarte foi, com Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes e Júlio Almeida, um dos participantes do processo de criação e de fundação do PAI (em 1960 e por sugestão de Luís Cabral re-baptizado PAIGC para não se confundir com o  PAI senegalês, interditado por Senghor). De todo o modo é de se sublinhar que no dia, 19 de Setembro de 1956, até agora considerado na História oficial do PAIGC como a data da realização da reunião da sua fundação formal ainda como PAI, Abílio Duarte esteve seguramente ausente de Bissau, pois que se encontrava comprovadamente em Paris a participar, na Universidade de Sorbonne,  no I Congresso dos Escritores e Artistas Negros. a convite de Mário Pinto de Andrade, um dos membros da Comissão Organizadora desse magno evento pan-africanista. Relembre-se que foi esse mesmo convite, interceptado pela delegação da polícia política portuguesa em Cabo Verde, que determinou a fuga apressada de Abílio Duarte da cidade do Mindelo, onde arribara em Março de 1958 como enviado especial do PAI para a mobilização política em Cabo Verde, rumo a Dakar.

Talvez, e eventualmente, se devesse considerar Rafael Barbosa como um dos fundadores do PAI, pois que, segundo testemunho dele próprio prestado a Julião Soares Sousa e reproduzido parcialmente no livro Amílcar Cabral (1924-1973) - Vida e Morte de um Revolucionário Africano, no dia considerado como de fundação do PAI, ele diz ter estado no local da fundação do partido (a casa onde moravam Aristides Pereira e Fernando Fortes, em Bissau) a fazer vigilância em relação a eventuais incursões da polícia e a outras indesejadas intrusões. Em se excluindo Rafael Barbosa como fundador do PAIGC e em se integrando Abílio Duarte no pequeno grupo de fundadores do PAI, poder-se-ia perfazer o mítico número dos seis fundadores oficiais do PAI, posto que, segundo Julião Soares Sousa, Elisée Turpin, até agora considerado  um dos fundadores  oficiais do partido e o único negro-africano guineense com esse estatuto, alega ter entrado no partido somente em 1960, mobilizado por Fernando Fortes.

Atente-se neste contexto que os testemunhos sobre os actos e as datas da fundação do PAI estão pejados de contradições, omissões, inexactidões e lapsos de memória. Interessante é que, segundo testemunho integrante do conjunto de entrevistas concedidas a José Vicente Lopes e devidamente reproduzidas no livro Aristides Pereira - A Minha Vida, a Nossa História, é o próprio Aristides Pereira que confessa ter o dia oficial da fundação do partido sido escolhido entre várias dias possíveis do mês de Setembro, na medida em que os considerados membros-fundadores vinham participando em vários encontros clandestinos de trabalho para a fundação do partido que viria a denominar-se PAI e, mais tarde,  PAIGC.

