Cabo Verde tem obrigação não só moral de apoiar a luta dos povos que querem alcançar a sua autonomia e independência, como tem o dever legal, no quadro da constituição e dos tratados ou convenções internacionais, que livremente aprovou e ratificou, e que fazem parte da ordem jurídica interna, de não contrariar as aspirações legítimas dos povos que lutam pela sua liberdade. Assim, nos parece que o nº 2 do artigo 1º do Decreto-lei nº 40/2022, de 18 de agosto de 2022, afronta os tais princípios e normas legais, e o Estado de Cabo Verde não pode e nem deve furtar-se às suas responsabilidades, enquanto Estado de Direito Democrático e defensor da liberdade e dos direitos fundamentais.
Cabo Verde é, sem qualquer dúvida, um país soberano que alcançou a sua independência a 5 de julho de 1975, após, aproximadamente, 5 séculos sob o manto da administração portuguesa.
Curiosamente, quando Cabo Verde foi descoberto pelos colonizadores portugueses era terra nullius, contrariamente ao Sahara Ocidental que já era território habitado, na altura da instalação do protetorado espanhol.
No entanto, Cabo Verde, para obter a sua Independência, contou com o sacrifício e a luta de cabo-verdianos e guineenses que, sem olharem a riscos e privações pessoais, familiares, profissionais e outros, empreenderam um combate político, diplomático e armado, cujo desfecho foi a obtenção plena da soberania dos dois países, hoje, Estados independentes, e donos dos seus destinos, enquanto povo e nação.
Parece ser uma aspiração natural dos povos, a de serem livres, quer sejam eles, árabes, africanos, europeus, americanos ou outros. A liberdade, uma palavra tantas vezes gasta em discursos e nas grandes proclamações de princípios, é considerada, hoje, por alguns, consoante for a maré e as conveniências, um produto ou para vender ilusões a quem por ela aspira ou para castrar felicidade dos outros, por parte de quem se acha investido de poder para determinar quem deve ter ou não a liberdade.
Defender a liberdade dos povos e o seu direito à autodeterminação parece, para alguns, ter deixado de ser um princípio e um dever indeclinável dos países e sociedades democráticos, e passou à categoria de bens transacionáveis como quaisquer outros.
A nossa liberdade, a que nos permite gozar do privilégio de poder escolher e rejeitar o que não queremos, e que nos possibilita, inclusivamente, decidir sobre a liberdade dos outros, esse atributo único, não nos deveria interpelar, se a liberdade que os outros legitimamente detêm, não é, ou não deveria ser, a condição da nossa própria liberdade?
Seremos realmente livres quando permitimos que os outros não o sejam?
É livre aquele que oprime ou fecha os olhos face à opressão?
Vivemos uma época da normalização do “nonsense” e da relativização de valores. O justo, que era a linha vermelha da transigência, franqueou as portas à falta de convicção, que por sua vez, cedeu lugar à desmaterialização da história.
A história e o seu valor sociocultural, enquanto referência prenhe de ensinamentos, deixaram de ser um elemento essencial de compreensão dos fenómenos sociopolíticos, porque se instituiu uma escola ou uma ideia, segundo a qual, o passado não move o presente, significando literalmente com isso, que o passado morre no passado.
Morto o passado, o presente é fruto apenas do presente, não importa, nem os feitos, nem as contribuições que o passado deu para que o presente fosse o que é. Essa forma de concetualizar a história e o passado para além de ser epistemologicamente limitadora, ela nega a própria dinâmica evolutiva, e, assim sendo, a tese a-histórica fica prejudicada, porque queda-se, literalmente, coxa, quando se lhe retira a dimensão diacrónica que obrigatoriamente a compõe.
Outrossim, essa perspetiva a-histórica procura sustentar-se numa aparente “amnésia lacunar”, em que não conta o que foi o colonialismo, o esclavagismo, as ditaduras, o direito histórico dos povos ou a injusta e brutal exploração da riqueza das populações dominadas. Os defensores dessa forma “sui generis” de pensar, implicitamente aceitam a ideia da existência de “geração espontânea”, posto que advogam que a geração que a antecedeu não conta, que a sua contribuição para o presente não tem valor, com base na lógica truncada de ruturas e não de evolução, como se isso fosse alguma vez possível em sociedades humanas.
