Cabral não é marca de grogue e nem Iogurte de Banana
Ponto de Vista

Cabral não é marca de grogue e nem Iogurte de Banana

O problema nem é a direita, essa já se sabe que vê Cabral como entre parêntesis da história, justo o seguimento que mais tem feito e dignificado o Amílcar Cabral. O problema é mesmo a esquerda cabo-verdiana que se diz herdeira do homem e o trata como se fosse logotipo de campanha, mascote de congresso, ou biografia de bolso para agitadores de redes sociais que não leram uma linha do que ele escreveu. A esquerda que se diz cabralista, mas cala. Cala-se quando deviam berrar. Cala-se por estratégia, por medo de parecerem desatualizados, ou pior, porque se habituaram a usufruir da imagem do homem como se fosse um cartão VIP de entrada nos salões do poder.

Há frases que nos ficam na cabeça como farpas no pé, mesmo que já nem saibamos quem as escreveu. Uma vez li, e já nem sei onde, talvez num poeta africano ou num guardanapo de bar, que “o silêncio é cúmplice e a memória, seletiva”. Cabo Verde, nesta comemoração dos cinquenta anos de independência, provou a verdade dessa frase com a precisão de um relógio suíço... falsificado, aparentemente estão errados, aparentemente estão certos, não cabe a eles vangloriarem com o sucesso e a dimensão histórica do Cabral, mas não sabe a eles enquanto autoridades ignorar ou passar levemente por essa história sem dar a verdadeira digna citação.

Porque vamos ser francos: festeja-se a liberdade com pompa, bandeirinhas, cachupa, tenterem e djagasida em cerimónia e discursos amaciados com vaselina ideológica, mas evita-se cuidadosamente mencionar o nome que tornou tudo isto possível, Amílcar Cabral. É como celebrar o Carnaval sem batucada. Ou pior: como celebrar o 15 de janeiro sem lembrar de Nhô Amaro, o santo, sem lembrar que o aniversariante acabou crucificado por dizer verdades.

Mais uma vez, Cabral foi reduzido a um fantasma que só aparece nas fotografias velhas ou quando dá jeito ao partido da ocasião. E não é preciso ser cabralista (não sou) para ver que há aqui uma aldrabice descarada. Cabral não é santo, mas também não é batata para andarem a descascar consoante a receita eleitoral do momento.

Quando se “apagou” Cabral das cerimónias oficiais, não foi distração: foi estratégia. Porque Cabral, com aquela voz calma e ideias perigosamente lúcidas, não serve aos pequenos jogos de poder, nem se dobra às modas revolucionárias recicladas em gabinetes com ar-condicionado e empadinhas de camarão.

O problema nem é a direita, essa já se sabe que vê Cabral como entre parêntesis da história, justo o seguimento que mais tem feito e dignificado o Amílcar Cabral. O problema é mesmo a esquerda cabo-verdiana que se diz herdeira do homem e o trata como se fosse logotipo de campanha, mascote de congresso, ou biografia de bolso para agitadores de redes sociais que não leram uma linha do que ele escreveu. A esquerda que se diz cabralista, mas cala. Cala-se quando deviam berrar. Cala-se por estratégia, por medo de parecerem desatualizados, ou pior, porque se habituaram a usufruir da imagem do homem como se fosse um cartão VIP de entrada nos salões do poder.

E os outros, os tais que se dizem “históricos”, aqueles com lugar cativo nas comissões e nas inaugurações, andam calados há tanto tempo que já devem ter esquecido o som da própria consciência. Vêem o nome de Cabral ser distorcido, aproveitado, instrumentalizado, e respondem com o mais ensurdecedor dos silêncios. Silêncio institucional. Silêncio estratégico. Silêncio de quem lucra mais calado do que honesto.

Mas vamos lá deixar claro: Cabral fundou o PAIGC. Quando morreu, o PAICV ainda era sonho molhado no útero cerebral de alguns. Portanto, não há exclusividade de legado, há, sim, respeito de quem entende que o homem é maior do que qualquer sigla ou bandeira partidária. E há mérito de quem estuda, critica e reconhece a grandeza sem necessidade de ajoelhar-se em altar ideológico.

E eu, que não sou cabralista de carteirinha, digo com todas as letras: defender Cabral é não o deixar ser mascote de ninguém. É poder discordar das suas ideias sem rasgar o seu valor. É poder dizer que o tempo mudou, mas a espinha dele ainda serve de régua para medir a dignidade de um país.

Como dizia José Craveirinha: “As minhas palavras são sangue”. E as palavras de Cabral continuam a sangrar neste país que celebra aniversários como quem dança num velório. Paulin Hountondji já dizia que a verdadeira descolonização acontece dentro da cabeça. E nesse aspeto, parece que temos muitos cérebros ainda sob administração colonial.

Cabral é mundo. E neste mundo há cada vez menos gente com coragem para honrá-lo como se deve: sem beijos no retrato, sem discursos reciclados, e sem medo de incomodar. E aos que continuam a usar o seu nome como tábua de salvação política: completem primeiro as vossas biografias. Depois, talvez tenham moral para tocar no dele. Até lá, deixem-se de homenagens de ocasião. Cabral não precisa de vocês. Vocês é que, desesperadamente, precisam dele. Alias. Nós.

Partilhe esta notícia

Comentários

  • Dom Danillon, 1 de Mai de 2025

    Já era preciso algo assim interessante, crua com todo o sabor para meditação!

    Responder


  • Imã kabral, 30 de Abr de 2025

    Menino de silêncio prolongado. Ti formei bem, meu filho. Abç.

    Responder


  • José Lima Borges, 30 de Abr de 2025

    Falou e tudo disse, cada um enfia a carapuça onde melhor lhe couber.
    Bravo

    Responder


  • José Lima Borges, 30 de Abr de 2025

    Falou e tudo disse, cada um enfia a carapuça onde melhor lhe caber.
    Bravo

    Responder


  • Maria olinda, 30 de Abr de 2025

    Bruxu

    Responder


Comentar

Caracteres restantes: 500

O privilégio de realizar comentários neste espaço está limitado a leitores registados e a assinantes do Santiago Magazine.
Santiago Magazine reserva-se ao direito de apagar os comentários que não cumpram as regras de moderação.