Diga-se que a data exacta da fundação do PAI vem sendo considerada por demais nebulosa  em tempos mais recentes, designadamente depois da publicação do marcante  livro de Julião Soares Sousa intitulado Amílcar Cabral (1924-1973):Vida e Morte de um Revolucionário Africano. Com efeito, nesse seu incontornável  e excelente livro (quiçá, o melhor   até hoje escrito sobre a vida e a obra do grande teórico africano e abrangente de todo o seu percurso pessoal e biográfico), o autor Julião Soares Sousa contesta com alguma veemência a data oficial de fundação do PAIGC, o dia 19 de Setembro de 1956, alegando que nessa data Amílcar Cabral não teria estado e nem poderia ter estado em Bissau, não existindo quaisquer documentos (nomeadamente, listas de passageiros de navios ou de voos aéreos, relatórios da PIDE e da PSP instalada na Guiné dita portuguesa) susceptíveis de atestar que Amílcar Cabral tivesse estado  em Bissau ou na província ultramarina portuguesa nesse dia ou no mês de Setembro de 1956. Outrossim, e por considerar que a saída, em 1955, de Amílcar Cabral, da mulher Maria Helena e da filha Iva Maria da Guiné portuguesa não se teria fundado numa ordem de expulsão (ainda que  informal) emitida pelo Governador Alvim, nem sequer de um seu imperativo conselho/recomendação  em razão de alegadas actividades políticas subversivas ou indesejáveis desenvolvidas por Amílcar Cabral (como, por exemplo, a controversa fundação do MING-Movimento para a Independência Nacional da Guiné), mas tão-somente de uma decisão voluntária do casal Cabral por o mesmo e a filha Iva terem ficado muito adoentados, faz com que Julião Soares Sousa não leve em devida consideração um importante facto do foro familiar: a visita anual a realizar em todos os meses de Setembro  que Amílcar Cabral prometera fazer (ou foi autorizado a fazer pelo Governador  Alvim) à mãe Iva, que mudara a sua residência da cidade da Praia para a cidade de Bissau a instância/pedido e por insistência do seu filho, Amílcar Cabral, recentemente formado em Agronomia, por isso, com fundadas expectativas de contribuir e ajudar de forma determinante a melhorar as condições de vida da sua sacrificada, esforçada e amada Mãe Iva, quando mãe e filho puderam encontrar-se por escassas horas na cidade da Praia, no bairro da Ponta Belém,  no trânsito de Amílcar Cabral para a Guiné dita portuguesa vindo de Lisboa.

Por outro lado, a  data preferida por Julião Soares Sousa, na primeira edição do livro, como data de fundação do PAI, o 19 de Setembro de 1959, é curiosamente aquela em que alegadamente teve lugar a reunião clandestina do PAI que, na sequência do famigerado massacre de Pidjiguiti de 3 de Agosto de 1959 perpetrado pelas tropas colonial-fascistas portuguesas no porto de Bissau contra estivadores guineenses desarmados, procedeu a uma radical mudança de estratégia política do partido clandestino,  priorizando os campos em lugar das cidades para a mobilização política na luta contra o colonialismo português, luta essa que, por dever assumir a forma de uma luta armada de longa duração, requeria a adesão maciça dos camponeses guineenses, deste modo considerados a força física principal da luta político-militar para a independência, sendo que a força política mobilizadora primacial continuava a ser integrada pelos assalariados urbanos, designadamente das franjas nacionalistas/patrióticas, progressistas e/ou revolucionárias da pequena burguesia intelectual e de serviços e do incipiente operariado, bem como  pelos chamados “sem classe”, também urbanos, ainda que com muitas ligações aos campos. 

Nas sucessivas edições do livro Amílcar Cabral (1924-1973):Vida e Morte de um Revolucionário Africano, o seu autor Julião Soares Sousa tem permanecido firme na consideração do dia 19 de Setembro de 1959 como a verdadeira data (ou, pelo menos, a data mais provável) da  fundação do PAI, se bem que, na nossa modesta opinião de leigo,  de forma pouco convincente e de modo menos peremptório como fora na primeira edição do mesmo livro. Na verdade, o mesmo autor vem tendo em consideração outros eventuais anos da fundação do Partido Africano da Independência aparentemente por ter tido acesso a factos e documentos comprovativos de que Amílcar Cabral esteve efectivamente em Bissau no dia 19 de Setembro tanto do ano de 1957 (como comprova uma mensagem dele ao amigo Artur  Augusto Silva, datado do ano de 1956 e de Angola, onde ambos se encontravam, no qual combinavam encontrar-se em Bissau no mês de Setembro do ano seguinte), como também do ano de 1958, sendo disso indício irrefutável o facto de Abílio Duarte ter sido enviado em Março desse mesmo ano para encetar a mobilização política em Cabo Verde a favor do PAI. Absolutamente excluído parece continuar a ser, segundo Julião Soares Sousa, o dia 19 de Setembro ou qualquer outro dia Setembro e de qualquer outro mês de 1956, posterior ao mês de Agosto, pois que por essa altura (Agosto de 1956 a Março de 1957), Amílcar Cabral teria comprovadamente estado em Angola em missão profissional como engenheiro agrónomo.