Essa perspetiva a-histórica e os seus defensores prescindem dos princípios da justiça, e, consequentemente, relativizam o seu valor orientador nas opções e decisões que se tomam.
Pensando e agindo desta forma, os a-históricos pervertem a ideia do justo e da justiça, inclusive no plano das relações internacionais, não se importando em sacrificar princípios, permitindo-se ceder espaço ao mercado de interesses. Acresce-se que essa perda de importância do justo revela-se, especialmente, na engenhosa relativização da ética política que é relegada, em termos de hierarquização de valores, para um lugar secundário, senão mesmo, marginal.
Hoje, para alguns, o que alimenta e determina decisões ou posições sobre quaisquer matérias é um estranho princípio, baseado no “aqui e agora”.
O “aqui-e-agora” e a geração espontânea têm ambos de comum o facto de sofrerem de um certo “nihismo” do passado, porquanto negam a influência da história no presente. Fundam-se num imediatismo e num curto-prazismo que limita e castra a compreensão ampla da realidade, o que gera, como é óbvio, uma errônea convicção do certo e verdadeiro só daquele momento e daquela circunstância.
Entretanto, desvalorizar, como método, o passado significa que a história e o conhecimento que dela se tira não é importante, nem para as decisões que se tomam no presente, nem das lições que dela se possa reter para que não se cometam os mesmos erros no futuro. Esse posicionamento pseudo-metodológico do “aqui e agora” é, em tudo, semelhante àquela “paródia” muito bem retratada numa coladeira, que, em tom jocoso, canta: “nôs vida é ganhá e gastá, sem pensá na vida di manhan, nôs vida é passa sabi, dispôs de sabi moré é ca nada”, pois, é isso aí, o que vier depois, será como Deus quiser.
Mas o mundo deve caminhar assim como está?
Um mundo em que os homens em tudo se assemelham, nos seus comportamentos e nas suas atitudes, aos que viveram os dias que antecederam ao dilúvio?
Teremos de construir uma nova Arca de Noé?
Para o mal dos nossos pecados, infelizmente, vive-se num mundo de faz de contas, onde os fatos deixaram de ter valor de demonstração, e a verdade é triturada, no altar dos interesses, até se transformar em não verdade ou vice-versa. A Humanidade caminha nessa epopeia triunfal, construindo realidades paralelas, recheadas de relativismo de toda a gama, desafiando a natureza e a lógica da ordem natural das coisas.
O que era verdade ontem, de fato e de direito, é hoje questionado sob a bandeira do relativismo, da nova realidade ficcionada e da evolução do contexto. Essas construções, erigidas a partir de premissas habilmente alinhavadas em laboratórios de marketing, são vendidas, sem remorsos, como verdade “carregada de sangue e de sofrimento humano”.
E terá de ser assim? É assim que se constrói um mundo melhor?
1. Antecedentes históricos de Sahara Ocidental
Em termos históricos, e com os elementos documentais disponíveis, Sahara Ocidental nunca pertenceu ao reino de Marrocos, e este nunca exerceu qualquer soberania estatal sobre o território saharauí, e se alguma dúvida houvesse a respeito, está o Acordo Tripartido de Madrid, subscrito por Marrocos, para a dissipar.
Em 1884, a Espanha estabeleceu o seu protetorado no território do Sahara Ocidental.
Quando lá chegou, encontrou tribos nómadas autónomos que habitavam aquele território, com os quais a Espanha acabou por estabelecer tratados, em que os chefes tribais reconheciam a autoridade do reino espanhol.
Em 1950, Sahara Ocidental perdeu, na perspetiva da Espanha, o estatuto de colónia e passou a ser considerada a 53ª província espanhola.
A Espanha em 1975, um pouco sob pressão, decidiu assinar um acordo tripartido que ficou conhecido como “Acordo de Madrid”, onde entregou a parte norte do território do Saara Ocidental ao Marrocos e o sul à Mauritânia.