 Por sua vez e como se tornou voz insistentemente corrente, a Osvaldo Lopes da Silva, conhecido dirigente e responsável político-militar do PAIGC, foi atribuída de forma recorrente uma postura crítica do projecto da união orgânica acelerada entre os futuros Estados independentes e soberanos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, sendo que todavia não se pode afirmar que ele fosse contrário ao princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e da unidade de acção político-militar de guineenses e caboverdianos e da sua união política orgânica no seio de um mesmo partido-movimento de libertação bi-nacional na sua comum luta  contra o colonialismo português. Tanto mais que integrado na célebre fuga dos cem estudantes universitários africanos, conjuntamente com os caboverdianos Pedro Pires, Maria da Luz (Lilica) Boal, Elisa Andrade e José Araújo,  dirigiu-se de motu próprio ao encontro de Amílcar Cabral em Acra, transferindo-se depois para Conacri. Logo depois, foi enviado à União Soviética para a sua formação superior como economista e para a  sua formação militar como oficial de artilharia, na qual a sua anterior e não concluída formação em engenharia civil em Portugal terá sido de grande importância, pois que, segundo testemunho do próprio, será ele a conceber e a dirigir sob o comando superior de João Bernardo (Nino) Vieira a tomada do estratégico quartel de Guiledje, um dos bastiões do poder colonial militar na Guiné dita portuguesa e cuja queda foi decisiva para a mudança  de correlação de forças a nível militar a favor das FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo) e do PAIGC e para a derrocada final do colonialismo final na Guiné-Bissau.

Relembre-se neste contexto que, depois da desactivação da comissão e das suas sub-comissões criadas na reunião de Dakar dos quadros e dirigentes, maioritariamente caboverdianos do PAIGC, para a minuciosa análise da situação da luta em Cabo Verde e, nessa sequência,  para a preparação de um eventual desembarque guerrilheiro nas ilhas (como se sabe, depois  abortado, mesmo estando o grupo guerrilheiro para o efeito devidamente preparado em Cuba e com a data do seu desembarque nas ilhas caboverdianas já fixada), os caboverdianos destinados a esse mesmo desembarque foram integrados na luta político-militar na Guiné dita portuguesa. As actividades do PAIGC respeitantes a Cabo Verde viriam  posteriormente a culminar na criação da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC, liderada por Pedro Pires, por deliberação do II Congresso desse partido realizado em Julho de 1973, e em estrito cumprimento de um dos mais importantes itens do chamado Testamento Político de Amílcar Cabral, até então o responsável directo máximo e (quase) exclusivo do ultra-sensível dossier Cabo Verde. O mesmo Testamento Político de Amílcar Cabral em que, aliás, se anunciou de forma solene e convicta a proclamação ainda no ano (previsivelmente em Março) de 1973 da existência de jure de um Estado independente e soberano no território da Guiné dita portuguesa a partir das estruturas político-administrativas edificadas ao longo da luta político-armada nas chamadas zonas libertadas da Guiné-Bissau. Com esta reviravolta nos planos jurídico-constitucional e jurídico-internacional, isto é, mediante a mudança do  estatuto da Guiné em guerra de uma colónia portuguesa para a situação de um Estado independente e soberano ocupado parcialmente, designadamente nas  suas zonas urbanas, por um Estado agressor estrangeiro no qual se transformou Portugal, pretendiam o PAIGC  e o seu líder carismático lograr, fomentar e conseguir a derrota final e incondicional das forças militares portuguesas e a derrocada final do sistema colonial português e, por efeito dominó, nas demais colónias africanas de África. Nem mesmo o traiçoeiro assassinato de Amílcar Cabral a 20 de janeiro de 1973 impediu o cumprimento integral do desiderato político plasmado no seu Testamento Político. Com efeito, a 24 de Setembro de 1973 era proclamada em Madina do Boé a República independente e soberana da Guiné-Bissau, logo depois reconhecida por  dezenas de estados independentes e soberanos de todo o Mundo e integrado como membro de direito na  OUA (Organização da Unidade Africana), no Movimento dos Países Não-Alinhados e  na ONU (Organização das Nações Unidas) e, assim, rapidamente inserida na Comunidade Internacional. O golpe de estado do 25 de Abril de 1974 desencadeado pelo MFA (Movimento das Forças Armadas) veio trazer à tona a profunda e total crise do sistema colonial-fascista português, contribuindo por seu lado para uma inédita aceleração histórica que levou à abertura de  negociações com os Movimentos de Libertação Nacional africanos (e, com as conhecidas e desastrosas atribulações, de Timor Leste) com vista à ascensão à independência política e à soberania nacional dos países que representavam num tempo relativamente curto (menos de dois anos) após a vigência de um período de alguns meses para a transição política, com concomitante e radical alteração do estatuto nacional e internacional dos seus Estados, incluindo do Estado de Cabo Verde, o qual proclamou a sua independência política e a sua soberania nacional e internacional a 5 de Julho de  1975 pela voz do Presidente da sua recéwm-eleita Assembleia  Nacional Popular, tal como consignado e antevisto no Testamento Político de Amílcar Cabral.  

Nesta óptica, a vertente pan-africanista do pensamento cabraliano e de um sector tornado preponderante do nacionalismo caboverdiano percorreu duas fases sucessivas:

1) Uma primeira fase em que a profissão de fé no projecto da unidade Guiné-Cabo Verde parece ser o único esteio e o extremo recurso estratégico para a obtenção da libertação de um território, o caboverdiano, no qual radicava um povo histórica e culturalmente constituído em nação, mas gravemente enrodilhado nas suas próprias debilidades estruturais crónicas e nas suas recorrentes ambiguidades na funcionalização cívica e política, historicamente pertinente, da sua ambivalência identitária fundada na crioulidade da sua cultura e na pugna pela superação da sua sentida orfandade continental- identitária. Essa mesma profissão de fé ocorre, ademais, num tempo de crença generalizada nos benefícios da unidade dos povos africanos entre si e dos povos do Terceiro Mundo, em geral, na sua luta contra a dominação imperialista.

Neste contexto, e tal como assinala Amílcar Cabral, o surgimento de um campo socialista solidário, ainda que enredado em disputas político-ideológicas internas consubstanciadas no conflito sino-soviético e em intensas lutas pela hegemonia no movimento operário internacional, nos movimentos de libertação nacional e social  e no campo socialista, todos considerados aliados naturais dos partidos-frentes-movimentos de libertação nacional afro-lusófonos, contra os aliados ocidentais do obsoleto colonialismo português,  demonstra-se como um factor historicamente determinante, completamente desconhecido no tempo dos nativistas históricos e largamente ignorado pelos regionalistas e adjacentistas de matriz claridosa.

Ainda que essencialmente sediados nos territórios das duas Guinés e apoiados nas capacidades logísticas e humanas do povo da Guiné-Bissau para a condução de uma longa e vitoriosa luta armada de libertação (bi) nacional, os nacionalistas caboverdianos não descuraram o objectivo da obtenção da soberania nacional para o povo caboverdiano como a principal motivação para a sua adesão ao PAIGC, partido-movimento que, pouco a pouco, e apesar dos severos golpes da polícia política portuguesa e das demais forças repressivas colonial-fascistas, se ia credibilizando no seio da juventude estudantil, do operariado, do campesinato e das comunidades emigradas caboverdianas.