No acordo então estabelecido, no ponto 2 é referido que “a Espanha procederá imediatamente ao estabelecimento de uma Administração temporária no território em que o Marrocos e a Mauritânia participarão em colaboração com Yemaá” …[…acorda-se a designação de dois Vice-Governadores, por proposta de Marrocos e da Mauritânia, para coadjuvar o Governador-Geral do território nas suas funções. A cessação da presença espanhola no território produzirá efeitos definitivos, antes de 28 de fevereiro de 1976] [1]
O ponto 3 do acordo tripartido também é de extrema importância, porque se aceita o princípio da autodeterminação, quando se diz expressamente que a “opinião da população saharaui, expressa através da Yemaá, será respeitada”[2].
Convém sublinhar, neste ponto, que fica por entender a posição de Marrocos que, ao definir (atualmente) Sahara Ocidental como parte integrante do seu território, no entanto, aceita, sem questionamento, assinar um acordo de divisão do território em duas partes, cabendo uma parte ao próprio Marrocos e a outra à Mauritânia.
Entretanto, num parecer sobre o Acordo Tripartido de Madrid, elaborado pelo assessor jurídico da ONU, Hans Corell, em 2002, e submetido ao Secretário Geral da ONU, este afirmava que "o Acordo de Madrid não transferiu a soberania sobre o Território nem conferiu a nenhum dos signatários o estatuto de Potência administradora, condição que a Espanha, por si só, não poderia ter sido transferido unilateralmente. A transferência da autoridade administrativa sobre o território para Marrocos e Mauritânia em 1975 não afetou o status internacional do Saara Ocidental como um território não autónomo.” Para depois concluir que “Marrocos não figura como Potência administradora do território na lista de Territórios Não Autónomos das Nações Unidas”[3].
A Espanha, em 1974, pressionada pela ONU, para a realizar o referendo, decidiu realizar um censo com base na população nativa, com a qual seria realizado o referendo para autodeterminação, cuja realização estava marcado para primeiro semestre de 1975.
No entanto, o rei do Marrocos, ciente dos riscos que corria se tivesse aceitado a realização do referendo naquelas condições, solicitou à Espanha que o adiasse, o que foi aceite. De seguida, Marrocos e Mauritânia decidem solicitar às Nações Unidas um parecer jurídico consultivo, através do Tribunal Internacional de Justiça, sobre os vínculos existentes entre Sahara Ocidental e o Marrocos e a Mauritânia.
O Tribunal Internacional de Justiça, em outubro de 1975, emitiu o seu parecer onde afirma de forma taxativa que: “a Corte não encontrou laços de natureza jurídica que pudessem afetar a aplicação da resolução 1514 na descolonização do Saara Ocidental e, em particular, do principio da autodeterminação mediante a expressão livre e genuína da vontade dos povos do território”[4].
Face a decisão desfavorável do Tribunal, o rei Hassan II decide invadir militarmente o Sahara Ocidental, numa operação que ficou conhecida por Marcha Verde. Nessa marcha foram levados para Sahara Ocidental cerca de 350 mil civis, cujo objetivo foi, simplesmente, colonizar o território, ou seja: ocupar a parte norte que lhe coube no acordo “nulo” de Madrid. A Espanha, enquanto potência administrante, não querendo entrar em conflito militar com o Marrocos, se viu obrigada a abandonar, a correr, do território, a 26 de fevereiro de 1976.
A Mauritânia, outra parte interessada no território, decidiu também invadir a parte sul do Sahara Ocidental, passando a controlar parte do território, como ficou estabelecido no acordo “nulo” de Madrid.
Face ao ocorrido, a frente Polisário decidiu proclamar a independência de Sahara Ocidental, sob a designação de República Árabe Saharauí Democrática (RASD), tendo sido reconhecida, na altura, por 84 países, incluindo a Organização da Unidade Africana (OUA).
Em 1979, no quadro de acordo com a Frente Polisário, a Mauritânia decidiu retirar-se do Saara Ocidental, deixando essa parte do território sob responsabilidade da Frente Polisário. No entanto, aproveitando a retirada da Mauritânia, Marrocos alarga a sua ocupação, e invade o território deixado pela Mauritânia.