Essa mesma credibilização deve muito ao carisma de Amílcar Cabral, desde sempre gozando de grande reputação em Cabo Verde, quer devido às suas origens familiares “letradas“ e ”nobilitantes/aristocráticas” pelo lado paterno, quer devido ao prestígio pessoal granjeado em razão dos seus sucessos e das suas performances como estudante liceal e universitário, das suas competências profissionais como engenheiro agrónomo, dos seus trabalhos de investigação plasmados em vários relatórios e artigos científicos, das suas preocupações humanistas, da sua intolerância contra as injustiças,  da sua inteligência emocional e correlativas capacidades de comunicação e contacto interpessoais e do seu companheirismo embebido de alegria de viver e de espírito de solidariedade. A reputação de humanista e de técnico competente reconhecida a Amílcar Cabral e a cultura caboverdiana de que era inegavelmente portador e de que a sua poesia constitui testemunho eloquente foram decisivas para a mobilização dos nacionalistas caboverdianos e, assim, para a perspectivação de uma via independentista para Cabo Verde, tida agora por viável e historicamente realizável, depois da descrença dos nativistas, dos claridosos bem como de alguns sinais de mobilização, à volta de José Leitão da Graça, de um nacionalismo caboverdiano estritamente insular, muito influenciado pelo regionalismo luso-crioulista de extracção claridosa, ainda que doutrinária e nominalmente inspirado no nova-largadismo político-cultural e no pan-africanismo político de Kwame Nkrumah. Esses mesmos sinais de engendramento de uma via estritamente insular do nacionalismo caboverdiano tiveram um considerável impacto na sociedade caboverdiana dos fins dos anos cinquenta e dos inícios dos anos sessenta do século XX devido ao corajoso labor de mobilização política e à posterior fuga de José Leitão da Graça para Dacar, em circunstâncias assaz aventurosas (curiosamente, em tempos quase coincidentes com as similares e igualmente aventurosas circunstâncias protagonizdas pelo paigcista Abílio Duarte),, bem como à prisão na Cadeia Civil da Praia e posteriores julgamento e absolvição dos seus companheiros políticos de aventura e de infortúnio, nomeadamente Aires Leitão da Graça, Manuel Chantre, Arménio Vieira, Mário Fonseca, Osvaldo Azevedo, Oswaldo Osório (nominho e pseudónimo literário de Osvaldo Alcântara Medina Custódio),  Anastácio Filinto Correia e Silva, Francisco Correia, Alcides Barros, entre outros. Ademais, esses companheiros de José Leitão da Graça eram, em regra, portadores de uma formação intelectual considerada sólida na altura, sendo alguns socialmente bem colocados no quadro da chamada cidade-repartição da Praia ou oriundos de “boas e conhecidas famílias” pequeno-burguesas, como era o caso do próprio José Leitão da Graça, cujo pai, Álvaro Leitão da Graça, era proprietário da Tipografia Minerva de Cabo Verde, da cidade da Praia (vide biografia do mesmo em João Manuel Nobre de Oliveira in obra citada anteriormente), que vinha desempenhando um importante papel na impressão de obras essenciais da literatura e da cultura caboverdianas.

O estatuto social privilegiado das famílias de alguns dos jovens companheiros de José Leitão da Graça não os inibia todavia na sua conduta de émulos confessos e praticantes desinibidos de uma grande irreverência cívica e de um irreprimível espírito de provocação e contestação que também se reflectiam nos poemas (como, por exemplo, os por demais subversivos “Quando a Vida Nascer” ou “Fome”, de Mário Fonseca) que alguns deles, com destaque para  Mário Fonseca e Arménio Vieira,  iam dando à estampa nas publicações que por essa altura circulavam na Praia e no Mindelo, tais o Boletim Cabo Verde e o Seló (suplemento literário do jornal Notícias de Cabo Verde).

A via nacionalista propugnada por José Leitão da Graça viria a perder impacto socio-político devido à ocorrência de circunstâncias de diferente teor, tais como:

a) A sua submersão na via pan-africanista defendida pelo PAIGC e difundida em Cabo Verde em primeira mão por Abílio Duarte, enviado de Amílcar Cabral e do PAIGC em 1958 para a mobilização política nas ilhas a pretexto da conclusão dos estudos liceais. As acções empreendidas por Abílio Duarte tiveram amplos efeitos de mobilização política como comprovam quer o recrutamento de  estudantes do terceiro ciclo do Liceu Gil Eanes, vindo muitos deles a ser, depois, destacados quadros político-militares e militantes da luta clandestina, quer a posterior adesão ao PAIGC de grande parte dos antigos companheiros de José Leitão da Graça, como foram, por exemplo, os casos de Osvaldo Azevedo e Mário Fonseca, os quais se foram juntar ao PAIGC combatente no chão das duas Guinés, ou ainda de Francisco Correia, Oswaldo Osório e Arménio Vieira, militantes do PAIGC na clandestinidade política das ilhas ou da emigração.

b) Os sucessos militares e político-diplomáticos que o PAIGC ia averbando nos campos de batalha guineenses e no mundo tornaram cada vez menos relevantes outros eventuais caminhos conducentes à obtenção da independência e da soberania políticas de Cabo Verde, defendidos sobretudo por exilados políticos caboverdianos radicados em Dakar, reunidos no seio da UDC -União Democrática de Cabo Verde (não confundir com a outra UDC, do advogado João Monteiro, fundada na ilha de São Vicente, no período imediatamente posterior ao 25 de Abril de 1974). MLICV -Movimento de Libertação das Ilhas de Cabo Verd  e UPICV -União do Povo das Ilhas de Cabo Verde (fundado em 1958, na Nova Inglaterra, nos Estados Unidos da América, por Aires Leitão da Graça, irmão mais novo de José Leitão da Graça e refundado por este em 1961, em Dakar). Os esforços de José Leitão da Graça no sentido da denúncia junto de diversas instâncias internacionais, com destaque para a ONU, do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde, por ele entendido como uma forma encapotada de postergar o direito à autodeterminação do povo caboverdiano, “comunidade nacional distinta do povo guineense em luta”, e de reedição da antiga hegemonia da classe pequeno-burguesa de serviços e da comunidade dominantes caboverdianas sobre o território e os povos da Guiné, não surtiram quaisquer efeitos significativos, em face dos notáveis resultados práticos da liderança carismática de Amílcar Cabral e da congregação de guineenses e caboverdianos à volta do comum objectivo de liquidação nos dois territórios do colonialismo português, já então considerado uma chaga sobre o corpo de África tão perniciosa como os regimes racistas das minorias brancas da África Austral.