A RASD foi admitida como membro da OUA em 1982, tendo Marrocos, em sinal de protesto, abandonado a organização africana em 1987.
Ao invadir e consolidar a sua posição no Sahara Ocidental, Marrocos decidiu construir, na década de oitenta, um muro, cuja extensão se estima a volta de 2 700 km, visando separar a zona controlada por si, cerca de 80% do território, da parte restante, controlada pela Frente Polisário.
Em 1987, no entanto, o Marrocos e a Frente Polisário aceitaram uma proposta da ONU que tinha como objetivo o estabelecimento de um cessar-fogo, e posteriormente a realização de um referendo. O acordo entre as partes foi firmado em 1991, com base no “Sttlement Plan” do Conselho de Segurança, de onde resultou a criação da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO)[5].
Importa salientar que Marrocos ao sentar-se à mesa das negociações com a Frente Polisário e ao consentir subscrever um acordo que institui a MINURSO com o respetivo plano, também, simultaneamente, aceitou a legitimidade da Frente Polisário como representante do povo saharauí, assim como admitiu a sua condição de força ocupante quando aceita esta expressão no texto do acordo: “completa retirada do componente militar do Saara Ocidental”.
Apesar do acordo, desde dessa altura até ao presente, não houve consenso entre as partes para a realização do referendo. A divergência entre partes prende-se com a definição de quem pode votar no referendo. Marrocos defende que todos os habitantes residentes, incluindo os que foram levados em 1975, enquanto a Frente Polisário entende que a população elegível para votar é aquela que foi recenseada em 1975 pela Espanha.
Em 1997, com a assinatura do acordo de Houston[6] foi desbloqueada a elaboração do recenseamento, tendo, em 2000, sido publicadas as listas provisórias com um total de cerca de 86.000 eleitores.
2. Estatuto jurídico do território Sahara Ocidental
A ONU considerou e considera Sahara Ocidental como “território não autónomo” desde 1961, estatuto que confere aos territórios, nessas condições, o direito à autodeterminação, de acordo com o artigos 73º da Carta das Nações Unidas, assim como com a resolução 1514 da Assembleia Geral da ONU.
A Assembleia Geral da ONU, em 1972, através da Resolução A/RES/2983, reconheceu direito à autodeterminação e à independência do povo do Sahara Ocidental, estando este território até ao presente na lista das Nações Unidas de “Territórios não Autónomos” a espera da descolonização.
A Assembleia Geral da ONU, através da Resolução 3292, solicitou, em 1974, ao Tribunal Internacional de Justiça um parecer consultivo sobre Sahara Ocidental, formulando as questões seguintes:
“1) se, tratava-se o território do Saara Ocidental de terra nullius quando do início da colonização espanhola?
2) Caso a primeira resposta fosse negativa, deveriam os juízes e conselheiros jurídicos, esmiuçar quais os vínculos jurídicos existentes entre o território do Saara Ocidental e o Reino do Marrocos e a Mauritânia (ONU, 1974)”[6].
O Tribunal, após análise aturada de documentação e argumentos das partes interessadas, concluiu que “a Espanha estabeleceu seu protetorado sobre o Saara Ocidental desde o ano de 1884, quando foram estabelecidos tratados entre os chefes tribais que lá habitavam” e que não vislumbrou “nenhum elemento …hábil para estabelecer qualquer vinculo de soberania territorial entre o Marrocos e o Saara Ocidental. Os elementos não mostram que o Marrocos tenha exercido uma atividade estatal efetiva naquelas paragens. Tão somente, os elementos denotam a submissão de uma minoria tribal ao Rei do Marrocos”[7].
Esta foi a decisão objetiva do Tribunal Internacional de Justiça que demonstrou, de forma inequívoca, que aquele território não pertencia, nem a Marrocos, nem a Mauritânia.
Para além dessa decisão do Tribunal Internacional da Justiça, sediada em Haia, outros tribunais tiveram decisões que vão no sentido de não reconhecimento da soberania de Marrocos sob Sahara Ocidental.