De todo o modo, os caboverdianos apanhados nos complexos caminhos políticos da reafricanização dos espíritos puderam encetar um regresso às fontes africanas que se distinguia quer do regresso escravocrata e colonialista dos afro-brasileiros, afro-caribenhos e afro-americanos,  quer do regresso dos crioulos afro-atlânticos nos períodos colonial-escravocrata e colonial pós-escravocrata (mercadores lançados e tangomaos, funcionários régios e eclesiásticos do período colonial- escravocrata, oficiais militares e soldados do período da ocupação efectiva dos territórios continentais africanos,  todos  oriundos das ilhas de Cabo Verde),  quer ainda do regresso siónico (ou, melhor dito, negro-sionista) do garveyismo e do regresso mítico-cultural e onírico-ideológico do rastafarismo. O mesmo distinguia-se, assim, do com ele parcialmente coincidente regresso colonial-ultramarino encetado, no quadro da divisão colonial de trabalho, pelos caboverdianos integrados na administração e na exploração do império colonial português, nomeadamente padres e missionários, professores primários e outros funcionários públicos, agricultores das pontas e comerciantes,  empregados bancários, técnicos e outros funcionários em várias áreas de actividade), bem como pelos serviçais “contratados” para as roças do Sul-Abaixo, mesmo se não se deva ignorar que uma parte dos militantes e  quadros caboverdianos do PAIGC foi recrutada mais latamente na emigração e mais restritamente no seio dos funcionários e quadros colocados na administração colonial da Guiné dita portuguesa, sendo numerosos os caboverdianos radicados na Guiné portuguesa que militaram no PAIGC e foram, por isso, vítimas de morte, torturas, prisão  (incluindo no célebre Ilhéu das Galinhas e no famigerado campo de concentração do Tarrafal) e outras formas de perseguição política e de repressão e terror por parte da PIDE-DGS e das forças militares e policiais colonial-fasscistas portuguesas, como profusamente comprovado nos livros Amílcar Cabral (1924-1973) - Vida e Morte de um Revolucionário Africano, de Julião Soares Sousa, Memória da Luta Clandestina, de Inácio Soares de Carvalho, um dos principais responsáveis da Zona Zero de Bissau do PAIGC e por muito tempo Adjunto de Rafael Barbosa, então Presidente do PAIGC, bem como da obra em dois volumes de José Vicente Lopes  sobre presídio político de Chão Bom/o campo de concentração do Tarrafal.  É, aliás, esse facto que induziu José Leitão da Graça a classificar, a partir de um olhar estritamente insular, o PAIGC (ou a ala caboverdiana dos seus dirigentes históricos) como um partido de emigrantes caboverdianos na Guiné.

Mais imediata e simbolicamente, o regresso africano dos combatentes caboverdianos do PAIGC contrapunha-se ao regresso de dezenas (quiçá centenas) de militares caboverdianos mobilizados por força do serviço militar obrigatório então vigente para as guerras coloniais de subjugação e pacificação dos povos africanos ocorridas no século XIX ou para as modernas guerras coloniais contra os combatentes das lutas das independências dos povos africanos. Paradigmáticos do percurso caboverdiano pelos trilhos da reafricanização dos espíritos são alguns poemas de Ovídio Martins, “Um poema diferente”, de Onésimo Silveira, os poemas “Eis-me aqui, África” e “Son de Negro no Exílio”, de Mário Fonseca, bem como o “Discurso V” de O Primeiro Livro de Notcha, de T. T. Tiofe (um dos nomes literários de João Manuel Varela). Por seu lado, o livro Noti, de Kaoberdiano Dambará (pseudónimo literário de Felisberto Vieira Lopes), representa um regresso à África num plano místico-político de identificação com o tempo eminentemente negro-africano das independências, e, por outro lado, no plano interno caboverdiano, de intensa catarse cultural mediante a revalorização das tradições e manifestações culturais afro-crioulas, como o batuco, e a exaltação das tradições e das figuras, por vezes lendárias, de resistência contra a opressão colonial e a exploração por parte das classes possidentes brancas (aqui entendido tanto na sua semântica racial como também na sua semântica social). Em Noti, os termos branku (branco) e gentis branku (gentes brancas) são explorados na totalidade da sua dupla significação racial e classista, tornando plenamente visível a contemporânea pertinência de uma literatura caboverdiana de negritude crioula, com destaque para um poesia caboverdiana de afro-crioulitude.

No que se refere ao impacto da participação caboverdiana na luta político-armada conduzida pelo PAIGC no chão da Guiné dita portuguesa foram imensos os seus significados simbólico e político. Pela primeira vez na época do moderno nacionalismo africano e, de alguma forma reavivando a memória das inúmeras revoltas e de outros actos colectivos de resistência armada de escravos, de negros fujões, de negros forros, de camponeses e de flagelados pelas fomes das ilhas, podiam os caboverdianos rever-se em actos heróicos e de rebeldia colectiva em que a sua participação, político-intelectual e/ou militar, era de grande importância. Nesses tempos eram já comuns as aparições míticas de Amílcar Cabral nos mais variados pontos da ilha de Santiago, nas circunstâncias as mais incríveis e inusitadas. Dir-se-ia a vivificação em acção, em carne e osso míticos e esperançosos, da palavra profética de Nho Naxo, o mais célebre sábio tradicional da ilha de Santiago e de todo o Cabo Verde.

Ademais, continuavam as prisões de patriotas caboverdianos e muitos adolescentes e jovens adultois sonhavam já, e algo impacientes, juntar-se um dia a Amílcar Cabral, em palavras sussurradas no calor das brigas, na fúria do confronto com as autoridades coloniais e com tropas portuguesas colocados nas ilhas e nas esquinas da infância, das escolas e dos liceus.

Palavras sussurradas, não fossem as mesmas chegar aos ouvidos omnipresentes e omniscientes dos aparelhos auscultadores e dos galinhas (bufos, delatores, informadores) de uma PIDE/DGS, que, por exemplo, em Assomada tinha o rosto vermelhuço e o pullover berrantemente encarnado do Sr. Eusébio e a duplicidade do sorriso e do sangue daqueles que a voz baixinha de alguns mais experientes nas andanças políticas clandestinas tornava conhecidos ou, pelo menos, muito suspeitos.

Palavras ainda somente sussurradas, aquando dos acontecimentos relacionados com o fracassado assalto ao navio a motor “Pérola do Oceano” e a sequente prisão de inúmeros militantes e responsáveis do PAIGC da clandestinidade na ilha de Santiago (em particular, na cidade da Praia e no interior da ilha, no concelho de Santa Catarina), em São Vicente e em Santo Antão, destacando-se de entre eles o jovem estudante Pedro Martins, depois relatados no seu livro Testemunho de um Combatente. do mais novo inquilino do Campo de  Concentração do Tarrafal. Certamente rocambolescos e amplamente ilustrativos não só da capacidade de infiltração da polícia política colonial-fascista nas estruturas clandestinas do PAIGC, mas também da ingenuidade aliada ao aventureirismo político de alguns responsáveis políticos islenhos das estruturas de base desse partido-movimento de libertação nacional, os acontecimentos anteriormente referidos aferiram de forma insofismável do elevado grau de impaciência política que perpassava o estado de espírito de alguns militantes oriundos dos sectores camponeses mais aguerridos da sociedade caboverdiana, tendo sido, ademais, denotativos da grande coragem cívica e física de quem neles participou de modo activo e desassombrado. A prisão de Pedro Martins e dos implicados na tomada temporária do navio a motor “Pérola do Oceano” precede a detenção de vários jovens conotados com o PAIGC, como Alexandre de Pina, Óscar Duarte, Luís Tolentino, Euclides Fontes, Homero Vieira Lopes,  Eurico Correia Monteiro, Fogo,  entre outros, depois e sem julgamento prévio tal como ocorrera, aliás,  com Pedro Martins e o grupo do “Pérola do Oceano”, enviados  ao Campo de Concentração de S. Nicolau, na Foz do Cunene em Angola,  e sucede-se às prisões de Toco (Fernando dos Reis Tavares), Zéqui de Nho António Querido (José Maria Ferreira Querido), Zezé de Nhu Alberto Galina (José Carlos Aguiar Galina Monteiro), Kide (Gil Querido Varela), Manel de Nho Jesuíno (Emanuel de Jesus Braga Tavares), Luís Fonseca, Lineu Miranda, Carlos Tavares e Jaime Schofield.

Palavras ainda sussurradas quando se ouviam contar as notícias escutadas por aqueles que sintonizavam  a Rádio Libertação (estação emissora do PAIGC instalada em Conacri) ou souberam dos acontecimentos de 22 de Setembro de 1972 na Praia, tal como foi cantado por Tony Lima dos Kaoguiamo.

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