O Consejo General del Poder Judicial de Madrid, em 2014[8], ao julgar um processo relativo ao assassinato de um cidadão espanhol no território Saharauí, e ao pretender determinar o foro de julgamento concluiu que:
“d) Em suma, a Espanha de jure, embora não de facto, continua a ser a Potência Administrante, e como tal, até ao final do período de descolonização, tem as obrigações constantes dos artigos 73.º e 74.º da Carta das Nações Unidas.
e) Por último, refira-se que se, por força do direito internacional, um território não puder ser considerado marroquino, não se pode aceitar como foro preferencial do local onde o crime foi cometido”
Num acórdão proferido pelo Tribunal Geral da União Europeia (Oitava Secção de 10 de dezembro de 2015)[9], essa instância jurisdicional ao debruçar-se sobre um pedido de anulação, apresentada pela Frente Polisário, da Decisão 2012/497/EU do Conselho sobre o acordo União Europeia e o Reino de Marrocos, decidiu nestes precisos termos: “A Decisão 2012/497/UE do Conselho, de 8 de março de 2012, relativa à celebração do Acordo sob forma de Troca de Cartas entre a União Europeia e o Reino de Marrocos respeitante às medidas de liberalização recíprocas em matéria de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixe e de produtos da pesca, à substituição dos Protocolos n.os 1, 2 e 3 e seus anexos e às alterações do Acordo Euro-mediterrânico que cria uma Associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e o Reino de Marrocos, por outro, é anulada na parte em que aprova a aplicação do referido acordo ao Sara Ocidental”.
A decisão do tribunal europeu estribou-se em fundamentos, segundo os quais “tendo nomeadamente em conta o facto de a soberania do Reino de Marrocos sobre o Sara Ocidental não ser reconhecida pela União, nem pelos seus Estados‑Membros, nem, em geral, pela ONU, bem como a inexistência de qualquer mandato internacional que possa justificar a presença marroquina nesse território”.
Decorre da apreciação e dos factos aqui descritos, que Sahara Ocidental é, de acordo com a classificação das Nações Unidas, um território não autónomo, e como tal, espera ser descolonizado.
3. O direito internacional e o posicionamento de Cabo Verde
A luz do direito internacional, a posição de Cabo Verde, em reconhecer a integridade do reino de Marrocos e a consequente abertura de um consulado em Dakhla, é insustentável, quer do ponto de vista político, quer diplomático, quer histórico, quer, ainda do direito internacional.
É insustentável, em primeiro lugar, porque se trata de um território não marroquino como decorre do Parecer Consultivo do Tribunal Internacional de Justiça;
Em segundo lugar, porque a ONU considera Sahara Ocidental como “território não autónomo”, e este estatuto confere aos territórios, nessas condições, o direito à autodeterminação e a independência;
Em terceiro, porque a ONU criou a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO), entidade encarregue de aplicar o “Sttlement Plan” do Conselho de Segurança (Resolução 690 do Conselho de Segurança, de 29 de abril de 1991)[10].
Ora, o reconhecimento da integridade territorial de Marrocos viola claramente o direito internacional e o estatuto jurídico internacional do território Saharauí, e briga ainda com alguns princípios jurídicos da ordem interna como depois veremos.
Importa sublinhar que à MINURSO cabe, nos termos de acordo alcançado, implementar um plano aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU que consiste em quatro pontos ou fases:
“Fase 1 - Monitoramento de cessar-fogo. Concentra-se no monitoramento continuo do cessar-fogo acordado entre as partes em conflito, a fim de criar condições favoráveis para que o processo politico de paz avance;
Fase 2 - Fase de transição. Será desencadeada a partir da publicação da lista de pessoas autorizadas a votar e levara a redução e confinamento de forcas do Exercito Real Marroquino e da Frente POLISARIO;
Fase 3 - Fase do Referendo. Se concentrara no apoio militar necessário para a realização bem sucedida do referendo;
Fase 4 - Fase Pós-referendo. Correspondera a diminuição de efetivos e a completa retirada do componente militar do Saara Ocidental, quando as condições permitirem (UN 2015)”.
Ora, reconhecer a integridade territorial de Marrocos significa, também, negar ao povo saharauí o direito inalienável à independência, e esta posição é contraria ao direito internacional e subverte a nossa ordem jurídica interna.
Entretanto, Cabo Verde não deve esquecer que a Constituição da República (artigo 11) estabelece que o “Estado de Cabo Verde rege-se, nas relações internacionais, pelos princípios da independência nacional, do respeito pelo direito internacional e pelos direitos humanos”, bem como pela defesa do “direito dos povos à autodeterminação e independência, apoia a luta dos povos contra qualquer forma de dominação ou opressão política ou militar”
Os princípios e as orientações constitucionais, nesta matéria, não estão a ser respeitados por Cabo Verde, que ignora as resoluções da ONU e do Conselho de Segurança, e traí a própria constituição, quando esta impõe ao Estado de Cabo Verde o dever de prestar “às Organizações Internacionais nomeadamente à Organização das Nações Unidas e à União Africana, a colaboração necessária para a resolução pacífica dos conflitos e para assegurar a paz e a justiça internacionais, bem como o respeito pelos direitos humanos pelas liberdades fundamentais e apoia todos os esforços da comunidade internacional tendentes a garantir o respeito pelos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas”.
Assim, nesta questão concreta, Cabo Verde faz exatamente o contrário do que determina a Constituição da República, relativamente ao dever de colaborar com as Organizações as Nações Unidas, quando reconhece a integridade territorial de Marrocos, preferindo, antes, aderir à tese marroquina de ampla autonomia de Sahara Ocidental, enquanto território marroquino, mas sem a independência do povo saharauí, ainda que este a queira ou aspira.
Cabo Verde incompreensivelmente adere à tese marroquina de “integridade territorial”, quando, na realidade, se trata de uma questão de descolonização como decorre da posição da ONU, decorrente da missão (MINURSO) que criou para o efeito.
Cabo Verde não pode esquecer que é subscritor de dois documentos internacionais relevantes nessa matéria, Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos[11] que entrou em vigor na ordem jurídica Cabo‑verdiana a 06 de Novembro de 1993 e Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos[12] que entrou na ordem jurídica cabo‑verdiana a 6 de Novembro de 1987.
Os nºs 1 e 2 do artigo 1º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos vinculam o Estado de Cabo Verde quando referem que “Todos os povos têm o direito a dispor deles mesmos. Em virtude deste direito, eles determinam livremente o seu estatuto político e dedicam‑se livremente ao seu desenvolvimento económico, social e cultural”. Ou quando no número seguinte acrescenta que os ”Estados Partes no presente Pacto, incluindo aqueles que têm a responsabilidade de administrar territórios não autónomos e territórios sob tutela, são chamados a promover a realização do direito dos povos a disporem de si mesmos e a respeitar esse direito, conforme às disposições da Carta das Nações Unidas”.
Como se pode ver facilmente das diversas disposições do Pacto Internacional que faz parte integrante do nosso direito interno, Cabo Verde não cumpriu o dever legal de “promover a realização do direito dos povos a disporem de si mesmos”, especialmente quando decidiu apoiar a subtração do território ao povo saharauí e o seu direito à independência.
Na mesma linha do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, vai a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos na defesa dos direitos dos cidadãos e dos povos quando nos seus articulados 19º e 20º afirma que “Todos os povos são iguais, gozam da mesma dignidade e têm os mesmos direitos. Nada pode justificar a dominação de um povo por um outro”. A parte mais significativa do artigo 20º prende-se com esta obrigação legal segundo a qual “Todos os povos têm direito à assistência dos Estados Partes da presente Carta, na sua luta de libertação contra a dominação estrangeira, seja ela de ordem política, económica ou cultural”.
Cabo Verde tem obrigação não só moral de apoiar a luta dos povos que querem alcançar a sua autonomia e independência, como tem o dever legal, no quadro da constituição e dos tratados ou convenções internacionais, que livremente aprovou e ratificou, e que fazem parte da ordem jurídica interna, de não contrariar as aspirações legítimas dos povos que lutam pela sua liberdade.
Assim, nos parece que o nº 2 do artigo 1º do Decreto-lei nº 40/2022, de 18 de agosto de 2022, afronta os tais princípios e normas legais, e o Estado de Cabo Verde não pode e nem deve furtar-se às suas responsabilidades, enquanto Estado de Direito Democrático e defensor da liberdade e dos direitos fundamentais.
Sendo a abertura do consulado em Dakhla o reconhecimento expresso de que o território Sahara Ocidental é parte integrante do reino de Marrocos, Cabo Verde dá uma pirueta de 360 graus na sua posição, que em 1979 foi a de reconhecer a independência do território e a RASD, para, em 2022, essa posição evoluir para o reconhecimento do território saharauí como parte integrante do reino de Marrocos, à revelia do direito internacional e da sua própria ordem jurídica interna.
Isso é obra!!!
Por tudo o que fica dito e exposto, parece haver muitas dúvidas se o nº 2 do artigo 1º do Decreto-lei nº 40/2022 não poderá padecer do vício de inconstitucionalidade e ilegalidade, sobretudo no que toca ao desrespeito pelo direito internacional (nº 1 do artigo 11º da CRCV) e à subtração do dever de prestar colaboração às Nações Unidas (nº 5 do artigo 11º da CRCV), como ainda por contrariar os nºs 1 e 2 do artigo 1º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e os artigos 19º e 20º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, tendo em conta o estatuído no nº 4 do artigo 12º da CRCV.
P.S.: E atenção: Nada contra as boas relações que devem e deverão existir entre Marrocos e Cabo Verde, com base no respeito mútuo, no reconhecimento da soberania dos Estados e na reciprocidade de vantagens.
Referências bibliográficas:
1. Acuerdo Tripartito de Madrid - febrero, 2015
2. Idem
3. Corell, H.: Carta de fecha 29 de enero de 2002 dirigida al Presidente del Consejo de Seguridad por el Secretario General Adjunto de Asuntos Jurídicos, Asesor Jurídico
4. Cour Internationale de Justice – Avis Consultatif du 16 Octobre 1975
5. Resolução 690 - Conselho de Segurança - 29 de abril de 1991
6. Resolução 3292 - A Assembleia Geral da ONU – 1974
7. Cour Internationale de Justice – idem
8. Procedimiento Ordinario n° 80/2013 - Juzgado Central de Instrucción n° 2 - A U T O N º 40/2014
9. Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia (Oitava Secção) - Processo T‑512/12 - dezembro de 2015
10. Resolução 690 – idem
11. Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos – Aprovada para Adesão: Lei n.º 75/IV/92, de 15 de Março, publicada no Boletim Oficial, I Série, n.º 8, Suplemento
12. Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos - Aprovada para ratificação: Lei n.º 12/III/86 de 31 de dezembro, publicada no Boletim Oficial n. º52 5.º Suplemento
13. Decreto-lei nº 40/2022 – Boletim Oficial nº 80 - de 18 de agosto de 2022
Outros documentos consultados:
1) Parecer do Tribunal Internacional de Justiça – Caso Sahara Ocidental –
https://www.icj-cij.org/sites/default/files/case-related/61/9466.pdf
2) Documentos apresentados pela Espanha –
https://www.icj-cij.org/sites/default/files/case-related/61/9470.pdf
3) Documentos apresentados por Mauritânia e Marrocos –
https://www.icj-cij.org/sites/default/files/case-related/61/9472.pdf
4) Resumo da sentença 1975/1
https://www.icj-cij.org/sites/default/files/case-related/61/6196.pdf
5) Parecer jurídico enviado ao Presidente do Conselho de Segurança da ONU
For STPU (Oct. 12, 00_afternoon) (ceas-sahara.es)
6) Informe del Secretario General sobre la situación relativa al Sáhara Occidental
https://www.usc.es/export9/sites/webinstitucional/gl/institutos/ceso/descargas/S_2017_307_es.pdf
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